19/08/2015 - 12:21

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Seccional defende famílias afetivas e repudia projeto que exclui direitos

19/08/2015 - 12:21

Seccional defende famílias afetivas e repudia projeto que exclui direitos

Propostas que tramitam na Câmara dos Deputados restringem direitos apenas às famílias formadas por um homem, uma mulher e seus descendentes. Famílias constituídas pelo afeto e filhos adotivos ficam excluídas
 
NÁDIA MENDES
Um ato conjunto realizado pelas comissões de Direito de Família e de Direito Homoafetivo da OAB/RJ marcou a posição da Seccional em relação ao Projeto de Lei 6583/2013, conhecido como Estatuto da Família. A redação da proposta exclui uniões homoafetivas, famílias por adoção, monoparentais, casais sem filhos e outras formações familiares.  A OAB/RJ acredita nas diversas composições e repudia qualquer forma de exclusão. O evento aconteceu em 13 de julho, na sede da Seccional.

O presidente da OAB/RJ, Felipe Santa Cruz, frisa que as famílias que tenham filhos adotivos não serão resguardadas pela lei, caso seja aprovada. “Precisamos deixar claro que a sociedade atual não tolera qualquer tipo de discriminação. São mais de seis mil crianças privadas de convívio familiar aguardando por adoção. Mesmo que sejam adotadas por um casal formado por homem e mulher não serão protegidas por essa lei, que não as contempla. Não podemos aceitar esse retrocesso. É importante existir uma lei para as famílias, mas é preciso que ela integre todas as formações existentes hoje na sociedade, não pode ser uma lei excludente”, argumenta.
No ato, foram expostos os problemas que a aprovação do projeto acarretaria a todos que seriam diretamente impactados por ele. “Esse estatuto não terá força para mudar a sociedade”, destacou o presidente da Comissão de Direito de Família da OAB/RJ, Bernardo Garcia. Ele considera o PL uma aberração jurídica que visa a marginalizar todas as famílias que não são constituídas por um homem e uma mulher. Ressaltou, entretanto, que mesmo que não sejam reconhecidas, existem diversas formações familiares e que a lei não vai mudar isso. “Parece-me que quem defende esse estatuto pensa, erroneamente, que a sociedade mudará quando se começar a negar direitos às novas famílias, sendo que, na verdade elas serão marginalizadas e terão seus direitos negligenciados”, explicou.

Defendendo a inconstitucionalidade do estatuto, a presidente da Comissão de Direito Homoafetivo da OAB/RJ, Raquel Castro, reiterou que o projeto é retrógrado e que acredita na sua rejeição. “É importante marcar a posição política da Seccional sobre esse assunto. A própria Constituição garante os direitos das famílias homoafetivas, mas a proposta não exclui apenas estas famílias, e por isso o ato foi realizado em conjunto com a Comissão de Direito de Família. É preciso assegurar o direito de todos”, frisou. Silvana do Monte Moreira, que integra a comissão e organizou o ato, concordou. “Nada é mais diverso que a concepção de família”.

Responsável pela 3ª Vara de Infância, Juventude e Idoso da Capital do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), a juíza Mônica Labuto justificou que os direitos das crianças e famílias têm que ser garantidos independentemente da nomenclatura que se dê na legislação. “As famílias já estão constituídas, elas não podem deixar de existir. As pessoas já se casaram, crianças já foram adotadas, inclusive em adoção monoparental, que também não está prevista nesse estatuto, além das famílias oriundas de divórcio em que os enteados compõem o núcleo familiar. Não há como mudar essa situação fática”, observou.

Ela fez um histórico das leis de adoção no Brasil desde 1979, quando apenas pessoas casadas há mais de cinco anos, salvo em caso de esterilidade de um dos cônjuges, estavam aptas a adotar, de acordo com o Código de Menores, documento que versava sobre a adoção na época. Também era preciso que os cônjuges tivessem mais de 30 anos. E não se permitia a adoção monoparental, exceto em caso de viuvez, caso o estágio de convivência do menor tivesse se iniciado antes do falecimento do cônjuge.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990, revogou essa lei e permitiu a pessoas maiores de 21 anos, de qualquer estado civil, que adotassem. Em 2009, a permissão foi estendida para maiores de 18 anos, também comprovada a estabilidade. “Tanto na lei vigente hoje quanto na de 1979 não havia a menção das palavras homem e mulher para identificar o casal. A lei atual não gera dúvidas em relação à adoção homoafetiva. Mas ao explicitar que é preciso comprovar a estabilidade do núcleo familiar, o estatuto pode gerar divergências em relação à união de pessoas do mesmo sexo. A interpretação da adoção homoafetiva é anterior à decisão do Supremo em relação à união estável, já que o ECA não diz em momento algum que a família é formada apenas por um homem e uma mulher. Não há no projeto uma vedação à adoção homoafetiva, mas ele pode gerar essa interpretação restritiva”, salientou Mônica.

Outro problema caso o estatuto seja aprovado é o da definição de normalidade. Todas as situações que não estiverem contempladas na lei serão tidas como desviantes, o que pode acarretar problemas psicológicos para as crianças e adolescentes inseridos nessas outras formações familiares. A psicóloga do TJ Glícia Brazil defendeu esse ponto. “Havendo um modelo de família, o que fugir disso será tido como fora da norma. Com o tempo, o risco é que a sociedade passe a julgar as famílias que estiverem fora desse padrão”. 

Glícia disse acreditar que, ao estabelecer um padrão de família, a tolerância a situações fora da norma vai diminuir. “A nossa crença em relação ao assunto vai ser limitada. Com o tempo, o risco é que a gente passe a julgar algo que já está sendo introduzido na nossa realidade, que é a família formada pelo afeto. A sociedade está começando a aceitar algo que não era culturalmente aceito porque a percepção foi ampliada. No momento em que se limita a percepção, a tolerância pode se tornar muito menor e isso é preocupante para as crianças e jovens, futuros adultos. Esse estatuto veio no sentido oposto de tudo o que nós aprendemos ao longo desses anos de prática forense”.

Segundo o procurador de Justiça Sávio Bittencourt, a magistratura brasileira foi vanguardista em garantir os direitos dos casais homossexuais. Em 2011, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a união estável entre casais homossexuais e em 2013, o Conselho Nacional de Justiça aprovou uma resolução que obriga os cartórios do Brasil a realizarem casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Já em relação ao estatuto, ele disse que o conceito restritivo de família vai contra o que foi construído até então com histórias e famílias reais. “Esse conceito é essencialmente metajurídico e não cabe no estandarte da lei”, enfatizou.

O procurador discordou da intenção de se dizer por meio da lei o que é o afeto das pessoas. “A pretensão que o Direito tem de explicar o que é uma família estará sempre a reboque das transformações que a sociedade nos traz. A ideia pela qual nós, do mundo do Direito, achamos que presumidamente temos a condição de fixar um conceito definitivo de família e estabelecer que aquele seja o modelo aceito e ideal, restringindo os direitos apenas às pessoas que se encaixam nesse modelo, será analisada no futuro com o mesmo nojo histórico com que se analisa hoje aquele jurista que defendia a possibilidade da escravidão ou, na época de Hitler, a eugenia”. Para ele, além do preconceito, é uma desumanidade que só se coloque sob proteção jurídica as pessoas que estão dentro de um modelo estabelecido.

Bittencourt levantou outra omissão na proposta, além do conceito restritivo de família. Ao explicitar na redação que o núcleo familiar é formado por um homem, uma mulher e sua descendência e sem nenhuma menção específica da adoção como forma de criação de família, estas ficariam excluídas. “Assim, você pode instituir uma visão preconceituosa, limitada, ofensiva de não contemplar a família adotiva. A chamada família tradicional adotiva também não está contemplada. E, desse modo, se ofende a criança que está na instituição, privada do carinho do pai e da mãe, esta criança que merece um destino feliz e de afetividade”. 

No evento, Alyson Harrad Reis lançou seu primeiro livro, chamado Jamily – A holandesa negra. A história de uma adoção homoafetiva, e contou sua história de mudança de vida. Alysson nasceu no Rio de Janeiro e depois de ser adotado por Toni Reis e David Harrad se mudou para Curitiba, em 2011. Em 2013, chegaram os irmãos Filipe e Jéssica, também nascidos no Rio. Ele ressaltou que a adaptação não foi fácil, mas aos poucos aprendeu que ter pais gays não era um problema. “Percebi que eles apenas eram diferentes, mas nossa família é uma família. Pagamos os mesmos impostos, vamos ao mesmo mercado e merecemos ser reconhecidos como família”, disse.

Toni e David completaram 25 anos de união em 2015. Para Toni, é preciso resguardar os direitos das diferentes famílias, já que no dia a dia elas enfrentam os mesmos problemas e têm o mesmo afeto que as tradicionais. “Para reconhecer os nossos direitos não é preciso que ninguém perca os seus. Não somos contra a família, pelo contrário, somos tão a favor que também quisemos constituir a nossa. Mas ninguém merece ser descriminado”.
 
O PL 6.583/2013
O presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, criou em fevereiro deste ano uma comissão especial para proferir parecer em relação ao PL 6.583/2013. De acordo com o regimento interno da casa, o projeto tramitaria por 40 sessões e seguiria para votação em plenário. Entretanto, o prazo tem sido prorrogado em decorrência de audiências públicas que estão sendo realizadas nos estados para discutir o texto nacionalmente. Inicialmente, o PL teria tramitação conclusiva nas comissões.

O autor da proposta, deputado Anderson Ferreira (PR/PE), diz que é necessária uma ampla discussão sobre a promoção de políticas públicas que valorizem a instituição familiar. “A família vem sofrendo com as rápidas mudanças ocorridas em sociedade, cabendo ao poder público enfrentar essa realidade, diante dos desafios vivenciados pelas famílias brasileiras”. Entre esses, ele pontua a epidemia de drogas, a violência doméstica, a gravidez na adolescência e a desconstrução do conceito de família. Ele também retoma, na justificativa, a definição de que a entidade familiar é formada por um homem, uma mulher e seus descendentes.
 
STF reconhece união
O primeiro passo dado pelo Judiciário em relação à igualdade entre casais heterossexuais e homoafetivos no Brasil ocorreu em 2011. O então ministro do STF Carlos Ayres Britto reconheceu a união estável entre casais do mesmo sexo. Segundo ele, mesmo que a Constituição Federal disponha que a entidade familiar é formada por homem e mulher, não proíbe a formação de família a partir de relação homoafetiva. “A Constituição não obrigou nem proibiu o uso da sexualidade. Assim, é um direito subjetivo da pessoa humana, se perfila ao lado das clássicas liberdades individuais”, afirmou, em seu voto.

Toni Reis e David Harrad entraram, em 2005, com um pedido de habilitação de adoção conjunta. Foram autorizados a adotar apenas meninas com mais de dez anos. Eles recorreram ao Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR), que entendeu que estavam habilitados a adotar sem restrição. Porém, o Ministério Público paranaense foi ao STF e ao STJ contra a decisão do TJPR, alegando que a Constituição não prevê outras constituições familiares exceto aquela formada por um homem e uma mulher.

Em março deste ano, esse recurso foi votado no STF e a ministra Cármen Lúcia reconheceu a adoção, sem restrição de sexo ou idade, pelo casal, seguindo o entendimento da decisão de 2011. Em seu voto, ela ponderou que o Direito Constitucional serve contra todas as formas de preconceito e que é função do tribunal defender e garantir que seja cumprido. “Pede-se seja obrigatório o reconhecimento, no Brasil, da legitimidade da união entre pessoas do mesmo sexo, como entidade familiar, desde que atendidos os requisitos exigidos para a constituição da união estável entre homem e mulher e que os mesmos direitos e deveres dos companheiros nas uniões estáveis estendam-se aos companheiros nas uniões entre pessoas do mesmo sexo”.  

Em 2013, uma resolução do Conselho Nacional de Justiça obrigou os cartórios brasileiros a realizarem o casamento entre pessoas do mesmo sexo. A resolução estabelece que eles devem cumprir a decisão de 2011 do STF e, ainda, converter a união estável em casamento civil. 

Decisão semelhante aconteceu na Suprema Corte dos Estados Unidos, em junho deste ano, que legalizou o casamento homoafetivo em todo o país, por cinco votos a quatro. Dos 50 estados americanos, 13 ainda proibiam a união entre pessoas do mesmo sexo.
 
 

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