Em meados da década de 1970 começamos a observar, no cenário político brasileiro, novos atores sociais que se expressam através de organizações denominadas “novos movimentos sociais”. Estes movimentos se caracterizavam por apresentarem uma proposta de organização supostamente desvinculada dos modelos tradicionais. Crescia o número de lideranças que se engajavam exercendo uma dupla militância (nos partidos e nesses grupos de poder) e, por outro lado, os partidos, através de seus militantes, também começam a “investir” nos movimentos sociais no sentido de exercerem alguma influência política sobre eles. Era inevitável que o tema sobre a relação partidos-movimento se tornasse relevante, sobretudo na medida em que ambos começaram a ocupar um espaço comum de participação e representação política na sociedade civil brasileira.

Tornou-se assim um fato comum a presença desses novos movimentos sociais nos chamados agentes externos ou “sujeitos organizacionais” (Igreja, partidos políticos, ONGs, grupos de assessoria, intelectuais, profissionais liberais), atuando e intervindo no seu funcionamento, e na sua dinâmica, especialmente nas associações de bairro. Tais agentes externos eram portadores de projetos organizativos para os movimentos sociais, o que fez com que suas atuações fossem marcadas por fortes disputas dentro do próprio movimento, dando assim um caráter conflitivo a esta relação.

Nos partidos políticos, percebia-se que a disputa se intensificava, uma vez que cada um procura conquistar a hegemonia do movimento através da “arregimentação” de seus integrantes para o seu projeto “particular”. Nas associações de moradores na América Latina, especialmente Venezuela, Peru, México e Chile, constatava-se que este tipo de movimento provocava profundas cisões advindas principalmente pelas rivalidades partidárias.

Apesar de tratar-se de uma outra realidade, é importante mencionar que as disputas partidárias residem, sim, nos bastidores desses movimentos ditos “apartidários”. Também neles identificamos um caráter potencialmente divisivo das identificações partidárias no âmbito desses grupos, onde há uma certa dissociação entre o discurso autonomista e a prática comprometida com uma determinada orientação.

Não há dúvida de que a inserção dos partidos nos movimentos sociais provoca uma rediscussão sobre a temática da autonomia, inicialmente colocada pelos movimentos como uma questão prioritária e essencial para a condução e dinâmica de sua prática política. Vários estudiosos, inclusive, analisaram esses movimentos como sendo formadores de uma nova cultura política em função de sua prática autônoma em relação ao Estado, aos políticos profissionais e aos partidos políticos. É bom que se ressalte que, muito mais do que uma prática efetivamente existente, a autonomia e independência fazem parte do discurso proferido pela maioria dos integrantes desse tipo de associativismo.

Foi possível constatar que o discurso de autonomia, que apresenta esses movimentos sociais supostamente desvinculados das instituições políticas oficiais, constituiu para eles em uma necessidade com o fito de se diferenciarem dos esquemas tradicionais de fazer política. Neste sentido é que se constitui um traço comum no discurso das lideranças a ênfase em um dito antipartidarismo mesmo quando são notórias as suas vinculações político-partidárias. 

Existe na realidade um “jogo de esconderijos” e apesar de o discurso apartidário predominar entre os participantes desses movimentos, paradoxalmente, entre os próprios militantes partidários, na prática, esses grupos não funcionam sob o signo do apartidarismo. Há notória influência dos partidos embora ela seja sempre camuflada, pois a grande maioria dos movimentos sociais estabelece relações e vínculos com agentes externos, sejam eles partidos ou outros grupos de impulsionamento político no rol dos tradicionais aparelhos ideológicos do Estado.

Podemos sistematizar uma série de fatores que se colocam como explicativos para o discurso apartidário proferido por esses ativistas, quais sejam: é importante que os militantes ressaltem à administração pública o caráter apartidário e neutro dos movimentos para que sejam bem recebidos nesse momento em que a política está tão desacreditada; e a união entre os participantes dos movimentos sociais com identificação ideológica  constitui um elemento básico para o funcionamento interno da entidade e o encaminhamento dos seus interesses, tal como nas coligações partidárias. Emm função da visão negativa hoje sobre os partidos políticos tradicionalmente existentes na cultura política brasileira e da própria crise de representatividade pela qual passam os partidos, esses movimentos vão se revelando como ferramenta diferente.

Na verdade, todos esses fatores refletem e convergem para um único ponto: as dificuldades e os conflitos que envolvem a relação entre os partidos e movimentos sociais. É bom que se ressalte que não há uma postura unívoca dos partidos em relação aos movimentos, existem diferenças na própria avaliação que fazem do que sejam os movimentos e da importância de sua atuação junto a eles, ou seja, existem partidos que não reconhecem esses movimentos como um adversário à altura, não se constituindo, portanto, alvo de preocupação dos mesmos; e há outros partidos que se interessam por acolhê-los por acreditarem que eles se constituem em potenciais redutos eleitorais; e ainda existem aqueles que reconhecem uma importância estratégica nesses movimentos, promovendo assim um trabalho de base contínuo junto à população.

Não se pode negar também que os partidos, não raras vezes, apresentam-se com uma prática política que não se distancia do “fazer político” tradicional e sectário e que, apesar de se identificarem com uma nova cultura política, são portadores de atitudes do passado, sentindo-se como donos dos movimentos sociais.Tal postura vanguardista, muito presente sobretudo nos partidos políticos de esquerda, existe em função da concepção instrumental que eles trazem da política como sendo apenas um meio para implementarem seus projetos particulares mesmo de transformação social. Acreditam serem eles próprios peças fundamentais na condução das lutas e na direção política do movimento social, para que este não limite suas ações a questões reformistas, de caráter local. Direcionam sua atuação no sentido de fazer despertar a necessidade de o movimento transcender o seu caráter reformista, articulando as lutas específicas do movimento com os projetos mais gerais de transformação social

Portanto, a presença dos partidos junto aos movimentos sociais, seja através do clientelismo, ou da infiltração e instrumentalização, existem em função da tentativa desses partidos usarem os movimentos para fins políticos que são definidos fora deles. Sobre este aspecto, a presença de partidos no movimento social muitas vezes é mencionada como nefasta, no sentido de desorganizar, fragmentar e desmobilizar. Eram vistos como hóspedes incômodos, invasores de formas autênticas de organização popular.

Chamo atenção para o fato de que os participantes se unem em função de um problema comum, em defesa de interesses imediatos, no entanto, afastando-se ideologicamente no que diz respeito à filiação partidária. E que, não obstante essas definições partidárias serem freqüentemente ocultadas, elas existem. Deste modo, os movimentos sociais apresentam uma “dupla face”: a pública, que enfatiza a igualdade, a união, o consenso; e a oculta, das cisões, das divergências, acusações mútuas.

Feitas essas considerações, é importante ressaltar que tais movimentos se apresentam à sociedade sem as vedações e os controles aos quais os partidos políticos são obrigados a se subordinar com as normas de regência do Direito Eleitoral.

Esses grupos surgiram no período do início dessa década, depois do eclodir dos movimentos sociais de rua daquela época, diante de uma série de processos de acentuada crise política e de representação no Brasil e no mundo, apresentando como foco a contestação do sistema político vigente.

Nos EUA, tivemos o Occupy Wall Street, deflagrado por desigualdade econômica, corrupção política, desencadeando desobediência civil dos cidadãos, contestando as diretrizes de então do sistema financeiro naquele país, ao ocuparem espaços públicos em Manhattan. Depois, a chamada Primavera Árabe, em especial a Revolução de Jasmim, na Tunísia, ao longo de janeiro de 2011, na qual manifestantes da Praça Tahir estimularam uma onda revolucionária por todo Mundo Árabe, resultando na deposição do governo.

No Egito, o levante também conhecido como Dias de Fúria ou Revolução de Lótus, onde os protestos e os atos de desobediência civil se sobrepuseram às organizações políticas formais. No mesmo bojo dessas manifestações, a Espanha, gera o Movimento Apartidários Indignados, também conhecido como Movimiento 15-M, na Puerta Del Sol, em Madrid, deflagrado pelas redes sociais e idealizado em um momento primeiro pela plataforma civil e digital "Democracia Real Já!", que obteve o apoio inicial de mais de 200 associações de cidadania, convocando 58 cidades espanholas.

Interessante asseverar que esse movimento, a priori apartidário, gerou dois partidos na Espanha. O primeiro deles é o Podemos, de centro-esquerda, que teve como expoente o ideário da cientista política belga Chantal Mouffe, notadamente por seus escritos acerca da Nova Democracia Ocidental, que prega o agonismo em contraponto ao antagonismo na Política, com abordagens multidisciplinares das forças existentes com valores para uma democracia saudável em resposta ao retorno na arena política mundial das lideranças autoritárias. Ele elegeu em quatro meses de existência cinco deputados para o Parlamento Europeu.

Além do Podemos, o movimento gerou o Confluências, com pessoas dispersas que iam para as praças se reunir de forma independente da sua orientação política, de modo a tentar reunir diferentes fluxos político-sociais, em uma proposta muito diferente de uma coligação ou aliança partidária.

Ninguém imaginaria que uma confluência chamada Agora Madrid retiraria do Partido Popular, o PP espanhol, a Prefeitura de Madrid.  No campo conservador, o Ciudadanos se apresenta com uma proposta liberal progressista, européia, chegando a alcançar 30% da preferência dos espanhóis, hoje já em queda livre em razão do impulsionamento do PSOE com a campanha de Pedro Sánchez. Mas acabou com a lógica bipartidarista da política espanhola.

No Chile, tivemos a Revolta dos Pinguins, grandes movimentos de rua impulsionados pelo Movimento Secundarista (o nome "pinguim" remetia ao uniforme escolar), ainda no Governo da Bachelet, contestando a pauta de políticas educacionais chilenas, de modelo privatístico, o modelo de voucher, defendido aqui no Brasil para o ensino superior privado.

No Brasil assistimos um processo similar, com a Revolta da Catraca e o eclodir do Movimento Passe Livre contestando o preço das passagens. Começaram como movimentos de pautas específicas, no melhor estilo de laboratório de ideias. No bojo da grande ebulição política que vivia e ainda vive o Brasil, esses ditos movimentos “apartidários” chegaram a contribuir, com sua parcela de participação, na derrubada do governo.

Com o  momento de instabilidade política dos detentores do poder de então, os setores conservadores sentiram a necessidade política de se organizarem em bases mais populares. Com isso, essas organizações começam a se apresentar à sociedade sem vinculação clara com os partidos conservadores, mas com quadros notoriamente ligados a partidos políticos desse viés. A grande maioria desses quadros desejava um novo fôlego para a defesa de suas ideias no Brasil, mas sempre negando o sistema político vigente ao dizerem que eles não atendiam ao status quo, ao sistema político atual.

Então, assistimos esses institutos começarem a influenciar a população usando como veículo de profusão a internet ao melhor estilo do slogan de apelo “Freedom for students”. Nesse contexto, vemos o Movimento Vem para a Rua, o MBL, que era uma plataforma “cívica”, com catalizadores da oposição ao governo passado nas redes sociais onde se destacaram lideranças políticas outrora bem esvaziadas, mas impulsionadas ao limite por essas ferramentas. Apesar de se apresentarem como plataforma “cívica” de movimento social, têm vínculo ideológico pautado e definido.

Na esquerda esse fenômeno também foi reproduzido, mas os vínculos partidários com os movimentos eram mais visíveis e explícitos, como por exemplo no caso do Juntos, do próprio Movimento do Passe Livre (MPL) e da Bancada Cívica em SP, com proposta de “mandato coletivo” que chegou a eleger representante na capital paulista.

Mais à frente, temos o aparecimento de plataformas que têm como finalidade propiciarem o impulsionamento para a vida política de “quadros cívicos” e não de quadros políticos, revelando novamente uma fuga do termo “político”. O que é fundamental asseverar para a reflexão da comunidade jurídica é que esses movimentos financiam políticos em um campo sem o controle e a fiscalização mais atenta das normas de regência eleitoral, quebrando o princípio da igualdade de condições entre aqueles que disputam o mesmo pleito, exigindo, por vezes, das agremiações partidárias receptoras de seus apadrinhados até  a assinatura de termos que criam diferenças odiosas entre comportamentos exigidos a parlamentares de um mesmo partido, gerando acentuado problema jurídico com a deflagração de diferentes normas de regência interna corporis, que flexibilizam o atendimento às exigibilidades estatutárias, ainda que com a anuência irresponsável de dirigentes no melhor estilo do “catch allparties”.

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