16/03/2015 - 13:09

COMPARTILHE

No meio do caminho tinha um livro

16/03/2015 - 13:09

No meio do caminho tinha um livro

Desembargador do TRT espalha, propositalmente, livros pelas cidades. Iniciativa recebeu apoio da CCR Barcas

RENATA LOBACK
Se um dia encontrar um livro ou CD ao entrar em algum transporte público do Rio de Janeiro ou de Niterói, não se espante. Pode ser fruto dos “deslembramentos” do desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região José Geraldo da Fonseca, ou Zé, como prefere ser chamado. Zé espalha livros pela cidade há cerca de 15 anos. Desde outubro, no entanto, a proposta de cultivar o hábito da leitura ganhou reforço: a CCR Barcas, empresa que administra o sistema de travessia Rio-Niterói, tomou iniciativa inspirada no antigo costume do desembargador.

Uma barca, que Zé pega quase que diariamente, era o destino da maioria dos “esquecimentos”. Um dia, decidiu “esquecer” um livro nos ônibus, no metrô, nos táxis e nos caixas automáticos dos bancos, porque considerava estes lugares seguros, conta. “Quando me mudei para Niterói e comecei a trabalhar no Rio, todo dia eu deixava uns dois ou três livros escondidinhos em um canto das barcas. Mas, observando o trabalho da equipe de limpeza, notei que meu plano tinha uma fragilidade e os livros poderiam ser encaminhados ao setor de achados e perdidos, antes de serem encontrados por algum leitor em potencial. Foi então que decidi procurar a empresa. Mandei um email à ouvidoria da CCR confessando o meu ‘crime’ e sugerindo a criação de bibliotecas abertas em cada embarcação”, diz.

De acordo com o diretor de operações da CCR Barcas, Francisco Pierrini, há algum tempo a empresa investe na construção de um espaço voltado para a cultura. “Criamos o Espaço Cultural CCR barcas, no acesso às estações. Um local que serve também como propulsor de figuras anônimas do cenário cultural nacional, que podem expor ali suas obras, músicas e livros. Em paralelo, o desembargador nos procurou com o objetivo de criar locais para doação e empréstimo de livros. Foi uma sinergia com o nosso projeto”, comenta o diretor.

A assessoria de comunicação da empresa concebeu uma estante em formato de livro, chamada Biblioteca Livre, e a instalou no Centro Cultural aberto na estação Charitas-Praça XV, ponto final das barcas de Niterói, Charitas e Paquetá. “Deixar os livros na barca, como o desembargador sugeriu, poderia incomodar os passageiros no horário de pico”, explica.

“O projeto manteve as características empregadas por José Geraldo. Na Biblioteca Livre não há controle no acesso dos usuários aos livros. É um espaço aberto, para que as pessoas peguem os títulos e CDs de interesse e deixem, caso queiram, novos livros. Nesses quatro meses (o projeto foi inaugurado em outubro) já passaram em torno de 500 obras pela biblioteca. Esta iniciativa é uma prova de cidadania e respeito. E uma parceria com nossos usuários”, afirma o diretor de operações da CCR. Segundo ele, o projeto migrará para as outras estações, “permitindo que passageiros das demais linhas também recebam o incentivo à leitura.” 

Formar um novo leitor é o melhor destino que um livro pode ter, salienta o desembargador José Geraldo da Fonseca. Dono de extensa coleção, Zé comenta, que, por uma época, o acúmulo foi um problema na sua vida. “Aos poucos pilhas de livros se espalhavam pela casa. Faltava espaço até mesmo para os novos títulos que eu queria adquirir. Então veio a necessidade de me livrar de tantos volumes, ou, como prefiro dizer, ‘deslembrar’ alguns títulos. Assim como Manoel de Barros, também adoro brincar com a língua e criar novas palavras. Deslembramento é o que mais reflete minhas doações. Mesmo que a raiz da iniciativa não tenha tido um propósito nobre, já que era só para me ver livre do excesso, nunca considerei vender, jogar fora ou entregar os livros a um sebo”, destaca.

O gosto pela doação tornou-se parte da rotina do magistrado. “Comecei a pensar, então, no destino que os livros teriam. Alguém cuidadoso poderia achá-los e entregar para a administração do local, pensando que o dono pudesse voltar para recuperar o objeto esquecido. Foi quando tive a ideia de botar bilhetinhos dentro de cada volume, para que as pessoas soubessem que era intencional, um ‘deslembrar’ pensado. Passei a escrever: ‘Não perdi esse livro. Deixei-o aqui de propósito para que você achasse. Leia e depois coloque em um lugar seguro, para que outra pessoa possa encontrá-lo. Faça com seus CDs e livros o mesmo que viu aqui’”, lembra Zé. 
 
O amor do desembargador pela leitura tem origem em uma infância humilde, mas alimentada por histórias. Nascido no interior de Caraguatatuba, litoral norte de São Paulo, José Geraldo foi criado em uma fazenda de plantação de bananas. O pai era cortador e a mãe, dona de casa. Como não havia energia elétrica, era costume familiar sentarem-se todos a cada noite, ao redor do fogão de lenha, para ouvir as histórias dos mais velhos. “Nossa cultura era oral, como em toda roça. Os adultos contando causos para as crianças. Não tinha eletricidade, o rádio era de pilha e a brasa era o que alimentava a nossa imaginação. Foi uma infância rica de histórias, de informações e de alucinações”, conta José Geraldo. “Até hoje eu alimento a tradição do contar histórias com minha esposa e filhos. Só que minha voz deve ser tão chata que rapidinho eles desmaiam”, comenta, aos risos.

Quando passou a ter acesso aos livros, Zé conta que ler virou uma compulsão: “Eu leio de bula de remédio a receita de bolo. Com esta mania e também incentivado pela profissão, que exige muita leitura, acabei acumulando muitos livros.”

Há 37 anos na magistratura, José Geraldo não se considera um desembargador normal. A começar por suas sentenças, escritas, por vezes, em formato de versos. “A sociedade exige do juiz uma postura full time, como se não fôssemos pessoas, como qualquer um. Entendo, em parte, que em muitos casos precisamos ser assim, mas tratam o magistrado como alguém impedido de relaxar. E nós somos normais, na maioria das vezes. Transitar nessa mídia, muito específica, e num universo de pessoas que cobram da gente o que não conseguem ser, é muito complicado. E eu sou o tipo de juiz que faz sentenças em versos, cria palavras e as coloca nos despachos. As pessoas acham um horror. Acham brincadeira e um acinte. E não é. É apenas a forma com que eu me expresso melhor. É claro que tenho que saber com o que estou mexendo. Dependendo da situação não posso dar uma de engraçadinho”, reconhece.

Apesar da paixão pela leitura e pela escrita, em especial a dos versos, Zé até hoje só publicou livros jurídicos. Segundo ele, falta coragem para se aventurar na linha humana da literatura. “Eu não sou poeta, sou rabiscador de versos. E sou virginiano. Dizem que virginiano morre inédito. Vou deixar um livro pro post mortem com um testamento assim: Por favor, publiquem cem anos após a minha morte. Até lá todos que me amam ou me odeiam já terão morrido, evitando que eu decepcione alguém”, diz, em tom de brincadeira.

O crescimento da sua iniciativa solitária, com o sucesso da Biblioteca Livre nas barcas, tem sido motivo de orgulho para o desembargador. “Sinto-me fazendo algo útil, que acrescenta na vida e no dia a dia das pessoas”, afirma. Ele pretende sugerir a aeroportos, bancos, shoppings, supermercados e órgãos públicos que repliquem a ideia. “O custo é baixo e o retorno, muito grande. As pessoas também podem adotar esta atitude individualmente, distribuindo por aí livros que já leram e não utilizam. É uma forma inteligente e barata de disseminar cultura e informação”, acredita.

Zé nunca conseguiu flagrar alguém pegando um dos seus ‘esquecimentos’ e tampouco se recorda do primeiro título deslembrado. Um CD, autografado, de Adriana Calcanhoto, foi a última doação à Biblioteca Livre. Mas apesar de contar com um lugar fixo, o desembargador não abandonou o velho hábito. 

“Ontem (dia 24 de fevereiro), por exemplo, ‘deslembrei’ Humor nos tempos de Collor, do Jô Soares, na agência do Santander da Miguel de Frias, em Niterói. Nunca tive curiosidade de ficar à espreita vendo se alguém pegou ou o que fez com o que achou. Hoje pela manhã deslembrei nas barcas Roma e o Direito, de Michèle Ducos. Escolhi esse livro de propósito. Pela manhã, há muitos estudantes de Direito nas barcas, achei que o interesse dos passageiros poderia ser maior. Às vezes tenho isso, escolho o livro de acordo com o tipo de público, que provavelmente vai estar ali; noutras vezes, não penso nada disso. Simplesmente pego os livros em excesso e saio espalhando, como sementes. Se caírem em solo bom, vingam”.

Abrir WhatsApp