03/08/2018 - 21:04

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O J'Accuse! de Ruy Barbosa

03/08/2018 - 21:04

O J'Accuse! de Ruy Barbosa

Livro reúne célebre texto de Émile Zola e ensaio escrito três anos antes pelo jurista brasileiro em defesa do capitão Dreyfus

MARCELO MOUTINHO

Publicado originalmente no jornal L´Aurore em 13 de janeiro de 1898, o texto J’ Accuse (Eu acuso!), de Émile Zola, consagrou-se como alerta contra os erros judiciários e libelo em favor do direito de defesa. No artigo, veiculado sob a forma de carta aberta ao então presidente da República, Félix Faure, o escritor acusava oficiais do exército francês de terem ocultado a verdade no processo em que o capitão Alfred Dreyfus fora condenado por espionagem e alta traição. O manifesto de Zola estampou a primeira página do diário, e, em poucas horas, esgotaram-se seus 300 mil exemplares.

Pouca gente sabe é que, três anos antes, Ruy Barbosa escrevera um ensaio sobre o caso. O texto foi enviado da Inglaterra, onde Ruy estava exilado, e veiculado no Jornal do Commercio. O cotejo entre os dois artigos, que embora tratem do mesmo tema apresentam visões distintas, é uma rica experiência agora possibilitada pelo livro Zola / Rui Barbosa, da editora Hedra.

Em formato de bolso, a obra traz, além dos textos, caricaturas publicadas em jornais de França, Holanda, Portugal e Rússia sobre o polêmico processo, e uma alentada apresentação assinada pelo escritor Ricardo Lísias, que traduziu J’Accuse. Na introdução, Lísias examina o caso e sua repercussão sob viés histórico, apontando a influência do anti-semitismo – Dreyfus tinha origem judaica – e as diferenças de perspectiva (e estilo) nas análises de Zola e Ruy.

“Ruy Barbosa objetivava expor para o Brasil o bom exemplo da Justiça britânica e, ao mesmo tempo, demonstrar o perigo para a justiça quando as emoções falam mais alto”, observa. Zola, por sua vez, aposta justamente na emoção como estratégia para mobilizar o público em prol do conhecimento dos fatos que o nebuloso processo insistia em esconder.

O contraste fica claro após a leitura dos dois textos. O autor de Germinal abre seu artigo listando os nomes dos envolvidos no episódio, para em seguida demonstrar como o processo foi maculado, inclusive com duvidosas evidências grafológicas e a negação de acesso às provas aos advogados de Dreyfus. Como salienta Lísias, para Zola “a verdade está exposta e precisa apenas chegar aos donos do poder, que estariam manipulando interesses subterrâneos e, ao mesmo tempo, sendo manipulados pela opinião pública”.

O tom é de revolta, pontuada por exclamações e muitos adjetivos — como os que aparecem no trecho em que critica os jornais: “É um crime ainda terem se apoiado na imprensa imunda, terem se deixado defender por toda a canalha de Paris, de modo que é essa canalha que triunfa insolenemente, diante da derrota do direito e da simples probidade”. Na parte final, Zola admite que, devido ao artigo, pode ser enquadrado na lei que pune os delitos de difamação. “É voluntariamente que eu me exponho”, afirma – de fato, ele acabou sendo multado e condenado à prisão, optando pelo exílio.

Já o artigo de Ruy – intitulado O processo do Capitão Dreyfus – se detém em argumentos de cunho jurídico. Contrapondo os sistemas judiciais francês e inglês, o Águia de Haia reproduz trechos de reportagens sobre o julgamento e destaca as inconsistências da condenação. “Ainda que sem fazer uso de termos técnicos, ele coloca lado a lado duas jurisdições para concluir pela vantagem da independência britânica quanto ao clamor popular”, anota Lísias.

Ruy ressalta o perigo da pressão popular sobre os julgamentos: “Não conheço excessos mais odiosos do que essas orgias públicas da massa irresponsável. (...) Se o número não souber a razão dos seus atos, o Governo popular não será menos aviltante do que os autocratas”. Destaca, também, um tema atualíssimo: a importância da transparência da Justiça. “A clandestinidade do processo inquina de suspeita as decisões mais justas. Os tribunais mais ilustres dependem, para a sua respeitabilidade moral, da luz, que derramam sobre o espírito público, do esclarecido assentimento, que neste conquistam”, defende.

Díspares mas complementares, os artigos de Émile Zola e Ruy Barbosa se espelham e se iluminam, lembrando uma época na qual, como realçou Lísias, os escritores não se limitavam a intervenções estéticas. Em que literatura e política caminhavam de mãos dadas.

Relembre o caso Dreyfus

­­ Em 1894, a interceptação de uma carta que conteria segredos estratégicos fez com que o Estado-Maior francês acusasse o capitão Alfred Dreyfus de alta traição. Baseado em frágeis evidências grafológicas e em um documento nunca revelado — nem mesmo os advogados de defesa tiveram acesso —, Dreyfus é expulso do exército com ato de humilhação pública e condenado a degredo na Ilha do Diabo. Ansiosa pela punição do culpado por crime e já contaminada pelo sentimento anti-semita que mais tarde se revelaria trágico para a Europa, a opinião pública do país apoia a decisão. O caso começa a sofrer uma reviravolta em 1896, quando surgem fortes evidências de que o autor da carta era, na verdade, o comandante Esterhazy. Após a publicação do texto de Zola e de protestos de intelectuais de todo o mundo, o governo francês resolve anistiar todos os envolvidos. Somente em 1906, no entanto, o exército enfim admite o erro e reintegra Dreyfus, que chega a receber uma medalha da Legião de Honra.

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