03/08/2018 - 21:04

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‘Posição de destaque do MP nas salas de audiências viola o princípio da isonomia’

03/08/2018 - 21:04

‘Posição de destaque do MP nas salas de audiências viola o princípio da isonomia’

Rubens Casara

O Pleno do Conselho Federal da OAB decidiu ingressar com ação no Supremo Tribunal Federal (STF), pedindo a declaração da inconstitucionalidade da Lei Complementar 75/93, que garante aos membros do Ministério Público (MP) "sentarem-se no mesmo plano e imediatamente à direita dos juízes singulares ou presidentes de órgãos judiciários perante os quais oficiem". Para o juiz Rubens Casara, da 43ª Vara Criminal do Rio, a ação é um importante passo para a democratização da Justiça Penal. “Há sobre o tema uma espécie de fetichismo: apresenta-se como natural a posição ocupada pelo MP e pela defesa nas salas de audiências, o que produz o velamento da violação aos princípios da isonomia e acusatório”, afirma Casara, que concedeu a seguinte entrevista à TRIBUNA (leia a íntegra no Portal da OAB/RJ: www.oabrj.org.br).

MARCELO MOUTINHO

Como avalia a ação proposta pela OAB ?

Casara - A ação proposta pela OAB busca democratizar o espaço destinado à instrução e ao julgamento dos casos penais, adequando-o ao sistema acusatório e à ideia de um processo de partes equidistantes do órgão julgador. Trata-se de importante passo para a democratização da Justiça Penal. Alcançar esse objetivo, porém, não será fácil, pois para alterar a concepção cênica das salas de audiências será necessário romper com uma tradição autoritária que não só condiciona a atuação dos diversos atores jurídicos como naturaliza tanto a desigualdade de planos entre acusação e defesa quanto o estigmatizante “banco dos réus”. Esse modelo cênico, caracterizado por reservar ao MP posição de destaque nas salas de audiência, enquanto a defesa técnica e o réu permanecem em plano inferior e afastados, atualmente adotado em pouquíssimos países, surgiu como experiência situada em quadra histórica marcada por uma visão de Estado que se apresentava em oposição ao indivíduo: um tempo em que o Estado-juiz e o MP, sem distinção nítida entre as respectivas funções, investiam contra o indivíduo que figurava como réu, muitas vezes anulando-o. Não por acaso, os defensores da manutenção de um espaço privilegiado à acusação revelam atitude que ignora o contexto sociológico e histórico, apresentando argumentos que pressupõem a des-historicização. A posição que o órgão de atuação do MP ocupa na sala de audiência não guarda relação com o exercício de suas funções constitucionais ou legais. Assim, não há como sustentar que a posição do assento insere-se dentre suas prerrogativas. Há sobre o tema uma espécie de fetichismo: apresenta-se como natural a posição ocupada pelo MP e pela defesa nas salas de audiências, o que acaba por produzir o velamento da violação aos princípios da isonomia e acusatório.

O senhor defende que a "estrutura cênica" nos julgamentos criminais deve obedecer ao princípio da isonomia entre as partes. Qual a importância dos elementos simbólicos?

Casara - O simbólico é o que dá sentido a todos os fenômenos. A realidade é constituída de palavras, imagens e da percepção que se tem dessas palavras e imagens. A linguagem, isto é, o fato de termos sido lançados em uma ordem simbólica ao nascermos, é o que nos faz humanos. Os elementos simbólicos são condições de possibilidade de qualquer julgamento. A concepção cênica da sala de audiências não é despida de interesse, uma vez que o simbólico que constitui os tribunais, inclusive a posição de cada protagonista da relação processual na sala, conspira à solução do caso penal. Em um tribunal, nada existe sem um sentido, sem uma funcionalidade concreta. A disposição cênica da sala se insere no registro simbólico e é recebida, consciente ou inconscientemente, pelas partes, pelo juiz e pela população, razão pela qual produz efeitos de sentido e afeta os julgamentos. A atual concepção cênica da sala de audiências criminais no Rio, por exemplo, revela e reforça a tradição autoritária que parte de uma pré-compreensão na qual o réu figura como mero objeto da atividade persecutória estatal e o advogado é visto como óbice à realização dos anseios punitivos. Ademais, a proximidade física de uma das partes com o juiz, ambos a exercer funções típicas do Estado, gera no imaginário popular a impressão de promiscuidade funcional, de contaminação da imparcialidade, não raro “confirmada” por conversas ao pé-doouvido entre acusador e julgador. Tal fenômeno é refletido em pesquisas que mostram que as pessoas não conhecem as verdadeiras funções do Judiciário e do MP na Justiça Criminal: isso faz com que frases como "o juiz me acusou" e o "promotor me julgou" sejam repetidas dia após dia.

O senhor foi alvo de nota de repúdio do MP por indeferir a prisão temporária de envolvidos num suposto esquema de fraudes no Detran. Os advogados de defesa reclamaram da recusa, pelo MP, de acesso aos autos. Não é uma prerrogativa?

Casara - O indeferimento do pedido de prorrogação das prisões temporárias teve por fundamento a percepção de que as medidas cautelares pretendidas pelo MP não eram imprescindíveis à investigação. O curioso é que, apesar da “nota de repúdio”, não houve recurso dessa decisão. Na nota, o que mais preocupa é o tratamento dado à prerrogativa da defesa técnica de acesso aos autos da investigação. Os investigados estavam presos e todos os atos urgentes haviam sido cumpridos, mesmo assim foi naturalizado o fato de os advogados afirmarem que lhes era negado o acesso aos autos, em franca oposição à jurisprudência dos tribunais superiores. Não há razão constitucionalmente adequada para se desconfiar do advogado e negar-lhe a possibilidade de controlar a legitimidade dos atos estatais praticados pela Polícia, pelo MP e pelo próprio Judiciário. A matéria encontra-se, inclusive, sumulada. A nota reforça uma tradição que enxerga o indivíduo submetido à persecução penal como um não-sujeito e os profissionais da defesa como óbices à eficiência punitiva. Mais do que uma prerrogativa do advogado, uma vez que existe e se justifica para assegurar o pleno exercício de uma função essencial à Justiça, o direito de acessar os autos integra a garantia constitucional da ampla defesa e a própria ideia de acesso à Justiça dos indiciados e réus.


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