03/08/2018 - 21:04

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O CNJ sob ataque

03/08/2018 - 21:04

O CNJ sob ataque

WADIH DAMOUS*

A consolidação institucional do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) vem sendo intensamente posta à prova nos últimos meses. Animadas por uma declaração da corregedora nacional de Justiça obviamente retirada de contexto e amplificada – acerca da existência de “bandidos de toga” –, as associações de magistrados iniciaram e vêm mantendo um ataque feroz ao limite das competências do Conselho, com a clara intenção de enfraquecer sua atuação.

Até recentemente, a disputa vinha sendo travada no plano corporativo, o que justifica, até certo ponto, o extremismo de alguns argumentos e o caráter defensivo das entidades que representam a classe foco da atuação do CNJ.

Esse debate, que, tirando alguns argumentos exagerados e a defesa pura de posições corporativas, andava equilibrado e profícuo, foi desestabilizado por duas decisões monocráticas proferidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no último dia no ano judiciário de 2011.

A primeira, e mais relevante, foi proferida pelo ministro Marco Aurélio. Em suma, a decisão suspende a eficácia de quase todas as disposições da Resolução nº 135 do CNJ, a qual regulamenta o processo disciplinar perante o Conselho. O ponto central da decisão é a fixação do entendimento segundo o qual a competência do CNJ, em matéria disciplinar, é subsidiária ou recursal com relação à das corregedorias locais.

A segunda, proferida pelo ministro Lewandowski, paralisou a investigação que estava sendo realizada com base em informações de movimentações financeiras de magistrados e servidores fornecida pelo Controle de Atividades Financeiras (Coaf), a pedido do então corregedor nacional de Justiça, Gilson Dipp, e entregue no início do ano de 2011, já na gestão da ministra Eliana Calmon.

Em primeiro lugar, e antes mesmo de adentrar o mérito das decisões, é no mínimo curioso que ambas tenham sido proferidas monocraticamente e no último dia do calendário judiciário. Isso significa que tais decisões permanecerão vigentes, ao menos, até o início de fevereiro de 2012, quando termina o recesso do Supremo.

Por mais que se esforcem, os ministros não conseguem demonstrar, de forma minimamente convincente, em que aspecto reside o periculum in mora que os teria autorizado a conceder as medidas de urgência.

O ministro Marco Aurélio afirma que pediu, por diversas vezes, que o processo entrasse na pauta do plenário. Como não entrou, achou por bem deferir a liminar. Tal justificativa não é aceitável. Queira ou não, é prerrogativa do presidente chamar os processos a julgamento. Não se pode subverter essa regra pela via indireta da concessão de uma medida de urgência, especialmente quando não concorrem os requisitos para esta.

Além disso, o ministro afirma que vários magistrados poderiam ser processados originariamente por um órgão que, posteriormente, se decidisse só ter competência recursal ou subsidiária, o que impediria que se aguardasse o retorno do recesso do STF para possibilitar o julgamento colegiado. O detalhe despercebido neste argumento é que o recesso do CNJ coincide com o do STF. Não há, portanto, perigo de os processos tramitarem sem que o pleno do STF tenha oportunidade de analisar a questão da competência.

Adentrando agora o mérito, a questão central da decisão do ministro Marco Aurélio diz respeito à correta interpretação do art. 103-B da Constituição Federal, o qual dispõe sobre a competência do CNJ para processar disciplinarmente os magistrados, “sem prejuízo” da competência das corregedorias locais. É evidente a Constituição atribuiu a mesma competência para dois órgãos distintos. Nisso não reside nenhuma novidade. A Constituição estabelece, por exemplo, competência legislativa concorrente entre União, estados e Distrito Federal para determinadas matérias. Em ambos os casos, pode haver decisões ou normas conflitantes, mas o sistema está apto a lidar com isso. No caso da competência, pelos critérios estabelecidos nos parágrafos do artigo 24. No caso de decisões conflitantes da corregedoria e do CNJ, o critério é bem mais simples: hierarquia. Ninguém nega haver hierarquia entre as decisões das corregedorias e do CNJ, pois, até mesmo o ministro Marco Aurélio e quem mais defende sua decisão afirmam que o CNJ é órgão recursal.

Mas a questão não deve ficar apenas no plano gramatical e sistemático. Há que perquirir os aspectos teleológico e histórico do dispositivo, a fim de extrair seu real significado. Basta, para isso, lembrar que o CNJ foi criado justamente pela notória inoperância das corregedorias locais, que funcionam na base de intenso corporativismo. A origem e a finalidade da norma, portanto, residem na possibilidade de se recorrer a um órgão neutro e hierarquicamente superior. E não basta, para isso, a atuação subsidiária, pois a demora na tramitação do procedimento na corregedoria local e regras conflitantes sobre prescrição e decadência podem evitar a devida apuração dos fatos, e consolidar irregularidades.

Também a segunda decisão, proferida pelo ministro Lewandowski, deve ser criticada. Em suma, o ministro suspendeu a investigação da Corregedoria Nacional de Justiça acerca da movimentação atípica de quase R$ 1 bilhão por membros do Judiciário, nos últimos dez anos. Fundamentou essa decisão na mera possibilidade de quebra de sigilo bancário e fiscal.

A ministra Eliana Calmon já esclareceu, inclusive publicamente, que não houve quebra de sigilo ampla e genérica, tal como alardeado pelas associações de magistrados e acatado pelo ministro relator. Assim, essa decisão, até que seja apreciada pelo colegiado, impedirá a apuração de fatos potencialmente gravíssimos, tais como a movimentação de quase R$ 283 milhões por apenas uma pessoa ligada ao Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região (TRT-1), episódio que, em tese, pode se configurar na maior irregularidade já constatada no Poder Judiciário brasileiro.

Esse fato, por si só, demonstra a essencialidade do CNJ como órgão neutro de controle do Poder Judiciário, bem como o caráter antirrepublicano das iniciativas que visem a diminuir seu poder institucional de atuação, especialmente no que toca aos eventuais desvios éticos dos magistrados.

* Presidente da OAB/RJ


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