13/09/2016 - 13:22

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José Paulo Cavalcanti - advogado e escritor: ‘O Direito regula a convivência entre os homens, a literatura é um espelho dessa vida’

13/09/2016 - 13:22

José Paulo Cavalcanti - advogado e escritor: ‘O Direito regula a convivência entre os homens, a literatura é um espelho dessa vida’

Consultor da Unesco, ex-ministro da Justiça e membro da Comissão Nacional da Verdade, o advogado José Paulo Cavalcanti acaba de somar ao currículo um novo ofício: o de contista. No livro Somente a verdade, lançado pela editora Record, ele reúne narrativas inspiradas em casos transcorridos no cotidiano do escritório de advocacia.

São 21 relatos, que envolvem quase sempre dramas familiares. Do homem que, num imbróglio sobre paternidade, reencontra no tribunal o amor dos tempos de juventude à viúva desenganada pelos médicos cuja vida muda de rumo ao experimentar uma delicada epifania. 

Embora a seleta de contos seja sua estreia no gênero, não é de hoje que José Paulo mantém relação íntima com a literatura. A paixão fica patente nas muitas referências que seus textos fazem a escritores e trechos de livros. E no fascínio por Fernando Pessoa. Cultor da memorabilia do poeta português – sua coleção inclui uma máquina de escrever usada pelo autor –, em 2011 o advogado publicou, também pela Record, o estudo Fernando Pessoa – Uma quase autobiografia, com o qual ganhou os prêmios Jabuti e da Academia Brasileira de Letras.  

“Para além de embates jurídicos, me fascinou sempre a natureza humana”, afirma José Paulo. Em entrevista à TRIBUNA, ele fala sobre o desafio de se lançar no universo da ficção, os critérios de que se valeu para selecionar as situações a serem vertidas em contos e as relações entre literatura e Direito. Quanto ao futuro, acena com uma possibilidade: registrar em livro as histórias que descobriu durante o trabalho na Comissão Nacional da Verdade. 
 
MARCELO MOUTINHO

Na apresentação, o senhor cita Nietzsche ao sublinhar que “o poeta que sabe mentir é o único capaz de dizer a verdade”, ressoando o título do livro. Como foi, para alguém cuja profissão tantas vezes implica a busca pela verdade de um caso, enveredar pela ficção? 

José Paulo Cavalcanti –
Pior que não é ficção. São histórias reais. Inacreditáveis. E precisava contá-las. Se não o fizesse, iriam morrer comigo. O que seria (quase) um crime. Claro que há toques de ficção, sobretudo por não poder contar as histórias exatamente como são. Afinal, há sigilo profissional por trás delas. Mas, na essência, são todas verdadeiras. E a escolha dos casos reflete meu coração. Para além de embates jurídicos, me fascinou sempre a natureza humana. Os Sanchos e os Quixotes que somos, pela vida. Quase poder tocar a alma de pessoas simples. Foi mesmo uma aventura.

Em contos como “Casamento é para sempre” e “O filho de Ana Maria”, fica patente a busca pelo que há de humano, demasiadamente humano, por detrás de ações judiciais. A literatura seria uma forma de iluminar as histórias inscritas nas letras, ou entrelinhas, de um processo?  

José Paulo – É uma confissão de que o homem é um ser contraditório. Com suas grandezas e suas misérias. Todos somos assim. Busquei, nos relatos, os casos em que essa dualidade fica mais à mostra. Em que surgem vivos, na nossa frente, o esplendor, a miséria, o sublime, o espanto. E tentei fazer isso usando a linhagem da gente comum. A “língua certa do povo”, como queria Manuel Bandeira. Sem adjetivos. Com frases curtas. Nesse ponto, seguindo conselho de meu velho pai, que vivia repetindo: “A mão aberta é um tapa, a mão fechada é um murro, e é a mesma mão”. A frase tem que doer dentro do leitor. 

Que critério usou na escolha dos casos que transformaria em ficção?

José Paulo – Escrevi cerca de 40 casos. Escolhi aqueles que me pareceram mais diferentes do comum. Em que o leitor, ao final, tome um susto. Por não ser capaz de prever o enredo. A mulher pede ao marido que vá embora. Não aceita se separar dele, afinal casamento é para sempre. Assim o padre decidiu, na igreja. E, depois de 38 anos, já pressentido mais perto o fim, chama o marido (ex?) e pede um beijo. Isso é quase sublime. A explosão da natureza humana, em traços finos e delicados.

 “A primeira morte de Hermilo” é o único conto em que não há a lente ficcional. O senhor narra em primeira pessoa, participa da história (como José Paulo) e mantém os nomes reais dos demais personagens. Por que a exceção?

José Paulo –
É curioso. Escrevi todos os contos na terceira pessoa. Inicialmente não estava em nenhum dos contos. Para deixar a história fluir. Por me considerar a parcela menos importante, ou digna de registro, no desenvolver delas. Percebi, depois, que precisava estar nelas ao menos de passagem. Para que o leitor pudesse perceber melhor como tudo se passou. Só que essa história, do meu último encontro com o romancista Hermilo Borba Filho, não funcionou. Faltava emoção. Então escrevi na primeira. E gostei do resultado. Ficou assim. Vinte de um jeito, uma de outra. Como uma espécie de homenagem aos Vinte poemas de amor e uma canção desesperada, do Pablo Neruda.

Autor de um referencial estudo sobre Fernando Pessoa, o senhor comenta em entrevistas que ele era um “escritor sem imaginação”, pois utilizava o próprio cotidiano, sem muitos disfarces, como fonte para a literatura. Somente a verdade também se baseia em histórias que aconteceram. Em que medida a vida do entorno é literatura, ainda que não escrita?

José Paulo – Consumi dez anos escrevendo esse livro. Saiu tudo bem. Por aqui, ganhou todos os prêmios. E está já em dez países. Com muitos outros prêmios fora, Deus é grande. Já é o livro sobre Pessoa mais traduzido no mundo. Deus é muito grande. E começou quando percebi que (quase) tudo que ele escrevia estava à sua volta. Nesse sentido, sua obra era como um testamento à espera de ser desvendado. Então reli as quase 30 mil páginas que escreveu e tudo fazia sentido. Na “Tabacaria”, por exemplo, havia mesmo uma pequena “que comia chocolates” (sua sobrinha Manuela Nogueira); uma lavadeira (Irene), mas de filha com quem Pessoa chegou a pensar em casar (Guiomar); o que, aliás, disse em livro do mesmo ano em que escreveu o poema, 1928,  A educação do estoico. O dono real da tabacaria  se chamava Manuel Rodrigues Alves; e o Esteves (Joaquim Esteves), um velhote “rechonchudo e corado”, assim o descreveu no Livro do desassossego, foi declarante de seu “assento de óbito”. Talvez no fundo isso tenha contribuído para o livro de contos. Ao revelar que a vida de pessoas comuns também pode ser grandiosa. Espero que os leitores concordem.

Ao comentar o relatório final da Comissão Nacional da Verdade, grupo do qual fez parte, o senhor diz que a intenção foi sempre buscar a “exatidão e a verdade possíveis”. O que diferencia a verdade e a exatidão? Qual é a verdade possível?

José Paulo –
A verdade é sempre a verdade possível. Fernando Pessoa disse, em “O marinheiro”, que “isso é tão estranho que deve ser verdade”. Mais do que certo. A verdade e a exatidão andam sempre juntas. Mas não são a mesma coisa. A exatidão é factual. As coisas são, ou não são, exatas. [O jurista Francesco] Carnelutti até ensinava a seus alunos: “Vamos falar as coisas como as coisas são. Quase igual quer dizer diferente”. Isso é exatidão. Já a verdade vejo como algo mais profundo. Deve ser buscada, tantas vezes, mais dentro de nós. Na alma. Exatidão só pode haver uma. Dois e dois serão sempre quatro. A verdade, não. A minha pode não ser a sua. Nesse sentido, até pode-se falar na verdade de cada um. Procurei, nos contos do livro, essa verdade que se esconde por trás de gestos surpreendentes. Especiais. Essa verdade, bem vista, é mágica.

Quanto ao relatório da comissão, buscamos a verdade humanamente possível. Conferindo histórias e informações. Com a consciência de que não poderia haver erros. Ao menos, com a menor quantidade de erros possível, dado ser extremamente difícil conferir tudo. Mas o que me fascinou nessa aventura de quase três anos foi a natureza humana que esbarrava por trás dos casos. Se um dia escrever um livro sobre esse tempo, será sobre esses casos específicos. Não sei. Vamos ver. 

O que a literatura pode ensinar ao Direito? E vice-versa?

José Paulo – O Direito não existe no espaço. É feito para regular a convivência entre os homens. E a literatura é um espelho dessa vida. A mágica está em contar os fatos não numa versão bacharelesca. Como se fosse mesmo um romance. Nessa linha, e com demasiada frequência, em tantos casos a vida reproduz mesmo a arte. E vice-versa. Ao contrário do que dizia o general Milan Astray (“Viva la  muerte”) , na Guerra Civil espanhola, o que esses personagens gritam, para todos nós, é algo como “Viva a vida”. Viva, pois.
 

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