19/08/2015 - 12:35

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Audiência de custódia: barreira contra o aumento da população carcerária

19/08/2015 - 12:35

Audiência de custódia: barreira contra o aumento da população carcerária

RENATA LOBACK
Fevereiro de 2014. Num dia como outro qualquer, Vinícius, que havia acabado de sair do trabalho, caminhava até sua casa. Sem entender o porquê foi abordado por policiais e uma mulher, que, nervosa, afirmava a semelhança dele com a pessoa que acabara de levar sua bolsa. Vinícius acabou preso, mesmo sem portar o objeto do roubo ou qualquer outra prova do delito. Somente após os apelos de familiares e amigos, que promoveram uma campanha nas redes sociais, foi liberado para responder o processo em liberdade, depois de ficar 16 dias encarcerado.

O caso do vendedor e ator Vinícius Romão aconteceu exatamente um ano antes de o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em parceria com o Ministério da Justiça e o Tribunal de Justiça de São Paulo, lançar o projeto Audiência de custódia, que consiste na garantia da apresentação do preso a um juiz em até 24 horas nos casos de prisões em flagrante. Nesta oitiva, além da garantia de o acusado ter uma rápida defesa de um advogado ou defensor público, o juiz poderá analisar a prisão sob o aspecto da legalidade, da necessidade e da adequação de sua continuidade ou eventual concessão de liberdade, com ou sem a imposição de outras medidas cautelares. Eventuais ocorrências de tortura ou maus-tratos, entre outras irregularidades, também serão observadas dentro desse prazo.

O processo de Vinícius Romão já foi extinto, ficou comprovado que, de fato, apesar de possíveis semelhanças, ele não era o ladrão. “Foram 16 dias que marcaram a minha vida. Minha história teria sido diferente se o procedimento fosse feito da forma correta. Sou a favor das audiências de custódia, porque esses erros grosseiros, infelizmente, acontecem com frequência. E nem todo mundo tem a mesma oportunidade de chamar atenção das autoridades com uma campanha que dê repercussão. Eu fiquei 16 dias, há pessoas que ficam meses e anos”, lamenta. 

O Brasil possui a quarta maior população carcerária do mundo, com 563.526 presos, atrás apenas dos Estados Unidos, China e Rússia. Todos os dias milhares de pessoas são detidas por suposto flagrante. Na cidade do Rio de Janeiro, a prisão é aplicada antes do julgamento em 72% dos casos. Após a audiência, apenas 40% são levados a uma condenação de prisão. No primeiro semestre do ano passado, foram registradas 565 mortes violentas no sistema prisional brasileiro, segundo dados recentes do Departamento Penitenciário Nacional (Depen). A principal causa dessa violência, na opinião de especialistas, é a superlotação, que se deve em parte à quantidade de detentos não julgados, 222 mil. Em junho de 2014, as unidades destinadas a presos provisórios apresentavam taxa de ocupação de 192%. 

Para o coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF) do CNJ, juiz Luís Geraldo Sant’Ana Lanfredi, as audiências de custódia irão atuar diretamente para a diminuição do inchaço do sistema. “O encarceramento causa danos a quem está preso, mas sobretudo a quem não deveria estar. O primeiro passo como medida estruturante para este colapso é uma melhor qualificação da porta de entrada”, afirma Lanfredi.

De acordo com o coordenador do DMF, além de trazer impacto positivo para o sistema carcerário, essas audiências protagonizam uma mudança de paradigmas no sistema de Justiça criminal. “Elas são uma providência concreta para fazer frente à ideia de que, com a prisão, tudo se resolve. Cultura essa que se instalou e está enraizada na forma como agem os atores da Justiça criminal, também contaminando o pensamento de todos os setores da sociedade, que têm dificuldade de perceber que a prisão, isoladamente, não resolve o problema da criminalidade. Mais presos, mais presídios e mais prisões não estão trazendo a segurança que todos desejamos”, observa Lanfredi.

Para a presidente do Conselho Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro, coordenadora geral do Fórum Nacional de Conselhos Penitenciários e representante da OAB/RJ na Coordenação Nacional de Acompanhamento do Sistema Carcerário, Maíra Fernandes, tal projeto respeita normas de natureza infraconstitucional e supralegal descumpridas pelo Brasil há mais de dez anos, como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, conhecida como Pacto de San Jose da Costa Rica.

 “Atualmente, o juiz recebe o auto de prisão em flagrante no prazo de 24 horas (artigo 306, § 1º do Código de Processo Penal), mas decide sobre a legalidade da prisão, a aplicação de medida cautelar, a fiança, a liberdade provisória, a substituição por prisão domiciliar ou, o que é mais comum, a conversão em prisão preventiva, com base somente em um papel, ou seja, sem qualquer contato com o preso. Tal só ocorrerá meses (ou mesmo anos) depois, na audiência de instrução e julgamento”, detalha Maíra. 

Segundo ela, a ausência de oitiva do preso logo após o flagrante é uma das grandes responsáveis pela desumanização do sistema, que banaliza a prisão e encarcera em demasia. “Prender um pedaço de papel não há de gerar dor de consciência”, diz. 

De acordo com o presidente da Comissão de Segurança Pública da OAB/RJ, Breno Melaragno, é um absurdo que cerca de 40% da população carcerária seja provisória: “Desse montante, mais de 20% têm a pena reduzida ou são absolvidos após o julgamento. Isso significa que mais da metade das pessoas que estão, hoje, no sistema carcerário sequer deveria estar ali”.

Segundo ele, o projeto de audiências de custódia tem todo o apoio da OAB/RJ. “Este é um procedimento jurídico que existe em quase todos os países e o Brasil ainda está muito atrasado. A Lei 12.403/2011 melhorou no que se refere à prisão em flagrante delito, mas não avançou nas oitivas com juízes. Um magistrado expedir uma ordem de prisão com base na cópia de autos está longe de ser o ideal”, analisa Melaragno.

Considerado prioritário na atual gestão do CNJ, o projeto, que começou por São Paulo, já foi implantado no Espírito Santo, Maranhão, Minas Gerais e Mato Grosso. Segundo as primeiras estatísticas, a quantidade de prisões preventivas desnecessárias diminuiu em até 40%. No Tribunal de Justiça (TJ) maranhense, o índice de liberdade concedida é ainda maior – 60%.

Desde maio, o projeto vem sendo desenhado no Rio de Janeiro com a criação, pelo TJ, de uma comissão formada por desembargadores, juízes, membros do Poder Executivo, da Defensoria Pública e representantes da área de segurança pública. A ideia do grupo é viabilizar um cronograma de implantação e definir sua estrutura física e funcional.

Atualmente, estima-se que existam 40 mil presos no Rio, entre julgados e provisórios. “As audiências de custódia vão representar uma redução da população carcerária. Existem muitas prisões cautelares que certamente não seriam necessárias. A possibilidade de controle judicial mais eficaz da legalidade do flagrante, avaliação mais célere acerca da necessidade de manutenção da prisão ou adoção de medidas alternativas ao cárcere e a redução, por conseguinte, dessa superpopulação, são os aspectos positivos deste projeto”, reforçou o desembargador do TJ, Paulo de Oliveira Lanzellotti Baldez, que coordena o trabalho da comissão.

A presidente do Conselho Penitenciário do estado destaca alguns dos cuidados que devem ser tomados. Particularidades que, segundo ela, o próprio CNJ já prevê, como não considerar o depoimento do preso contra ele, uma vez que as audiências de custódia não podem ser configuradas como interrogatórios; local para exame de corpo de delito pelo Instituto Médico Legal, antes da oitiva; e centrais de alternativas penais, de monitoração eletrônica, de serviços e assistência social e de câmaras de mediação.

Em reunião com o secretário de Administração Penitenciária do Rio de Janeiro, coronel Erir Ribeiro Costa Filho, em junho, a OAB/RJ solicitou apoio para a implantação das audiências de custódia no estado. Na ocasião, Costa Filho afirmou que todas as ações efetivas para esvaziar o sistema penitenciário são válidas. “As audiências em 24 horas vão ajudar muito o sistema penitenciário, que está sobrecarregado. Grande parte desses detidos serão absolvidos e é necessário considerar isso para que o sistema possa avançar”, disse o coronel, na ocasião.

De acordo com o desembargador Paulo Baldez, os trabalhos da comissão de instalação das audiências de custódia no TJ estão sendo realizados em parceria com o CNJ e a previsão é de que sejam implantadas até outubro. 
 

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