09/02/2015 - 15:27

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Feminicídio: uma nova qualificação para homicídio?

09/02/2015 - 15:27

Feminicídio: uma nova qualificação para homicídio?

Com base em pesquisas que demonstram grande índice de assassinatos por questões de gênero, projeto pretende incluir no Código Penal a morte de mulheres por serem mulheres

CÁSSIA BITTAR

A cada duas horas, uma brasileira é assassinada pelo simples fato de ser mulher, segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU). Diante de números que demostram um quadro assustador de violência no Brasil, o assassinato de mulheres por essa motivação pode se tornar uma forma qualificada de homicídio. Em dezembro foi aprovado, no Senado Federal, o Projeto de Lei 292/2013, que prevê a inclusão do feminicídio no Código Penal Brasileiro. A pena sugerida para o crime, conceituado como “forma extrema de violência de gênero que resulta na morte da mulher”, é reclusão de 12 a 30 anos, e a tentativa de homicídio também está prevista como crime.

O texto seguiu para votação na Câmara dos Deputados, onde ainda pode sofrer alterações. A origem do projeto é o relatório final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da Violência contra a Mulher, de 2013, que recomendou a tipificação especial para o assassinato por questões de gênero.

Ao justificar a proposta, a CPMI registrou, segundo a Agência Senado, o assassinato de 43,7 mil mulheres no país entre 2000 e 2010 – 41% delas mortas em suas próprias casas por companheiros ou ex-companheiros, na maioria dos casos. O aumento de 2,3 para 4,6 assassinatos por cem mil mulheres entre 1980 e 2010 pôs o Brasil na 7ª posição mundial de assassinatos de mulheres. El Salvador, Trinidad e Tobago, Guatemala, Rússia, Colômbia e Belize encabeçaram a lista.

“Dados estatísticos mostram que os crimes de violência contra a mulher não diminuíram no Brasil. Isso pode ser explicado com o fato de que, mesmo com a Lei Maria da Penha, somente cerca de 10% das agressões sofridas por mulheres chegam ao conhecimento da polícia, tendo em vista que, na maior parte das vezes, o agressor mora sob o mesmo teto que a vítima ou pode ser até responsável pela subsistência da família”, aponta a presidente da comissão OAB Mulher da Seccional, Rosa Maria Fonseca.

Rosa cita o estudo Mapa da Violência, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) em 2010, e atualizado em 2012, que mostrou aumento de 230% de assassinatos de mulheres de 1980 a 2010. Durante esses 30 anos, 92 mil mulheres foram mortas no Brasil.

Segundo o mapa, o Espírito Santo é o estado com a maior taxa de morte de mulheres por cem mil habitantes: 9,8. Em seguida, vêm Alagoas, com 8,3; Paraná, com 6,4; Pará, Mato Grosso do Sul e Bahia, os três últimos com 6,1. O estado com a menor taxa é o Piauí, com 2,5.

O mapa ainda apontou que o índice de mulheres jovens assassinadas foi superior ao do restante da população feminina. Em 2011, a taxa de homicídios entre mulheres com idades entre 15 e 24 anos foi de 7,1 mortes para cada cem mil, enquanto a média para as não jovens foi de 4,1.

Segundo Nadine Gasman, representante da ONU Mulheres, organismo das Nações Unidas que esteve envolvido na fase de elaboração do projeto, os dados revelam o sexismo que torna as mulheres jovens vítimas fatais de relacionamentos de controle e de dominação em namoros e outras relações afetivas: “Como a violência de gênero acontece cada vez mais cedo, temos de encontrar soluções para alertar a população, prevenir a violência e coibir essas ações por meio da Justiça e do acesso a direitos”.
 
O PLS 292/2013, segundo sua relatora, a senadora Gleisi Hoffman (PT/PR), visa a igualar o Brasil às 14 nações latino-americanas que já instituíram leis sobre feminicídio, com a finalidade de investigar e punir rigorosamente os assassinatos de mulheres com crueldade.

Nadine explica que é justamente na América Latina onde estão os países com as taxas mais altas de homicídios desse tipo no mundo. “Uma das questões que a ONU trabalha é esse grande índice na América Latina, mas, infelizmente, é um problema mundial, que reflete uma cultura misógina, de machismo patriarcal. Só para se ter ideia, uma em cada três mulheres já sofreu violência física, psicológica ou sexual em sua vida no mundo todo”, destaca.

A juíza Marixa Fabiane Rodrigues, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que participou das discussões sobre o projeto de lei a convite da ONU Mulheres, explicou em entrevista ao portal de notícias G1 que, apesar de outros países terem incluído o feminicídio como um crime isolado, o PLS 292/2013 propõe, aqui no Brasil, sua criação como qualificador de homicídio por uma questão estratégica: “Nosso Congresso Nacional é bem conservador, bem machista. Então, a gente acredita que a proposta do projeto que prevê a criação do feminicídio como um qualificador, vai ter mais força”, declarou ao site.

O PLS 292/2013 estabelece três circunstâncias para caracterizar o feminicídio, passíveis de ocorrer de forma isolada ou cumulativamente. A primeira é a relação íntima de afeto ou parentesco – por afinidade ou consaguinidade – entre vítima e agressor, seja no presente ou no passado. Outra hipótese é a prática de qualquer tipo de violência sexual contra a vítima, antes ou após sua morte. Por fim, a mutilação ou desfiguração da vítima, também antes ou após sua morte.

A pena é aumentada quando o feminicídio é praticado contra pessoas que apresentam maior grau de vulnerabilidade, explica Gleisi: “Gestantes, idosas ou menores de 14 anos, ou na presença de ascendente ou descendente da vítima”.

Para Nadine, um dos aspectos mais importantes é retirar da linguagem comum o termo “crime passional”: Essa expressão, segundo ela, “dá ideia de paixão, de querer tanto aquela mulher que a mata, e não é isso o que acontece. O feminícidio, na maioria dos casos, é planejado e há muito ódio refletido no corpo das vítimas”.

Nadine dá o exemplo do caso de uma menor assassinada acompanhado pela ONU Mulheres: “O pai da vítima falava, consternado: ´Ela foi morta com 17 facadas. Para quê? Uma ou duas já teriam a matado!´. Esse ódio, essa raiva, é mostrada na forma como o corpo dessas mulheres é mutilado e deixado no local do crime, exposto muitas vezes de forma degradante. Isso não acontece tanto entre os homens. A maioria dos assassinatos de mulheres tem alguma relação direta com seus corpos”, compara, simplificando:
 
“Feminicídio nada mais é do que mulheres serem assassinadas pelo simples fato de serem mulheres”.
Na votação no Senado, Gleisi lembrou que o feminicídio ocorre de diversas maneiras: “Ele pode ser expresso como forma de afirmação irrestrita de posse sobre a mulher, assim igualada a um objeto, quando o crime é cometido por um parceiro, um ex, um parente ou conhecido ou pela demonstração de menosprezo ou discriminação à condição da mulher, hipótese que abrange a situação de subjugação letal da intimidade e sexualidade da mulher e de mutilação ou desfiguração do seu corpo”, disse, em seu pronunciamento.

A ideia de inclusão do feminicídio no Código Penal, porém, já sofreu críticas sobre sua eficácia. Para Sandro Sell, advogado e professor de Direito Criminal na Univale, de Santa Catarina, o problema da violência contra a mulher existe mais por dificuldades com a aplicação da lei vigente do que por falta de novas. 
Advogado criminalista, o presidente da Comissão de Segurança Pública da OAB/RJ, Breno Melaragno, rebate: “A maioria dos colegas vai afirmar que esse projeto é desnecessário ou inócuo, uma vez que todo homicídio praticado por conta de violência de gênero ou violência doméstica é motivo torpe. Teoricamente está correto. Agora, os jurados é que vão decidir se a violência doméstica ou de gênero foi naquele caso um motivo torpe. O que essa lei faz? Já estabelece de antemão que violência doméstica e violência de gênero é homicídio qualificado, ou seja, que não precisa ficar sob interpretação de um jurado num caso concreto”, observa.

Segundo Breno, portanto, a questão não é puramente simbólica. “O projeto também tem esse mérito da conscientização, de o Estado falar para a sociedade que, no caso de um homicídio praticado por esses motivos, a pena vai ser mais grave. Mas também é muito válido pelo que, no Direito Penal, chamamos de prevenção geral”, explica.

Sell, porém, também questiona a abrangência da proposta, que, para ele, é uma lei de sexo, e não de gênero. “Esse projeto tem o mesmo problema da Lei Maria da Penha, reduzindo a proteção ao sexo feminino. Até hoje discutimos se ela se aplica à comunidade LGBT, por exemplo. Nesse caso, por que não incluir nas especificações dos homicídios por motivos torpes o ‘matar em razão de gênero´, sem dizer se é feminino ou masculino? Isso contemplaria também os homossexuais e transexuais e outras denominações”, sugere.

Ele continua: “A vida de uma mulher vale mais do que a vida de um homem? Isso não contraria a Constituição? O Direito Penal não é uma área que pode se submeter a essas diferenciações, não é área para políticas públicas. Se constituir motivo fútil ou torpe matar alguém por razão de gênero, que contemple a todos, para não corrermos o risco de criar proteções especiais e flexibilizar o valor da vida”.

Em relação à percepção da sociedade sobre a pena dos assassinos, uma pesquisa feita pelo Instituto Patrícia Galvão em parceria com o Data Popular, no ano de 2013, registrou que metade da população considera que a forma de punição da Justiça não reduz a violência contra a mulher.

“De fato, não basta ter lei, é preciso conseguir aplicá-la na sua efetividade”, afirma a editora do instituto, Marisa Sanematsu: “Temos o exemplo da Lei Maria da Penha, que é muito boa, mas não conseguimos ainda que ela cumpra totalmente seu efeito pedagógico de coibir a violência por meio da punição. Mas isso não tira a importância de se aprovar o projeto de lei do feminicídio. Ele também é muito necessário, mas é preciso aplicadores da lei trabalhando de forma adequada para que ela seja efetivada”.

Para Breno, a forma como a Justiça pune é importante para a conscientização sobre a violência de gênero: “Ao mesmo tempo em que eu acho que punir é a ultima instância em que o Estado deve atuar, penso que sim, punir cria uma cultura em relação a determinados comportamentos”. Ele acredita que os efeitos da Lei Maria da Penha são incontestáveis: “Vemos, sim, uma mudança de comportamento. Agora, isso não acontece de uma hora para outra e não é com todas as pessoas. Mas a propagação dos efeitos dessa lei faz com que, muitas vezes, no momento em que um homem, de maneira irracional, iria tomar uma atitude de violência, resolva parar”.

De acordo com a pesquisa do Instituto Patrícia Galvão, a sociedade não está alheia ao problema da violência contra a mulher. Apenas 2% da população nunca ouviram falar na Lei Maria da Penha, sete em cada dez entrevistados acreditam que a mulher sofre mais violência em casa do que em espaços públicos e 69% acreditam que a violência contra a mulher não ocorre apenas em famílias pobres, como se acreditava ser o senso comum até muito pouco tempo atrás, aponta Marisa.

“De uns anos para cá a sociedade entendeu que isso não é assunto só de marido e mulher e ninguém deve meter a colher, como no dito popular. Avançamos muito em dar visibilidade ao problema nas últimas décadas e hoje está sendo feito um trabalho no sentido de mostrar que essa é uma questão relacionada com saúde pública, polícia, segurança pública, e com o Direito”, observa a editora.

Segundo Nadine Gasman, a aprovação do projeto vem ao encontro do esforço para adoção do Modelo de protocolo latino-americano para investigação de mortes violentas por razões de gênero, proposto pela ONU Mulheres e pelo Alto Comissariado de Direitos Humanos das Nações Unidas no contexto da campanha do secretariado-geral da ONU Una-se pelo fim da violência contra as mulheres. 

O trabalho está sendo feito em conjunto por ONU, Governo Federal, Ministério Público, Defensoria Pública, entre outras entidades, e trata da adaptação do protocolo de investigação dos crimes de feminicídio, independentemente de sua tipificação no Código Penal. “O profissional, desde o instante que encontra o corpo da mulher, desde a fase de perícia, investigação, tem que estar preparado para identificar o feminicídio e aplicar uma pena justa. Para reconhecer misoginia é preciso conhecer o contexto e olhar a vítima com ótica do gênero”, salienta Marisa.

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