Hoje muito se discute acerca da democracia participativa, incluindo a deliberativa e a perspectiva digital no aprimoramento da democracia representativa, de modo a propiciar oxigenação ao já desgastado e engessado modelo.

Vivemos uma crise democrática, com sérias dificuldades na concatenação entre a vontade popular e a vontade expressa pela maioria parlamentar.

Assim, observa-se uma nova forma de dominação e exploração, caracterizando-se pela crise do contrato social, ou seja, pela ideia de que as noções de igualdade, justiça, solidariedade e universalidade deixam de ter valor, de modo que a sociedade de outrora se transmuta para o atendimento aos interesses individuais e de grupos sociais que operam para a concretização de seus interesses e demandas de classe social, gerando uma democracia de baixíssima intensidade.

No sistema eleitoral brasileiro, alguns problemas maculam a plenitude democrática. Em um primeiro apontamento, a desproporcionalidade, pois vivemos no Brasil a chamada “tirania da aritmética” que tem como consequência a diminuição exacerbada da representação de alguns estados. Esse fenômeno chama-se malapportionment, que se perfaz no desequilíbrio regional na representação. As causas são facilmente identificáveis, como, por exemplo, a definição das unidades federativas como circunscrição eleitoral somada à fixação constitucional de número máximo e mínimo na representatividade, o que cria distorções, que serão majoradas se considerarmos as enormes diferenças populacionais brasileiras. Um segundo problema revela-se na disputa intrapartidária. Essa é uma realidade complicada, pois, no Brasil, o grande adversário do político é o seu “companheiro de partido”, o que incentiva a indisciplina partidária e torna os partidos mais frágeis. Assim, instaura-se, no universo interna corporis dos partidos, a lógica do “cada um por si e todos contra todos”.

Essa mazela revela-se também no fenômeno dos catch-all-parties, que seriam aqueles partidos que, abandonando uma estrutura ideológica e hermética, passam a abraçar tão somente o pragmatismo político, flexibilizando seus programas e sua disciplina interna de modo a aceitar toda sorte de candidatos, por mais desconectados que sejam, com os corolários políticos da agremiação partidária, desde que sejam pessoas que propiciem resultados eleitorais exitosos.  

Desse modo, os partidos passam a ser tão somente um canal para que os políticos, sem clareza ideológica, possam se eleger, o que transforma as agremiações em “partidos de aluguel”, comprometendo a necessária coesão partidária. Uma terceira mazela revela-se no personalismo ou “poder da caneta”, que tem geratriz histórica e remonta à colonização e à tradição brasileiras, de modo que observamos a primazia dos oligopólios de burocratas partidários capitaneados pelos chamados “caciques”. Assim, coesão e unidade são valores raros na política brasileira, e as campanhas continuam sendo feitas na base do compromisso e do carisma pessoal.

O poder unipessoal centralizado que deu origem à máxima política do “poder da caneta” é geratriz de muitas deformações e injustiças na res publica brasileira, tanto em nível federal quanto estadual e municipal. Há de se salientar, nesse mister, também, que a concentração de poder político propicia uma ambiência conjuntural favorável ao clientelismo, à corrupção e ao desvio de recursos públicos. A conquista do poder passa a ser um negócio de natureza privada, desprezando-se o elemento finalístico do Estado, fazendo surgir ambições políticas e financeiras de má-fé. 

Um quarto problema reside na influência do poder econômico. Não se faz política sem dinheiro. Asseverava o juiz John Paul Stevens, da Suprema Corte Americana até 2010, que “dinheiro, tal como água, sempre encontrará uma saída”. Mas o dinheiro não pode deixar a política refém. É óbvio, em qualquer lugar do mundo, que aqueles que têm mais recursos terão mais vantagens, e cabe ao sistema fazer modulações com o fito de minorar o problema. Contudo, proibir o financiamento privado no intuito de resolver a problemática da corrupção no Brasil foi uma providência desacertada, pois eleger o financiamento privado como o “grande vilão”, como responsável por todas as mazelas de corrupção nos processos de arrecadação de recursos para as campanhas eleitorais, e depositar todas as esperanças de solução no financiamento público é postura pueril e demasiadamente simplista. Trata-se de ingenuidade pensar em se fazer campanha sem dinheiro.  Contudo, deve-se asseverar que não é o financiamento privado o responsável pela corrupção. O responsável pela corrupção é o corrupto. A falácia de vilanização do financiamento privado tem gerado quadros abusivos de sacrifício tributário para os contribuintes, que terminam por financiar, com recursos públicos necessários a outros fins, campanhas eleitorais que nem sempre seriam de seu desejo político ou de seu interesse.

A possibilidade de fazermos doações aos candidatos de nossa predileção é direito político legítimo do exercício da cidadania, e os direitos políticos são uma subespécie dos direitos humanos, inalienáveis, constituindo-se como principal pilar na realização do princípio democrático.

A cidadania não pode ser recepcionada no seu grau mínimo, no mero ato de votar. Somos responsáveis, também, por meio da doação de recursos, pelas escolhas políticas que fazemos, e a participação política pode ser realizada através da doação de recursos, inclusive das pessoas jurídicas. Devemos lembrar que os próprios partidos políticos, genuinamente depositários dos anseios da sociedade, são pessoas jurídicas. Vale aduzir que, no Brasil, os partidos políticos também são os titulares dos mandatos dos parlamentares, pois consideramos que os mandatos pertencem aos partidos políticos. É certo que o poder econômico influencia, mas não é normal que seja fator decisivo.

Por sua vez, uma quinta mazela está na questão do excesso de partidos, que deve ser combatido severamente com a cláusula de barreira. As bancadas corporativas e a influência indesejada de certos lobbies são problemas causados pela fragilidade partidária. As bancadas hoje se formam por interesses econômicos, religiosos, corporativos, laborais, e não necessariamente por interesses partidários. E esses interesses outros estão, por vezes, acima dos partidos.

Alguns vetores são apontados como caminhos para a solução de conflitos, como um maior equilíbrio federativo na Câmara dos Deputados. Devemos lembrar que no Brasil os deputados são representantes do povo, e não de seus estados. E, nesse contexto, faz-se necessário combater os problemas da malapportionment e do gerrymandering. Nesse universo de propostas de solução, as listas hierarquizadas mistas bloqueadas e com ordem definida são interessantes por reservarem uma porcentagem pequena e, no início da lista, para os grandes líderes partidários, do mesmo modo que asseguram também a democratização do mercado eleitoral com o restante da lista. O fortalecimento dos partidos faz-se mister com equilíbrio relativo entre as forças do capital e do trabalho e o financiamento livre com muito controle e fiscalização. A regulamentação do lobby para o controle dos excessos das bancadas corporativas consagra-se como uma providência de superlativa importância. E, por fim, a “cláusula de barreira”, incluindo a vedação às coligações proporcionais e maior democracia interna nos partidos com prévias preparatórias das convenções e restrição e controle férreo da Justiça Eleitoral nas comissões provisórias. Tais vetores asseguram, certamente, no contexto brasileiro, um fomento nos predicamentos da cidadania.

Por fim, há de se pensar nos desafios a serem enfrentados pela democracia nos dias atuais. Para começar, as ameaças laborais vivenciadas nesse século, resultantes da quarta Revolução Industrial; o fim das certezas acadêmicas e governamentais, criando obstáculos à democracia pelos altos índices do temor autoritário com o avanço da ultradireita, dos nacionalismos exacerbados e dos populismos (o “impossível” já não existe...), tão bem denunciados por Francis Fukuyama; as mudanças aceleradas; o rompimento dos axiomas pela manipulação das emoções humanas, fomentadas pelo neuromarketing e pela psicometria  eleitoral; os paradigmas institucionais ultrapassados, tornando o momento difícil para as instituições; a xenofobia; os movimentos neonazistas/neofascistas; a crise da governabilidade; os desafios democráticos desencadeados pelas dificuldades enfrentadas na crise do petróleo;  a perda do controle das diretrizes do petróleo venezuelano e iraniano, pela Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), nas negociações globais; as classes médias demandando “respostas rápidas”, que os sistemas político e o econômico não conseguem dar, provocando a fuga eleitoral desses cidadãos para um processo de tomada de decisão política que privilegia os chamados “salvadores da pátria”, neopopulistas, marcados por posicionamentos de ultranacionalismo exacerbado, xenofobia odiosa e personalismo político que macula a democracia dialógica.

Além disso, há de se considerar que, nos últimos anos, 15 entre 18 países da América Latina, segundo dados do Instituto de Direito Econômico Aplicado (Idea), tiveram eleições presidenciais em momentos de crescimento econômico medíocre, pouca qualidade no asseguramento de direitos sociais, com retrocessos civilizatórios na agenda moral, aumento da corrupção e falta de segurança.

Outro sinal muito significativo é que os jovens, marcados pelo sofrimento no enfrentamento hostil do mundo contemporâneo em razão da falta de transparência das dificuldades reais a serem enfrentadas e do déficit de vitalidade das democracias, acabam por aderir, para parafrasearmos Mario Vargas Llosa, à indiferença e ao desprezo pelo social e pelo político.

A democracia deve ser compreendida como um processo contínuo de controle do poder por meio dos seus mais diversos mecanismos. Ela revela um universo muito maior do que seu viés representativo, alicerçado no sufrágio, através de eleições periódicas, alcançando ainda os vetores da igualdade, do pluralismo, da participação e notadamente do aceite dos resultados eleitorais.

Essa democracia, já qualificada notadamente pela participação popular efetiva e pela deliberação realizada, pela construção de um consenso argumentativo, pela via da democracia dialógica, gera um sistema em que ela é vista como um valor civilizatório, convertendo-se em cultura democrática.

Essa cultura democrática, qualificada, alicerçada na concretização de valores e princípios civilizatórios, será potencializada com estratégias assecuratórias dos direitos e demandas do povo. Entretanto, para que isso seja possível, a educação política é uma tarefa de todos, de modo a conseguirmos o alcance e a concretização de valores indispensáveis para uma cultura democrática, tais como o aceite do pluralismo e da tolerância, de modo que os cidadãos, pela prática de uma democracia deliberativa e dialógica, consigam dar um salto qualitativo, educacional, gerando uma democracia educada e comprometida com as políticas públicas de interesse geral, que resultará em uma sociedade forte, plural e que verdadeiramente proteja os direitos humanos e a sociedade na sua inteireza, na completude dos seus cidadãos.

Como afirmava o grande educador brasileiro Anísio Teixeira, a educação não pode ser um processo exclusivo de formação de uma elite, mantendo-se a grande maioria da população em estado de analfabetismo e ignorância, pois são eles que escravizam o povo. Só se liberta um povo pela educação, pela educação libertadora, emancipadora.

E a igualdade deve ser o esteio da virtude pedagógica de ensinar as diferenças, para que possamos concretizar, através da educação, os valores da democracia, com respeito, tolerância, disponibilidade para mudanças necessárias e, sobretudo, humildade de quem educa. Pois, como nos ensina Paulo outro educador brasileiro, o grande Paulo Freire, “ninguém é superior a ninguém”.

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