17/10/2013 - 14:10

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Vida pública, informações privadas

17/10/2013 - 14:10

Vida pública, informações privadas

Qual é o limite entre liberdade de expressão e direito à privacidade? Em relação a pessoas públicas, o direito à privacidade é naturalmente menor? Estes são questionamentos antigos na área cultural, mais especificamente no que se refere à produção de obras biográficas sobre personalidades. A dualidade entre as garantias constitucionais já foi responsável, no Brasil, por diversas disputas de autores de livros e editoras com biografados ou seus herdeiros. E, agora, dois projetos de lei que tramitam em conjunto na Câmara, além de uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF), dão novo fôlego à batalha.
 
Apresentados pelos deputados Newton Lima (PT/SP) e Manuela D'Avila (PCdoB/RS), os PLs 393/11 e 395/11, respectivamente, pretendem abolir a proibição à publicação de biografias não autorizadas. Para isso, os dois textos preveem a alteração do artigo 20 do Código Civil brasileiro, que estabelece que a divulgação de informações ou imagens pode ser proibida se "atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade" dos retratados ou se o biógrafo não tiver autorização de herdeiros ou de biografados. A ideia já foi apresentada em um projeto de 2008, assinado pelo então deputado federal Antônio Palocci, exministro da Casa Civil. Na época, o texto chegou a obter parecer favorável do relator, o agora ministro da Justiça José Eduardo Cardozo, mas foi arquivado com o fim da legislatura.
 
"Inspirei-me no projeto original do Palocci, atualizando-o em alguns pontos, mas mantendo sua essência", explica Lima. "Hoje, com o apoio que temos de setores culturais, nossa chance de levar essa proposta adiante é muito grande. Esperamos que até o final do ano esta lei possa ser sancionada", vislumbra.
 
Os projetos de Lima e de Manuela - também baseado no de Palocci e anexado ao PL 393/11 - propõem uma nova redação ao artigo 20, com a inclusão de um parágrafo estabelecendo que a ausência de autorização "não impede a divulgação de imagens, escritos e informações com finalidade biográfica de pessoa cuja trajetória pessoal, artística ou profissional tenha dimensão pública ou esteja inserida em acontecimentos de interesse da coletividade".

O texto foi aprovado pela Comissão de Educação e Cultura da Câmara e está na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, onde recebeu parecer favorável do relator, o deputado Alessandro Molon (PT/RJ). Segundo Lima, a próxima votaçãodeverá acontecer ainda no primeiro semestre para depois, se aprovado, o projeto seguir para o Senado.
 
"Entendemos que pessoas públicas interferem na história do Brasil, e, portanto, é preciso que haja uma distinção entre o seu direito à privacidade e o das pessoas comuns, a exemplo do que já é aplicado em outros países. Este é um dos ônus da fama", observa o deputado, que considera a necessidade de aprovação prévia às biografias uma espécie de censura.
 
Em paralelo à tramitação dos projetos, a Associação Nacional de Editores de Livros (Anel), órgão ligado ao Sindicato Nacional de Editores de Livros (Snel), entrou em 2012 com uma ação no Supremo com o mesmo argumento dos deputados: a inconstitucionalidade parcial dos artigos 20 e 21 (este dá ao juiz autonomia para tomar qualquer providência em prol do direito à vida privada) do Código Civil, com o pedido de suspensão da necessidade da autorização prévia para a produção de biografias.

Entendemos que pessoas públicas interferem na história do Brasil, e, portanto, é preciso que haja uma distinção entre o seu direito à privacidade e o das pessoas comuns
Newton Lima
deputado federal (PT/SP)
O advogado Gustavo Binenbojm, responsável pela ação, concorda que os artigos provocam um efeito de censura institucionalizada: "Em um país que obriga a submissão prévia de uma obra de conteúdo histórico a interesses pessoais, as pessoas só terão acesso a relatos filtrados".
 
Binenbojm conta que o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro ingressou na ação recentemente, como amicus curie. "É de interesse histórico alterar a interpretação que vem sendo dada, pois a livre exposição de dados públicos é o que constrói a identidade nacional. Como não somente obras literárias sofrem com esse entrave, a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) também já se manifestou no sentido de nos apoiar", relata.
 
O presidente da Comissão de Direito Autoral, Direitos Imateriais e Entretenimento da OAB/RJ, Helder Galvão, é a favor da alteração: "O artigo 20, em sua atual redação, gera três consequências: a primeira é o poder excessivo dado aos herdeiros que, com a justificativa de defesa do direito de personalidade do retratado, acabam proibindo as obras quando estas não lhes convêm. A segunda, do ponto de vista do mercado, faz com que editoras não queiram correr o risco de publicar biografias não autorizadas que contenham opiniões contundentes contra terceiros. E a terceira é a produção de biografias chapas-branca, em que os personagens retratados participam da produção, lapidando as informações e comprometendo a neutralidade da obra".

"Nenhum biógrafo tem o direito de assinar uma 'biografia' autorizada, pois o verdadeiro autor dela é o próprio biografado ou a família deste - ou os advogados contratados por eles", opina o jornalista e reconhecido autor de biografias Ruy Castro. O escritor foi alvo de dois processos movidos pelas herdeiras de Garrincha devido ao livro Estrela solitária: um brasileiro chamado Garrincha (Companhia das Letras), que ficou fora de circulação por 11 anos.
 
No depoimento enviado à Tribuna do Advogado, Ruy, que também é autor de O anjo pornográfico – A vida de Nelson Rodrigues e do recente Carmen – Uma biografia, sobre a trajetória de Carmen Miranda (ambos pela Companhia das Letras), justifica sua aplicação de aspas quando fala em documentações autorizadas: "Nenhum biógrafo digno de seu nome se sujeitaria a fazer uma 'biografia' autorizada. Se fizer, só poderá ser chamado de 'biógrafo'", ironiza.
 
"Vivemos um tempo de retrocesso evidente. A cada vez que um editor precisa considerar elementos que não aqueles inerentes ao seu fazer, dá-se um passo atrás no terreno da livre circulação de ideias", observa o editor de não ficção da Record, Carlos Andreazza.
 
"Não se avalia um original hoje apenas pela força de seu argumento, pela qualidade de seu texto e pelas suas possibilidades de mercado. É preciso lê-lo com olhar jurídico e antecipar possíveis problemas. Discutimos hoje com o autor não a fraqueza literária de uma passagem cujo texto pode melhorar, mas a vulnerabilidade de determinada referência, que precisará ser removida de modo a que evitemos um processo", observa.

Nenhum jornalista ou biógrafo terá problemas, com a atual redação, em lançar uma biografia factual. Ele só não pode centrar em um assunto que a pessoa não quer que seja abordado, pois ela tem o direito de se preservar
Marco Antonio Bezerra 
advogado de Roberto Carlos
Segundo Andreazza, a discussão não coloca em questão a responsabilidade do editor pelas informações que publica: "Não quero uma janela para sair desonrando pessoas públicas.  Mas algo grave ocorre quando o editor se aproxima do covarde".
 
Já o advogado Marco Antonio Bezerra Campos, que atuou em favor do cantor Roberto Carlos no caso judicial que culminou com o veto à circulação do livro Roberto Carlos em detalhes (Planeta), de Paulo César Araújo, em 2007, não concorda com o argumento. Para ele, o artigo do Código Civil trata de uma proteção, que deve ser administrada pelo Judiciário.
 
"Não tenho dúvidas de que quando uma pessoa aceita ter vida pública ela implicitamente renuncia a uma parte da proteção à sua privacidade. Mas isso não quer dizer que não tenha nenhuma. Se uma pessoa pública é fotografada dentro de seu apartamento sem consentimento, por exemplo, ela sofreu uma invasão", opina Campos. Segundo ele, atualmente não há restrição à produção de textos: "Nenhum jornalista ou biógrafo terá problemas, com a atual redação, em lançar uma biografia factual. Ele só não pode centrar em um assunto que a pessoa não quer que seja abordado, pois ela tem o direito de se preservar".
 
Para Galvão, porém, a mudança não implicaria a divulgação de informações sigilosas da vida pessoal do retratado: "Esses dados continuarão protegidos, já que o texto só dispõe sobre fatos públicos. Se houver conteúdo falacioso, o biografado ou seus parentes terão a possibilidade de entrar com uma ação normalmente", explica.
 
Andreazza identifica a "figura do advogado de porta de editora", que fica à espreita de lançamentos e identifica potenciais brechas para um processo. "Esse profissional costuma procurar as famílias ou herdeiros e lhes mostrar uma boa chance de ganhar dinheiro", alega.
 
Campos rebate: "Não conheço nenhum caso no Brasil de aplicação exagerada do artigo 20 pelo Judiciário. Eu me pergunto se as pessoas que redigiram os projetos de lei ou as que pedem a alteração do código abririam mão de 100% de sua privacidade. O artigo não fere a liberdade de expressão e é aplicado com absoluta razoabilidade".
 
Segundo Galvão, com a mudança, "as editoras ficarão mais seguras e os autores terão mais liberdade para escrever, ajudando assim na pluralidade de ideias". A questão sobre quem define uma pessoa como pública, que Lima atribui aos autores das obras, é que passará, para ele, a nortear a discussão.
 
"Venha do processo político legislativo ou do processo judicial, o importante é o Brasil acertar o passo
com a vida contemporânea civilizada, pois vivemos um retrocesso e quem mais perde é a sociedade", diz Binenbojm, aguardando a decisão que poderá abrir as portas para esse que é um dos filões mais rentáveis do mercado de livros.
 

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