16/03/2015 - 12:32

COMPARTILHE

A loucura no cárcere

16/03/2015 - 12:32

A loucura no cárcere

Quatorze anos após a promulgação da lei antimanicomial, situação de pessoas com transtornos mentais encarceradas ainda é preocupante. Para profissionais que atuam na área, é preciso olhar para os loucos infratores sem preconceito

AMANDA LOPES

Historicamente, a sociedade buscou maneiras de lidar com a questão da loucura quase sempre isolando aqueles que apresentavam sintomas de insanidade. Nos dias de hoje, o tema ainda é envolto por estigmas e preconceitos. Quando transtornos psicológicos se misturam a comportamentos criminosos, as dúvidas são ainda maiores: de que maneira se deve tratar e ressocializar o chamado louco infrator? Duplamente rotulados por receberem portadores de doenças mentais que também são autores de delitos, os manicômios judiciários ainda são o destino de muitos cidadãos brasileiros que cumprem as chamadas medidas de segurança – quando cometem crimes, as pessoas cujos laudos psiquiátricos apontam problemas mentais não são condenadas a penas comuns, mas a esse tipo de sanção, cuja duração vai depender da avaliação de médicos, psicólogos e juízes.

Nem sempre o acompanhamento dessas medidas de segurança, no entanto, é feito de maneira satisfatória, fato que teve como consequência, em passado bastante recente, a reclusão por vezes perpétua de pacientes. Qualquer pessoa que faça uma breve pesquisa sobre essas instituições vai se deparar com casos de homens e mulheres que permaneceram internados por longos períodos, ultrapassando frequentemente o limite de 30 anos de pena privativa de liberdade determinado pelo Código Penal, em se tratando de presos comuns.

A promulgação da Lei 10.216/2001, conhecida como Lei Antimanicomial, objetivou evitar que situações assim se repetissem e assegurar os direitos das pessoas com transtornos mentais, redirecionando o modelo assistencial.  Foram extintos 70 mil leitos em hospitais psiquiátricos no país e as internações passaram a ser permitidas apenas nos casos em que o tratamento extra-hospitalar se mostrar insuficiente. Apesar de o texto legal estar em vigor há cerca de 14 anos, a situação vem se modificando de forma gradativa.

Titular da 20ª Defensoria Pública do Núcleo do Sistema Penitenciário (Nuspen) do Rio de Janeiro, Patrícia Magno tem lembrança de um caso de abandono já em tempos de aplicação da lei. Trabalhando no Hospital Penal Psiquiátrico Roberto Medeiros, em 2002, ela conheceu um paciente cujo processo trazia decisão judicial de desinternação concedida na década de 1980. “Quando analisei o processo de um senhor, Nilo, na Vara de Execuções Penais, me deparei com a sentença, seguida de várias manifestações da Defensoria Pública e do Ministério Público em que um órgão lançava ao outro a ‘batata quente’ de quem seria a responsabilidade de encontrar a família. Quando retornei ao Nuspen, um tempo depois, perguntei sobre ele. Morreu no manicômio, sem chance de respirar novamente o ar da liberdade”, lamenta.

Apesar dos problemas, Patrícia vê melhorias acontecendo. “A Lei Antimanicomial e a política de saúde construída com fundamento de validade nela hoje é mais conhecida. Mas ainda há muito trabalho a ser feito. E, sim, tem-se de ficar atento para que outros Nilos não faleçam por omissão do Estado”, reitera. 

Advogado criminal e membro do Conselho Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro, Rodrigo de Oliveira Ribeiro é mais um a enxergar o futuro com esperança. “Nos últimos anos, as defensorias públicas construíram nos tribunais superiores o entendimento de que o período de internação não poderia ultrapassar 30 anos, e atualmente casos assim são mais raros”, observa, citando as ações que já foram desenvolvidas pelo próprio conselho na tentativa de coibir maus tratos e obter mais direitos para os internados: “No ano passado, realizamos inspeções nos hospitais psiquiátricos do Rio de Janeiro e apresentamos ao Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária proposta sobre medida de segurança para o próximo decreto de indulto. Também em 2014, apresentamos ao Conselho Nacional de Justiça [CNJ], em petição conjunta com a OAB/RJ, proposta de descentralização da Vara de Execuções Penais do estado, com a criação de uma vara especializada apenas em medidas de segurança.”

Autora do recém-lançado livro Manicômio judiciário: da memória interrompida ao silêncio da loucura, da editora Appris, a psicóloga Elza Ibrahim atuou durante 27 anos no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Heitor Carrilho – hoje transformado em instituto de pesquisa e abrigo – e critica a falta de acompanhamento dos processos por advogados e juízes. Ela considera que a medida de segurança pode ser algo muito perverso e, por conta disso, os casos deveriam ser observados mais de perto. “Se eu cometo um crime e vou para uma prisão comum, sei que tenho direito à liberdade condicional, ao indulto de natal, à redução de pena. Para o louco infrator, a pena é ad infinitum. Ele sabe a data em que entra, mas não sabe se vai sair ou quando. Isso fica nas mãos dos médicos, psiquiatras, psicólogos e dos operadores do Direito”, argumenta.  

A psicóloga afirma que, na época em que trabalhava no Heitor Carrilho, não havia defensor público atuando no local e o serviço de advocacia era realizado por uma equipe que atendia também a outras unidades prisionais. “Faltava tempo para eles”, diz. Ela também se queixa do desinteresse dos juízes. De acordo com Elza, a maior parte dos magistrados que julga os processos criminais dos chamados loucos infratores não conhece a realidade dos manicômios: “O juiz não chega perto, na maioria das vezes. Se eles executam a medida de segurança, então tinham que ter acesso [às informações] não só através dos laudos, mas também de visitas. Isso está na lei e eles não cumprem”. 

Juiz criminal, Rubens Casara concorda em parte com a psicóloga, mas ressalta que é importante evitar generalizações. “Não raro, os atores jurídicos (juízes, promotores de justiça, defensores públicos e advogados) trabalham a partir de uma visão que descontextualiza, simplifica ou simplesmente ignora os graves e complexos problemas que cercam a realidade dessas unidades. Por evidente, não se pode generalizar. Existem, nas diversas agências estatais, profissionais que buscam conhecer a realidade, comprometidos com a transformação do atual quadro e que trabalham cientes de que a loucura é uma construção social e que o atual tratamento conferido aos loucos tem uma finalidade política”, pondera.

Casara ressalta, também, que ainda há magistrados com uma compreensão a respeito da loucura povoada de preconceitos e mitos. Isso inclusive causa, segundo ele, divergências em relação à aplicação das medidas de segurança. Ainda que o CNJ recomende que essas sanções sejam cumpridas na rede pública de saúde, alguns magistrados interpretam que os pacientes devem ser internados no sistema penitenciário, ou seja, nos manicômios judiciários. “Muitos ignoram o potencial libertário da Lei 10.216/2001. Juízes por todo o Brasil ainda atuam a partir da ideologia da ‘defesa social’, que divide a sociedade entre o bem e o mal, entre pessoas sadias e perigosas. Dentro dessa lógica maniqueísta, os loucos são percebidos e tratados como perigosos e/ou disfuncionais, que precisam ser excluídos, silenciados e neutralizados através da internação. E a internação, que deveria ser uma medida de exceção, como recomendam os estudiosos e até o CNJ, acaba por se tornar a regra”, diz ele. 

Para Patrícia Magno, a falta de conhecimento envolve não só os juízes, mas todos os profissionais que tratam da área. “A começar pelos professores, nas universidades, pelos estudantes de Direito que, em sua maioria, não se interessam pelo tema, pelos advogados, defensores públicos, promotores de justiça. São poucos os que se sentem provocados a ir além do conhecimento tradicional, arregaçar as mangas e buscar soluções efetivas e dialogadas para a construção interdisciplinar de saídas duradouras dos muros dos manicômios”, afirma a defensora. 

Rodrigo também reconhece que o desinteresse pelo tema da reclusão vem das salas de aula: “Quando estudava Direito na universidade, cursei Segurança Pública, uma disciplina eletiva. Fizemos duas excursões, uma ao presídio Frei Caneca e outra ao Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Henrique Roxo. De uma turma com 50 alunos, apenas cinco visitaram a unidade penal, e somente quatro visitaram o manicômio. Destes, apenas um aluno acompanhou as duas excursões, eu. Essa experiência é um retrato do sistema, menos de 2% se interessaram pela questão. De todas as áreas do Direito, essa é a que menos profissionais se encontram aptos a enfrentar e possivelmente é a que menos conhecem”.  

Para que o cenário realmente se modifique, na opinião de Elza, é necessária uma mudança de cultura. “Naturalizam-se as situações. E os operadores que trabalham na área da psicologia, da saúde e do Direito têm que desnaturalizá-las. Como se pode esperar que se vá dar um laudo favorável [aos pacientes] se nós mesmos cronificamos essas pessoas lá dentro? Não estou dizendo que a questão não é complicada, mas os profissionais dificultam ainda mais. Veem essas pessoas com preconceito e elas vão se deteriorando, a autoestima vai ficando menor. Acredito que para mudar, a quebra de paradigmas tem que partir dos profissionais. A modificação só vai se dar através de uma visão crítica”, avalia a psicóloga.
Na opinião de Patrícia, a mudança de cultura também é primordial. “O Brasil tem sido palco, desde o final da década de 1980, de uma intensa, corajosa e, sob alguns aspectos, exitosa luta antimanicomial. Ocorre que erguer a bandeira da desinstitucionalização significa, necessariamente, conviver com o paciente psiquiátrico no dia a dia. Desinstitucionalizar significa derrubar os muros dos manicômios. E neste sentido é, sim, uma total reformulação de valores, uma modificação radical da cultura até então prevalente com humanização e respeito aos direitos da pessoa com transtornos mentais, privada de liberdade.”

Quanto a isso, Elza é ainda mais enfática: “Essas pessoas precisam de acompanhamento, porém não são diferentes de nós em nada. Na verdade, os manicômios funcionam como depósitos, mas ninguém reconhece. Dizem que são hospitais de custódia e tratamento, mas não são”. 

No âmbito jurídico, Casara defende que o Poder Judiciário atue como garantidor dos direitos fundamentais dos chamados loucos infratores. “Para tanto, é necessário desvelar os preconceitos e os silêncios que cercam a loucura, com a criação de uma cultura democrática no interior do sistema de Justiça criminal. Os atores jurídicos estão inseridos em uma tradição autoritária que condiciona a criação das normas aplicadas no dia a dia forense; que acredita em respostas de força para o fenômeno da loucura e aposta na exclusão dos doentes mentais nos chamados manicômios judiciais. É importante romper com essa postura e desvelar o sujeito que se encontra etiquetado de louco”, sugere.

Atualmente, no Rio de Janeiro, funcionam dois manicômios judiciários: Roberto Medeiros, dentro do Complexo Penitenciário de Bangu, e Henrique Roxo, em Niterói. As duas unidades têm hoje 213 pacientes cumprindo medidas de segurança.

Um dia do tamanho de uma vida inteira
 
Interno no Hospital Heitor Carrilho durante dois anos, entre 1996 e 1998, João Guilherme Estrella, que ficou conhecido após o filme Meu nome não é Johnny, relata, em depoimento à TRIBUNA, sua experiência em um manicômio judiciário. Ao contrário da maioria dos pacientes, João não sofre de distúrbios mentais, mas foi submetido a uma medida de segurança pela juíza federal Marilena Soares Franco, devido às suas condições como usuário de drogas na época.

“Meu primeiro contato com aquela realidade durou apenas um dia, que foi do tamanho de uma vida inteira. A noite de sono da véspera, a ida para o camburão, a claustrofobia controlada com respiração e belas imagens, a expectativa de que a perícia desse certo e ajudasse na condução do julgamento e o tipo de ambiente que iria encontrar. Procurei, no início, o contato com os 10% de presos que pareciam ter algum sinal de sanidade em seus rostos e diálogos primários.

A primeira noite e o primeiro dia não foram fáceis. Dormi no chão, achei que ia morrer. Conheci um traficante homicida de Angra, um chefe de morro do Rio, um cara que sumiu no forro do teto por 20 minutos e voltou com dois estoques enormes e, em vez de me matar, me presenteou com um. Logo após me presentear, entrou em um surto que primeiro pensei ser puro teatro. Mas depois começou a bater a cabeça na grade e a pedir, aos berros, um ‘sossega leão’. Ele se tornou meu amigo, convivemos na mesma cela, jogamos no mesmo time e caçamos ratos.

Na manhã seguinte, um travesti que era HIV positivo cortou os braços, ameaçando esguichar sangue em todo mundo se a transferência de seu namorado não fosse cancelada. Viramos colegas.

Tenho centenas de situações marcantes, tanto negativas como positivas que me aconteceram no manicômio. A que me deixou um mês e meio em estado de alerta foi a primeira de três tentativas de me tirarem a vida. Eu estava na cela sozinho, tomando banho de manhã cedo, como fazia todos os dias. Aproveitava que todos saíam para o café e era um dos poucos momentos de paz. Colocava uma música, trancava a cela com um cadeado meu e ficava horas no banho.

Naquele dia, esqueci de colocar o cadeado. Um cara me aguardou sair do chuveiro com um banco de madeira bem pesado para arrebentar minha cabeça. Minha sorte é que um amigo voltou à cela para buscar cigarros, me avisou da tocaia e pude me defender, impedindo o desfecho trágico.

O outro fato foi no dia espetacular em que marquei o gol do título do torneio local, na prorrogação. Na mesma ocasião recebi a notícia tão esperada de que passaria o Natal e o Reveillon em casa, com a família e os amigos.
Guardo essa experiência de prisão, de manicômio, de sobrevivência na selva humana e de conhecimento dos mais diferentes tipos de pessoas e seres da nossa espécie, como um tesouro. É o gatilho de lembranças que muitas vezes utilizo para me manter no rumo, respeitando a todos sem distinção, inclusive a mim mesmo, e procurando melhorar e amadurecer sempre.

Não vejo muita saída para os manicômios judiciários porque eles têm um índice de sucesso muito pequeno na recuperação dos pacientes, e não vejo também a possibilidade de sucesso no fato de simplesmente acabar com eles e mandar essas pessoas para as ruas. Grande parte delas já não tem ninguém e a maioria das que têm não é aceita por suas famílias. As pessoas que administram esses lugares e suas verbas também não têm muito interesse em investir na melhoria do atendimento. Os manicômios são cidades perdidas dentro dos centros urbanos ou em colônias agrárias.”

 

Abrir WhatsApp