30/05/2016 - 12:28

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O que se esconde na delação premiada

30/05/2016 - 12:28

O que se esconde na delação premiada

JUAREZ TAVARES*
 
Já durante a campanha presidencial, grandes e tradicionais grupos de mídia passaram a veicular, incessantemente, trechos de uma suposta gravação do depoimento de um dos principais envolvidos num complexo esquema de lavagem de dinheiro, que poderiam interferir no resultado das urnas e prejudicar uma das candidaturas. As informações teriam sido prestadas após acordo de delação premiada entre juiz e acusado, com aval do Ministério Público. Pouco se questionou o efetivo valor jurídico desses depoimentos, ou as consequências no processo penal de seu vazamento seletivo pelos meios de comunicação. Após as eleições, as delações se tornaram a regra do processo investigativo, com os mesmos vazamentos seletivos.

Mesmo longe de períodos eleitorais ou desvinculada de finalidades nitidamente políticas, a delação premiada é um instrumento extremamente controvertido dentro do Direito Processual Penal. Se é defendido por uns, como modelo de eficiência, é também gritante sua incompatibilidade com as garantias constitucionais inerentes a regimes democráticos. Há direitos fundamentais que não podem ser renunciados pelo indiciado ou acusado, como o de pleitear do Judiciário a reparação de ato que o prejudique, de interpor recursos, de se insurgir contra coação processual, de não se submeter aos ditames da outra parte, de ser tratado com isonomia e de ser considerado presumidamente inocente até a sentença condenatória definitiva. A violação desses direitos transforma em prova ilícita todas as informações prestadas pelo delator, que devem ser, por isso mesmo, eliminadas dos autos. Como o Direito brasileiro acolheu a teoria extrema da prova ilícita, pela qual ficam contaminados todos os atos que a ela se vinculem, o procedimento penal daí decorrente é também juridicamente imprestável.

A delação premiada e sua prática induzem, por sua vez, a conclusões fantasiosas. Como se por trás do instituto houvesse uma lógica muito mais forte do que a defesa de direitos fundamentais. Não surpreende que ela obedeça aos mesmos ditames do mercado. Alega-se, por exemplo, o anacronismo de nosso modelo processual para combater sofisticados esquemas de criminalidade e propõe-se flexibilizá-lo em nome do aumento de produtividade. A perda das garantias do acusado é compensada com a ampliação de outros direitos não menos fundamentais. Além do mais, o acusado permanece livre para decidir e fazer um bom negócio. São argumentos bastante próximos do senso comum, mas sobretudo de um certo pensamento econômico radical, um discurso que se apresenta como única solução possível. “There is no alternative”, diriam os apóstolos do neoliberalismo.
Por volta de 1950, John Nash conseguiu resolver por meio de um modelo matemático o célebre dilema dos prisioneiros, um problema de lógica no qual dois participantes, impedidos de combinar suas estratégias previamente, são instados a colaborar com as autoridades de investigação e delatar o companheiro. Se os participantes não aceitam a oferta, suas penas permanecem inalteradas. Se apenas um colabora, o delator será posto em liberdade enquanto o outro terá sua pena aumentada. Caso ambos colaborem, a pena dos dois será sensivelmente atenuada. Nash comprova que a melhor solução para o jogador racional é delatar o companheiro. Essa é a lógica correspondente à teoria dos jogos não cooperativos, que serviu para reforçar a tese da eficiência dos mercados de Pareto. 

Tratar a delação como a atitude mais racional, no entanto, só retira em parte o estigma que se construiu em torno da figura do colaborador. Cachorro, alcaguete, xis-nove — o jargão popular tende a desacreditá-lo sem piedade, quase nunca desprovido de razão. Como ocorreu na ditadura, com o estigma indelével do dedo-duro.

Mas a decisão do acusado em colaborar com a investigação está sempre acoplada a uma coação. Sem pressão sobre sua decisão, qual seria o poder de barganha das autoridades? O dilema real do prisioneiro não é um exercício de lógica, isolado de interferências externas. O modelo mais próximo não seria o de livre mercado, mas o de informações assimétricas. De repente, perde-se o pudor de negociar com o acusado. Da presunção de inocência resta apenas a quantidade necessária para emprestar o mínimo de credibilidade às informações do delator, já virtualmente condenado. Na falta de critérios bem delineados, juiz e representante do Ministério Público estabelecem e fiscalizam as metas para a validação do acordo e a concessão dos benefícios, conforme seus próprios interesses. 

Políticas econômicas ortodoxas sempre foram acompanhadas de políticas criminais ortodoxas. Seus resultados também são parecidos, basta ver o colapso dos sistemas penais nos países que abraçaram a cartilha do mercado. No Brasil, a população carcerária mais do que sextuplicou desde 1990 até hoje. Alheio a um cenário que já produziu Carandiru e Pedrinhas, o debate sobre política criminal parece limitado aos temas de corrupção e impunidade. Pede-se mais pena. Fala-se da redução da maioridade penal. Choques de gestão. Sob uma ótica meramente de mercado pensa-se já na privatização dos presídios.

Tal como está ocorrendo, com a divulgação espetacular na grande imprensa dos nomes das pessoas acusadas pelo delator no processo que corre, em parte, em Curitiba, em parte, no Supremo Tribunal Federal, sob seu beneplácito, que faculta essa divulgação como se fosse o resultado de um processo público e democrático, o que se pretende é mais do que evidente: interferir no processo político, dando a impressão de que tudo o que foi delatado corresponde à mais pura verdade. A imprensa e o Judiciário deveriam atender aos preceitos constitucionais de presunção de inocência e do devido processo legal, que exigem que a determinação da responsabilidade penal só pode se dar sob o pressuposto da proteção da pessoa, e não para atender a fins políticos ou ideológicos.

O regime democrático não se fortalece com o emprego de meios inconstitucionais para obter eficiência na persecução penal. O regime democrático se fortalece precisamente quando os direitos fundamentais da pessoa são preservados, independentemente de quem seja. A democracia não é simplesmente o regime da maioria, a democracia é o regime no qual todos possam, como pessoas de direito, exercer, livremente, sua real capacidade de concordância ou discordância. Para alcançar os objetivos mais sublimes de um regime democrático centrado na proteção da dignidade da pessoa humana e orientado pela realização plena da cidadania, é hora de rever todos esses instrumentos perversos de delação, que alimentam o desrespeito a direitos fundamentais e conduzem a uma política estatal sem ética e sem compostura, bem ao gosto dos regimes ditatoriais.
*Professor titular de Direito Penal da Uerj e professor visitante na Universidade de Frankfurt am Main (Alemanha)  

* Com Frederico Figueiredo, doutor em Direito pela Universidade de Frankfurt am Main

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