09/02/2015 - 15:43

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Qualidade do ensino jurídico em foco

09/02/2015 - 15:43

Qualidade do ensino jurídico em foco

Novas regras para abertura de cursos, Enade e marco regulatório em tramitação no MEC aquecem debate
 
VITOR FRAGA
Desde o fim de 2014, ficou mais difícil abrir uma faculdade de Direito. Após congelar os pedidos para a criação de novos cursos, em março de 2013 – quase 25 mil vagas ficaram bloqueadas desde então –, o Ministério da Educação (MEC) publicou no Diário Oficial da União, em dezembro passado, a Portaria 20/2014, que cria regras para controlar a proliferação desses estabelecimentos. Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), dados de 2010 indicam que existem no Brasil 1.240 cursos de Direito – mais do que em todo o resto do mundo, que totaliza 1.100 instituições. Entre outros critérios, como o aumento da nota mínima exigida, a portaria estabelece que o parecer favorável do Conselho Federal da OAB passará a ser uma das condições exigidas para o reconhecimento de faculdades.

A decisão vale também para os processos de autorização que já estão tramitando e ficaram congelados. Além da portaria, dois outros fatores jogam luz sobre a formação dos advogados: o novo marco regulatório do ensino jurídico, que vem sendo construído desde 2013, e o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade), que em 2015 volta a ser aplicado aos alunos de Direito – a última vez que a área fez parte da avaliação, trienal, foi em 2012. Todos esses elementos juntos levam a uma reflexão mais ampla: como anda a qualidade do ensino jurídico no Brasil?
 
Regras para abertura
De acordo com a Portaria 20/2014, os processos para autorização de novos cursos de Direito deverão conter: projeto pedagógico; comprovação de relevância social; prova da disponibilidade do imóvel; necessidade de indicação da existência de núcleo docente estruturante, responsável pela formulação do projeto pedagógico do curso, sua implementação e desenvolvimento (o núcleo deverá ser composto por professores com titulação em nível de mestrado e doutorado, contratados em regime de trabalho que assegure preferencialmente dedicação plena ao curso e experiência docente na instituição e em outras instituições), entre outros. Em uma escala de 1 a 5, os cursos que aguardam autorização para oferta de novas vagas terão que obter no mínimo nota 4 no Conceito de Curso (CC) – resultado de uma avaliação de fatores como infraestrutura e qualificação do corpo docente –, e não mais 3, como era antes.
 
O parecer do Conselho Federal ganhou mais relevância e, considerando que a Ordem se posicione contra a abertura, o curso só será autorizado pelo MEC caso a instituição obtenha nota igual ou superior a 4 no IGC (Índice Geral de Cursos), que leva em conta todas as graduações oferecidas – nesses casos, a nota mínima exigida também era 3. Segundo o artigo 5º da portaria, “os pedidos que preencham os requisitos previstos nos arts. 2º, 3º e 4º, e que obtiveram parecer favorável do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, poderão ser deferidos pela Seres [Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior], conforme os termos e condições estabelecidos na legislação educacional.” Já os pedidos que preencherem os requisitos e tiverem CC igual a 5 “poderão ser deferidos pela Seres independentemente do conteúdo da manifestação do Conselho Federal da OAB”.

A Portaria 20/2014 incorporou parte das sugestões levantadas pelo novo marco regulatório do ensino jurídico proposto pela Ordem. Nesse sentido, a presidente da Comissão de Ensino Jurídico (CEJ) da OAB/RJ, Ana Luisa Palmisciano, destaca a contribuição da entidade para a nova portaria. “Uma das propostas acolhidas foi a necessidade de os cursos comprovarem o cumprimento das obrigações trabalhistas dos docentes, como o pagamento de salários, recolhimentos previdenciários e depósitos de FGTS para fins de autorização, reconhecimento e renovação”, diz. Ela explica que a CEJ recebeu muitas reclamações de professores de instituições privadas de ensino sobre problemas para receber seus direitos trabalhistas.
 
Na opinião do presidente da Comissão OAB Vai à Escola, Rogério Borba, é importante considerar o peso maior do parecer da Ordem, a partir da portaria. “Após quase dois anos de discussão do marco regulatório, que ainda não está pronto, um ponto importante foi alcançado: a manifestação da advocacia no processo de autorização dos cursos, que era opinativa, passa a ser vinculativa. Com isso, a OAB terá mais capacidade de exigir das faculdades a implementação de medidas que julgar necessárias para a qualidade do ensino,” aponta.

No meio acadêmico, a portaria também é vista de forma positiva, porém com ressalvas. O professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Reinaldo de Almeida considera a valorização do parecer da OAB uma mudança limitada, mas importante. “Infelizmente, para atender aos interesses de empresários da educação, houve proliferação exacerbada de cursos jurídicos no Brasil a partir da década de 1990. Neste contexto, ocorreu a proletarização do professor de Direito, bem como se destacou o papel da OAB no sentido de ocupar este vácuo de poder. Creio que a necessidade de parecer favorável da Ordem e o respeito aos direitos trabalhistas dos professores representam um avanço tímido, porém necessário”, pondera. 

Para a estudante do 9º período de Direito da PUC-Rio e membro do Centro Acadêmico Eduardo Lustosa (Cael) Mariana Imbelloni, a portaria pode contribuir para elevar a qualidade dos cursos, mas não pode ser instrumento para dificultar a entrada no ensino superior. “Uma questão que me preocupava era que esse controle fosse contrário à democratização de acesso à universidade. Por isso a importância do critério da relevância social, que vem também na portaria, parece-me que justamente para prestigiar a criação de cursos com excelência onde o acesso ao ensino superior é mais precário. No entanto, é um critério aberto, e devemos ficar atentos à sua utilização”, observa. Ela defende que o parecer da OAB seja considerado. “Nitidamente a lógica mercadológica não foi eficaz e nem deveria ser o padrão de abertura e manutenção dos cursos. A OAB tem o conhecimento técnico e prático do mundo jurídico, e também uma preocupação social, o que torna seu parecer muito importante”, aponta Imbelloni.
 
Aluno do 9° período de Direito da UFRJ e membro do Centro Acadêmico Cândido de Oliveira (Caco), Eduardo Morrot também faz referência à questão do acesso ao ensino superior. Ele acredita que a portaria pode diminuir a criação de faculdades de baixa qualidade. “Temos uma explosão de cursos, já que é barato para as universidades e existe uma grande demanda no mercado de trabalho. O problema é que muitos deles são feitos apenas pensando no lucro das mantenedoras, não na formação do estudante”, critica. Morrot acrescenta que o parecer da OAB no momento da abertura do curso pode evitar que estudantes passem cinco anos em uma instituição ruim.
 
Enade 2015
Em 2015, os alunos de Direito voltam a ser avaliados pelo Enade. Dados da edição de 2012, divulgados pelo Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), órgão responsável pela prova, apontam que o conceito máximo (a gradação vai de 1 a 5, sendo que 1 e 2 são notas insatisfatórias) foi obtido por somente 4,5% dos cursos de Direito, e apenas 17% alcançaram nota 4. No Estado do Rio de Janeiro, nenhuma instituição obteve conceito 5.

Mas como os alunos enxergam o Enade? Segundo Mariana Imbelloni, de forma geral, os colegas não parecem dar muita importância ao exame, o que seria fruto do modelo de avaliação, “que parece visar a um ranqueamento das universidades e não uma real preocupação com o ensino efetivo”. Para ela, o formato do Enade é “generalista” e utiliza “perguntas padronizadas”, deixando de avaliar de forma eficaz tanto alunos quanto instituições. “Embora ache muito importante uma avaliação sistemática, feita pelo Estado, dos cursos em geral, não sinto que o modelo de prova tenha conseguido chegar ao resultado pretendido na avaliação”, afirma. Seu colega da UFRJ também critica o modelo que prioriza uma única prova ao fim da graduação. “Para avaliar de forma correta uma instituição seria necessário olhar também para a qualificação dos professores, das instalações, as atividades de pesquisa e extensão etc.”, argumenta Morrot. A nota dos estudantes no Enade corresponde a 70% do índice que mede o conceito dos cursos, sendo que os outros 30% são calculados a partir de outros dados, como títulos do corpo de professores e infraestrutura da instituição.

Na opinião de Reinaldo de Almeida, a avaliação de fato cria um ranking, e a partir de critérios equivocados. “É importante que o MEC desenvolva mecanismos de avaliação da qualidade do ensino jurídico. Porém, sou radicalmente contra o Enade e, quando acadêmico de Direito na Universidade Federal do Paraná, defendi o movimento de boicote à prova. Como professor, continuo não acreditando que o ranqueamento a partir de critérios mais ou menos aleatórios, segundo uma lógica privatista, bem como a distribuição desigual de recursos, especialmente nas universidades públicas, possa contribuir com o aumento da qualidade do ensino” critica. Borba observa que, mesmo com fragilidades, o Enade “é o instrumento de avaliação da qualidade dos cursos, e demonstrou na sua última edição um número considerável de instituições com notas 1 e 2”, o que indica qualidade insatisfatória.
 
Novo marco regulatório
Uma das mudanças propostas pelo novo marco regulatório altera, justamente, a participação das faculdades de Direito no Enade – regulada pela Lei 10.861/04, que instituiu o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes). A proposta apresentada pela Comissão Nacional de Ensino Jurídico (CNEJ) da OAB prevê que a periodicidade do exame para alunos passe a ser anual, e também que a nota obtida individualmente pelos acadêmicos “conste nos seus respectivos históricos escolares, de forma a estimular a busca de melhor desempenho”. 

Após receber contribuições da advocacia em 32 audiências públicas realizadas em todo o país entre 2013 e 2014, a proposta do novo marco regulatório do ensino jurídico elaborada pela CNEJ foi protocolada junto ao MEC em abril do ano passado, e ainda está em análise. Representante da OAB/RJ na construção do documento, Ana Luísa Palmisciano esclarece que a ideia é evitar a proliferação de cursos precários que acabam por formar bacharéis sem os conhecimentos necessários ao exercício profissional. Ela ressalta a importância de critérios tais como as condições de infraestrutura, do Núcleo de Prática Jurídica, além da existência de plano de carreira docente com programas de capacitação. A obrigação da necessidade social é outro ponto destacado pela presidente da CEJ. “O critério da necessidade social pretende frear a expansão das instituições ocorrida nos últimos anos e sugerir que apenas sejam autorizados cursos em locais onde exista efetiva necessidade”, completa.
 
Qualidade do ensino
Diante desse quadro, a qualidade do ensino jurídico deve estar presente de forma intensa na pauta da advocacia em 2015. Para Palmisciano, é preciso aprimorar a formação dos futuros profissionais. “É nesse sentido que a OAB/RJ, através da CEJ, tem participado da construção do novo marco regulatório. Acreditamos que ainda é preciso melhorar, especialmente em relação aos pedidos de abertura de novos cursos e na avaliação da qualidade dos que já existem. O fato de a nova portaria do MEC incorporar sugestões da Ordem foi muito positivo. Agora, é acompanhar a tramitação do novo marco regulatório”, salienta.
 
Segundo Borba, apesar de as faculdades agirem para corrigir defeitos e suprir deficiências, “seja por medo de sofrerem sanções do MEC, seja pelo temor de não atraírem bons alunos”, isso não é suficiente, pois “há a adoção de uma estratégia errada, que é focar o ensino e o método avaliativo no Exame de Ordem”, o que criaria uma falsa indicação de qualidade. “O Exame de Ordem não constitui forma de avaliação de curso jurídico, mas aferição da capacidade técnica de bacharéis oriundos desses cursos de se tornarem advogados. O curso de Direito não forma advogado, mas bacharel que pode vir a ser advogado. Há uma grande diferença”, compara.

Na visão dos estudantes, apenas a aquisição de conhecimento, sem o desenvolvimento do espírito crítico, ajuda a tornar a qualidade do ensino jurídico insatisfatória. “O foco cada vez maior dos alunos nos concursos e mesmo, infelizmente, no Exame de Ordem parecem contribuir com isso. Nos últimos períodos da faculdade parecemos nos preocupar cada vez mais com o que pode cair em tal concurso, e o aprendizado vai perdendo seu caráter crítico, questionador. A universidade deve fornecer as ferramentas para que o aluno lide criticamente com o conhecimento, mas não é isso que temos visto. Nem parece estar na mesa de discussões, o que preocupa”, lamenta Imbelloni.
 
O déficit na formação em pesquisa e extensão, sobretudo nas instituições privadas, foi outro ponto levantado. “A maior parte delas ainda engatinha na existência de projetos de pesquisa adequados a uma boa formação. Quando falamos em extensão a coisa fica pior ainda, raramente temos mais do que um Núcleo de Prática Jurídica. Para uma formação satisfatória não podemos apenas reproduzir conhecimento, precisamos produzir conhecimento novo e dialogar com a sociedade”, propõe Morrot.

Citando Roberto Lyra Filho, o professor Reinaldo de Almeida diz que o que se tem nas faculdades, grosso modo, é “o Direito que se ensina errado”. Para ele, os currículos, métodos e a didática são, de maneira geral, ultrapassados, dogmáticos e acríticos. “Um pouco se explica pela eterna disputa entre a tradição e o progresso, a estagnação de professores que não possuem formação continuada e diversos entraves burocráticos e políticos presentes em qualquer instituição. Destacaria a influência negativa dos concursos públicos que, em geral, possuem uma lógica massificadora, sendo muitas vezes tábua de salvação para milhares de estudantes em busca de altos salários e, não raro, nenhuma vocação para o cargo público”, critica, antes de concluir: “Precisamos repensar como preenchemos tais vagas públicas e mais: precisamos repensar a função da universidade como espaço de pesquisa e de formação acadêmica e cidadã.”

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