Recentemente muita controvérsia se instaurou, no debate político, com relação ao fato de Brasil ter sido alvo de críticas e sátiras da comunidade internacional em razão de um crescente desmatamento da Amazônia que estaria a serviço tão somente do plantio da soja e dos criadores de gado.

Impulsionando a cizânia, a Alemanha anunciou o corte de R$ 155 milhões que eram destinados à preservação do bioma brasileiro. A decisão do país levou em conta dados que mostram que o Brasil não tem conseguido diminuir o desmatamento da região.

A resposta brasileira veio fomentando um discurso em “defesa da soberania”, asseverando que a retirada de doações na região revelaria apenas o descontentamento desses países diante de uma tomada de decisão política que supostamente assegura a soberania nacional na Amazônia. Mas tal argumento não é uma novidade na cena política brasileira quando o objetivo a que se pretende é o desrespeito dos direitos fundamentais.

Torna-se cristalina a percepção de que os direitos humanos da 2ª e da 3ª gerações estão alicerçados no princípio da igualdade, correspondendo à fase de instauração e sedimentação do regime liberal. Dá-se a superação do estado de constitucionalismo formal. Os indivíduos já não mais desejam a igualdade e a liberdade exclusivamente protegidas pela previsibilidade legal. Desejam mais, e este ‘plus’ se dará com o alcance de instrumentos que venham a assegurar a liberdade e a igualdade, mas desta vez no âmbito material.

Neste sentido, os direitos sociais perfazem-se como a realização efetiva destas demandas, através de normas jurídicas imediatamente aplicáveis, as quais qualquer ação contra o seu conteúdo poderá ensejar em inconstitucionalidade.

A liberdade sem igualdade não conduz a uma sociedade livre e plural, senão na oligarquia, assim como a igualdade sem liberdade não conduz à democracia, e sim ao despotismo, que é a opressão dos que detêm o poder sobre os outros. 

No bojo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, observa-se um conteúdo de asseguramento dos direitos políticos em alguns documentos contemporâneos à Declaração de 1948, como a Convenção Internacional Sobre a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio, também aprovada em 1948; a Convenção de Genebra Sobre a Proteção das Vítimas de Conflitos Bélicos (1949); a Convenção Europeia de Direitos Humanos (1950), cujo Protocolo Adicional de 20 de março de 1952 representou um marco para a proteção dos direitos políticos ao consagrar o direito a eleições livres (embora a Carta de Weimar de 1919 já fizesse esta previsão); os Pactos Internacionais de Direitos Humanos de 1966 (Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional Sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais).

A Conferência de Teerã, aprovada em 13 de maio de 1968 pela ONU, teve por objetivo o exame dos progressos obtidos com os 20 anos da aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, formalizando um avanço teórico no iter em prol do desenvolvimento da proteção dos direitos fundamentais, ao proclamar o princípio da indivisibilidade dos direitos humanos. Assim, a realização dos direitos civis e políticos sem o gozo dos direitos econômicos, sociais e culturais, tornar-se-ia impossível. Dessa forma, demonstrou esta conferência um avanço substancial em relação aos pactos de 1966.

Um ano depois, em 1969, ocorreu a Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, cujo cerne de discussão era a defesa da vida e da integridade física e psíquica dos presos e perseguidos políticos. A razão da escolha de tal objeto pode ser explicada em função da prioridade da matéria frente às flagrantes violações aos direitos humanos e ao princípio democrático, cometidas pelas “quarteladas golpistas da América Latina”.

Obviamente, o Brasil não foi signatário do Pacto de São José da Costa Rica, pois como nos ensina nosso conselheiro federal, o professor Carlos Roberto de Siqueira Castro, a ditadura instaurada no país não permitiria que esta brecha de liberdade pudesse comprometer o “pseudoconstitucionalismo” estéril que pretendia fazer abstração do regime a que servia ao sustentar a inconveniência da adesão brasileira ao Pacto, por considerarem “nociva a proliferação desses convênios”, já que estimulavam conflitos de competência, notadamente ferindo a soberania brasileira.

Sobre o assunto, há um excerto do documento que deixa translúcida a postura contrária do governo militar de então a qualquer ingerência externa na sua brutal política de segurança nacional, que provocava, dia a dia, o arbítrio das liberdades, o sepultamento do princípio democrático, assistindo de forma até mesmo sádica à tortura e ao assassinato dos brasileiros. Eis tal excerto, extraído do parecer do embaixador Marcos Castrioto Azambuja, na época membro do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, rejeitando moções do Conselho Federal da OAB pela adesão ao referido pacto: “Desde 1969, época da negociação do Pacto de São José, o governo brasileiro vem considerando inconveniente sua adesão ao instrumento, entre outros motivos por considerar nociva a proliferação de convênios dessa natureza, que não oferecem garantia mais eficaz de respeito aos direitos humanos, mas, ao contrário, podem estimular conflitos de competência e de prioridades suscetíveis de conduzir ao desvirtuamento de seus objetivos principais. A matéria, entende o governo brasileiro, deve ter tratamento não polêmico e universalmente aceito, como foram os casos, por exemplo, da Declaração Universal dos Direitos do Homem (ONU) e da Declaração Americana dos Direitos e Deveres Humanos (OEA), adotadas em 1948, com o apoio brasileiro (...). Importa ressaltar, a propósito, que o Pacto de São José criou uma ‘Corte Interamericana de Direitos Humanos’, com atribuições de caráter supranacional, fato que contraria a posição tradicional do governo brasileiro na matéria; entre outras razões pelo risco de submissão incontrolável a terceiros de assuntos sensíveis no campo da soberania nacional”.

A não adesão ao Pacto de São José espelhava já naquela época uma realidade de tortura e de assassinato. Não interessava ao governo brasileiro ser signatário de uma convenção que criava uma Corte Interamericana de Direitos Humanos, que pudesse vir a ser um tribunal que certamente recepcionaria denúncias sobre a tortura no Brasil.

Os direitos de terceira geração e, entre eles, o meio ambiente traduzem um consenso acerca de determinadas exigências inerentes à própria condição humana. O direito ao meio ambiente sadio foi objeto da Declaração do Rio de Janeiro, de 1992, que dispõe no princípio I: “Os seres humanos estão no centro das preocupações com o desenvolvimento sustentável. Têm direito a uma vida saudável e produtiva, em harmonia com a Natureza”.

Em 1988, a Constituição brasileira, democrática e cidadã, trouxe preocupação mais pujante com a problemática ambiental e, por sua vez, o direito ao desenvolvimento e à autodeterminação dos povos foi objeto da preocupação da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Direitos dos Povos, em 1981, que estabeleceu em seu artigo 2º que “todo povo tem direito à existência. Todo povo tem um direito imprescritível a autodeterminação. Ele determina livremente seu estatuto político e assegura seu desenvolvimento econômico e social segundo o caminho que ele livremente escolheu”. Iniciou-se então uma nova fase. Com instrumentos de proteção mais eficazes e aprimorados, obedecendo a determinação de um povo em prol da defesa do meio ambiente sadio.

Mas o cerne da controvérsia viria a ser revelado após a Assembleia Geral das Nações Unidas ter convocado a II Conferência Mundial dos Direitos Humanos, realizada em junho de 1993, em Viena. Nessa conferência, revelou-se uma profunda divisão entre os países desenvolvidos e o bloco terceiro-mundista. O bloco primeiro-mundista buscou a inserção de mecanismos mitigadores do princípio da universalidade dos direitos humanos (consagrado na Declaração de 1948), alegando o princípio das particularidades regionais (soberania). Mas, apesar disso, a Conferência de Viena alcançou avanços significativos no âmbito das chamadas tutelas específicas, notadamente em relação aos direitos humanos das mulheres, das crianças e dos adolescentes, dos povos indígenas, dos deficientes e toda a sorte de grupos vulneráveis, tendo contribuído decisivamente para a construção de uma cultura dos direitos fundamentais do homem, no que toca à sua universalidade, à complementariedade dos instrumentos de proteção, à indivisibilidade de suas categorias de expressão e à coordenação das ações de tutela em nível mundial”.

Vale ressaltar que o texto final da Declaração de Viena, de 1993, cedeu espaço à demanda de se incorporarem os instrumentos internacionais de defesa dos direitos humanos e do direito internacional comunitário aos respectivos ordenamentos jurídicos internos dos Estados. No entanto, sentia-se o receio dos países de que tal medida pudesse servir a propósitos políticos intervencionistas, no que se refere à soberania dos estados.

Destarte, apesar das ditas “preocupações com a soberania” na atual pauta política brasileira,  os direitos humanos (em um plano global) e os direitos fundamentais (como direitos humanos recepcionados do âmbito internacional e aclamados nas constituições dos países) constituem-se como pilares da realização da democracia, e não há nada mais genuinamente democrático do que permitir a necessária vigilância da comunidade internacional a gravosas lesões de caráter ambiental que já têm produzido, em nosso pobre país, danos geracionais.

O discurso da “soberania” está sendo utilizado para a burla da vigilância, denúncia e utilização de instrumentos jurídicos protetivos da comunidade internacional em prol da proteção ao meio ambiente, instrumentos esses que evitam ou minoram consequências irreversíveis.

Do mesmo modo, como já foi usado, em tempos pretéritos, para esconder e evitar que a vigilância dos instrumentos internacionais de proteção aos direitos humanos pudesse revelar as torturas e mortes ocorridas em nosso país e que até hoje, 50 anos depois, assombram nossos dias como marcas do terror vivido.

Oxalá que o futuro não reserve aos nossos filhos danos ambientais geracionais que comprometam a vida humana com os velhos, falaciosos e tão conhecidos discursos de lesão à soberania.

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