30/05/2016 - 12:45

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Licenciamento am biental: os riscos da ruptura na coerência normativa

30/05/2016 - 12:45

Licenciamento am biental: os riscos da ruptura na coerência normativa

FLÁVIO AHMED*
O Brasil vive um indubitável momento de crise, que reverbera em suas instituições. É comum, em tais períodos, buscarem-se soluções miraculosas através da alteração de normas e, ainda, com edições de novas leis que surgem como panaceia para os problemas existentes, como se a modificação de leis tivesse o condão de promover as melhorias sociais imediatas de que a sociedade necessita para ser melhor e mais justa.
Ocorre que, exatamente nessas fases, e visando a atender problemas momentâneos e pontuais, as alterações legislativas acabam por descurar daquilo que é mais essencial, que é sua função de estabilizar o sistema, gerando segurança jurídica.

O Direito Ambiental brasileiro, alçado à categoria de direito fundamental por força da Constituição de 1988, tem sua autonomia dogmática reconhecida de forma unânime, exatamente porque consiste em um conjunto de regras e princípios densamente articulados e que, por isso, asseguram a proteção do bem jurídico por ele protegido, o meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida das presentes e futuras gerações. É inegável, portanto, a taxionomia do Direito Ambiental como ramo autônomo e independente do Direito do Brasil, conforme assegura Nelson Nery Jr (Autonomia do Direito Ambiental).

Tais palavras introdutórias são completamente necessárias no momento em que se discute, no âmbito do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama), a proposta de alteração da Resolução 237/97, bem como tramitam no Congresso Nacional 19 projetos de lei visando a introduzir modificações destinadas a alterar a legislação vigente no que concerne ao licenciamento ambiental.

No Senado, sob relatoria de Romero Jucá (PMDB/RR), tramita, a passos céleres, o projeto de Lei 654/2015, o qual inova no licenciamento de empreendimentos considerados estratégicos para o desenvolvimento nacional, tais como: sistemas viários, hidroviário, ferroviário e aeroviário (inciso I); portos e instalações portuárias (II); energia (III); telecomunicações (IV); e exploração de recursos naturais (V), a  serem definidos em decreto da Presidência da República, na forma do § 2º do art. 1º de tal projeto, fixando prazos para a aprovação dos processos de licenciamento. A proposta faz parte daquilo que se convencionou chamar de Agenda Brasil, destinada a imprimir celeridade em obras consideradas de importância estratégica para o país. E, mais, simplificá-lo, pelo que bem lançadas as palavras de Consuelo Yoshida quando destacou, em audiência pública, que “a complexidade dos ecossistemas contrasta com a simplificação da legislação cada vez maior”.
O espaço não nos permite comentar, evidentemente, todos os projetos em questão, mas a partir dos dois que citamos acima, se fazem necessárias algumas palavras sobre as alterações normativas neles contidas e que vêm sendo objeto de críticas por parte de entidades da sociedade civil preocupadas com a defesa do meio ambiente.

Ora, em primeiro lugar, cumpre salientar alguns elementos contidos no PL, notadamente com relação à celeridade (de 60 dias em geral para os correspondentes atos - art. 5ª), sob pena de aprovação tácita.
O projeto cria um procedimento de licenciamento unificado em que se verifica claramente na justificação do senador que o objetivo é “garantir uma visão holística do procedimento de licenciamento que irá torná-lo ágil suficiente para atender aos anseios da nossa sociedade”.

Nesse diapasão, com vistas a torná-lo célere, prevê no seu art. 5º uma série de prazos e, no § 3º do referido dispositivo, dispõe que “o descumprimento de prazos pelos órgãos notificados implicará sua aquiescência ao processo de licenciamento ambiental especial”.

Ou seja, o projeto cria a figura da autorização tácita para os projetos de licenciamento, e processos de licenciamento de obras de grande porte, nas quais, na maioria das vezes, os impactos são de elevada monta. São nesses processos que os cuidados devem ser mais rigorosos, nos quais são maiores os detalhes, e, principalmente, por tais razões, os estudos prévios devem ser mais pormenorizados de forma permitir que sejam aquilatados os impactos ambientais e dimensionadas de forma correta as medidas compensatórias adequadas a mitigá-los e compensá-los.

Ou seja, vamos imaginar que em um projeto em que sejam afetados direitos indígenas, ou em outro, com relevante impacto ao patrimônio cultural, a Funai e o Iphan, ou ainda o ICMBio (quando envolver unidades de conservação federais), não se manifestem não por inércia, mas porque não tenham concluído os estudos necessários ao dimensionamento para a respectiva autorização, por serem simplesmente complexos. Tem-se a incidência da norma citada.

 Ao invés de fortalecer a máquina pública, estruturando-a de modo a possibilitar a análise célere, contudo rigorosa, daqueles empreendimentos que impactam um bem cuja titularidade a todos pertence, a via pela qual se opta é distinta, em um procedimento de duvidosa constitucionalidade, já que o Estudo de Impacto Ambiental constitui uma salvaguarda prevista não apenas na legislação ambiental ordinária, mas na Carta Magna (Art. 225, §1º, IV).

No mesmo diapasão, a proposta de alteração da Resolução 237/97, que regula o licenciamento ambiental, contempla a figura do licenciamento autodeclaratório, em que as providências prévias ficam a cargo do empreendedor.

Várias são as críticas formuladas à nova redação, – a qual pelo simples fato de ter sido submetida inicialmente a consulta pública no período de Carnaval e pelo prazo exíguo de poucos dias úteis já mereceria graves objeções –, mas a que destacamos acima nos parece, do ponto de vista técnico-jurídico, a que merece mais ressalvas.
Com efeito, o texto constitucional atribui ao poder público (com a colaboração da comunidade) o dever de proteger e preservar o meio ambiente, e o licenciamento ambiental constitui o poderoso instrumento de prevenção de que se socorre para cumprir esse seu mister constitucional. Será que, por exemplo, a se admitir o licenciamento autodeclaratório, o empreendedor não poderia omitir efeitos sinérgicos que a sua obra acarretaria, tratando de licenciar unidades isoladamente sem considerar o todo da obra e sem a previsão de seus efeitos conjuntos?

Por certo que o Estado não tem se desincumbido de atender satisfatoriamente a celeridade. E isso não apenas na tutela do meio ambiente. Não tem mesmo assim o procedido em relação ao seu dever de fiscalização, ora pecando pela discricionariedade (com direto prejuízo ao desenvolvimento da atividade econômica lícita), ora incorrendo em omissão. Isso tudo sem falar com relação às obras do próprio Estado, nas quais a conduta nem sempre é semelhante àquela dirigido ao empreendedor particular, cabendo sublinhar o ponto de vista daqueles que defendem que a atividade do licenciamento seja presidida por uma agência reguladora, com membros com mandatos distintos dos governantes eleitos, para que nem o poder público fique imune à isenção necessária à tutela administrativa ambiental.

Mas o certo é que, hoje, permitirmos alterações legislativas que atentem contra o sistema e a coerência de um todo normativo, que representa uma conquista democrática de um país megadiverso, e cuja performance desfavorável decorre menos de defeitos na sua existência, mas no inadequado aparelhamento da máquina estatal, é pôr em risco a tutela do meio ambiente. Cícero, na Roma antiga, dizia “excesso de direito, excesso de injustiça” (Summus ius, summa inuria). Por vezes, mais leis representam menos direitos.
 
*Presidente da Comissão de Direito Ambiental da OAB/RJ

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