16/12/2015 - 13:37

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Muito papel e pouca praticidade

16/12/2015 - 13:37

Muito papel e pouca praticidade

Comissão de juristas discute mecanismos para amenizar excesso de burocracia no Brasil
 
RENATA  LOBACK
Certidão de Nascimento, Carteira de Identidade, Cadastro de Pessoa Física (CPF), Carteira de Trabalho, Título de Eleitor, comprovante de residência, quitação com o serviço militar, firma autenticada e tantos outros documentos são exigidos para comprovar que uma pessoa é de fato quem diz ser. Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ), Contrato Social, registro na Junta Comercial, Inscrição Estadual e alvarás da Prefeitura, do Corpo de Bombeiros e da Vigilância Sanitária são apenas algumas das exigências para quem deseja abrir seu próprio negócio. Se estar em dia com a documentação no Brasil já dá muito trabalho, abrir empresa é quase um martírio burocrático. Pesquisa recente da Confederação Nacional da Indústria reforça esse entendimento. Das mais de duas mil pessoas entrevistadas, 77% consideram a papelada excessiva. 

Instaurada em setembro pelo Senado Federal, uma comissão de juristas tem a missão de mudar essa realidade. Cabe a eles a elaboração de anteprojetos de lei para desburocratizar a administração pública, melhorando sua relação com empresas e cidadãos. Proposto pelo senador Blairo Maggi (PR/MT), presidido pelo ministro Mauro Campbell Marques, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), e com relatoria do presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Dias Toffoli, o grupo tem inicialmente 180 dias para apresentar suas proposições, que depois serão analisadas por uma comissão especial de senadores. A iniciativa é parte da chamada Agenda Brasil, que reúne propostas para estimular o crescimento econômico. 

Para o ministro Mauro Campbell, a burocracia atravanca o crescimento e emperra a efetiva contraprestação do serviço público, pago através de impostos e taxas. “É nesse sentido que a comissão tem como foco o cidadão. Apresentaremos ideias para evitar esses empecilhos, que só dificultam a vida de pessoas e empresas”, afirma.
 
“Um trabalho que não é nada fácil”, comenta o vice-presidente do grupo, João Geraldo Piquet Carneiro, presidente do Instituto Hélio Beltrão. Piquet Carneiro foi ministro da Desburocratização de 1983 a 1985. Por intermédio desse Ministério, que funcionou de 1979 a 1986, foram criados os juizados de pequenas causas – chamados, hoje, de juizados especiais – e o Estatuto da Microempresa. Ao ser extinta, a pasta foi absorvida pelo Ministério da Administração. “Nosso problema vai muito além da criação de leis. Estamos focados em questões procedimentais do dia a dia, que são muito conhecidos da população, mas que passam também por uma mudança de cultura e de postura”, alerta. 

E a comissão quer dar o exemplo. Em vista do tempo reduzido e da complexidade do assunto, o mecanismo de trabalho é a otimização dos procedimentos. Os integrantes reúnem-se quinzenalmente no Senado e mantêm contato por email e aplicativos de conversa. Para garantir discussões simultâneas, foram criadas cinco subcomissões: Sistematização e Lei Geral; Questões Administrativas; Trabalhista e Seguridade Social; Questões Registrais, Notariais e Judiciais; e Tributária. O grupo também optou por não realizar audiências públicas, para evitar que o trabalho fique concentrado na apresentação de problemas. No entanto, todo cidadão ou empresa que queira contribuir com propostas e projetos pode entrar em contato pelo email [email protected]

No entendimento de Piquet Carneiro, no entanto, nenhuma comissão conseguirá resolver o problema sem mudança na cultura do carimbo e da desconfiança. “Com frequência, o esforço de eliminação de exigência documental esbarra em obstáculos como o fator risco. As instituições preferem exigir uma série de certificações e validações do que confiar na palavra do cidadão e fiscalizar. Num país pouco burocrático não é preciso provar de antemão que estamos falando a verdade. O princípio da confiança precisa existir. Se partimos do pressuposto que um interessado está sempre nos passando a perna, não progredimos. Se não mudarmos isso, continuaremos criando uma série de exigências irracionais e contraditórias entre si, que só acabam favorecendo a corrupção”, salienta.

Para tentar mudar a cultura da desconfiança, a comissão consolidou o entendimento de que é necessária a elaboração de um projeto de lei complementar regulamentando o princípio da eficiência, previsto no artigo 37 da Constituição Federal, “pelo qual serão estabelecidas regras de caráter principiológico e fundamental”, como aponta o ministro Mauro Campbell. O princípio da eficiência impõe a adoção de critérios e coordenação, de modo a assegurar continuidade, regularidade e confiabilidade nos serviços públicos.

Presidente da Comissão de Direito Administrativo da OAB/RJ, Bruno Navega entende que regulamentar o princípio da eficiência é um erro. “Primeiro, porque é um princípio que está na Constituição há muito tempo e quando foi criado, acharam que isso faria o Estado mais eficiente. Algo que se revelou não ser possível. O mesmo irá ocorrer ao tentarem regulamentar em lei a eficiência. Tem que partir da administração pública a vontade de ser eficiente. É um grande erro achar que a lei vai fazer isso”, argumenta. 

Para Navega, a comissão tem que estar atenta ao fato de que não será possível resolver todos os gargalos burocráticos do país de uma única vez. “É impossível fazer uma proposta para desburocratizar o Estado como um todo”, pondera. Fazer um pacto nacional pela desburocratização e chamar os estados à discussão, com medidas práticas e menos abstratas, é a forma correta de pensar o assunto”, diz ele. “E isso vai além da regulamentação em leis”.

Piquet Carneiro também se mostra cético em relação à eficácia da legislação. “O que faz com que as coisas mudem é a percepção de que algo deve ser cumprido, sob o risco de punições. A lei tem que ser acompanhada de uma política de regulamentação. Essa é a base do que pretendemos fazer na comissão”, assinala. 
 
Com o entendimento de que os advogados são uma das principais categorias profissionais obrigadas a lidar diretamente com as burocracias, a OAB/RJ também está elaborando um estudo, parceria das comissões especiais com a Fundação Getúlio Vargas, para identificar seus gargalos, apontando as respectivas soluções. “Começamos a identificar quais seriam os pontos de gargalo nos âmbitos federal, estadual e municipal. E o que observamos, desde já, mesmo com o estudo inconcluso, é que a falta de uniformidade no tratamento da matéria é um grande empecilho. Temos um complexo sistema tributário, além de juntas comerciais e cartórios lentos e burocráticos. Há falta de transparência. Ninguém sabe ao certo o que é necessário para abrir ou fechar uma empresa, por exemplo. E o Estado não ajuda”, aponta Navega.

Além da Comissão de Direito Administrativo, estão envolvidas no estudo comissões como as de Direito Tributário e de Direito Empresarial. “A intenção da Seccional é discutir propostas práticas em parceria com os órgãos envolvidos, como a Associação dos Notários e Registradores (Anoreg) e a Junta Comercial do Estado do Rio de Janeiro, para resolver os nós identificados”, diz. De acordo com Navega, o documento será levado, também, à apreciação da comissão de juristas, de forma a auxiliar o trabalho do grupo. 

Como sugestão no que se refere à morosidade do Judiciário, o presidente da Comissão de Direito Administrativo considera que a arbitragem no âmbito dos contratos celebrados pela administração pública pode ser uma solução. “Discutir uma demanda com o Estado demora muito tempo. O Judiciário está assoberbado, não há juiz e nem máquina suficientes. A arbitragem seria uma boa saída, principalmente nas atividades reguladas, como telefonia, e setores elétrico, de gás e de transporte”. É inadmissível, segundo Navega, que “uma empresa ao discutir um reajuste tarifário demore de cinco a seis anos para obter resposta.” “Uma decisão que atrase esse tempo, por melhor que seja, é injusta. Estimular a adoção de mecanismos de solução de conflitos no âmbito da administração pública não é uma crítica ao Poder Judiciário, mas uma constatação de que, infelizmente, no Brasil a Justiça não tem capacidade de dar respostas em tempo hábil a demandas complexas”, frisa. 

Integrante da comissão de juristas e participante da subcomissão responsável por tratar das questões registrais, notariais e judiciais no grupo, o diretor executivo do Instituto Hélio Beltrão, Daniel Bogéa, afirma que o problema da arbitragem passa pela atitude defensiva com que o Estado trata o assunto. “A arbitragem na administração pública é algo admitido pelo Supremo, mas ainda passa por resistência. Os governos tendem a não considerar decisões fora do sistema judiciário. Mais uma vez a solução esbarra num problema cultural do Brasil”, afirma.

A priori, a comissão de juristas tem até março para apresentar seus projetos ao Senado.  Entretanto, o ministro Mauro Campbell adianta que é possível haver dilação do prazo, tendo em vista a quantidade de temas para apreciação. “Não há como esgotar o problema, que surge a cada entrave burocrático. Estamos, inclusive, trabalhando na feitura de um Estatuto de Princípios com preceitos e sanções para desburocratizarmos a administração em todos os níveis e esferas de poder”, comenta Campbell.

Após a elaboração final dos anteprojetos, eles serão remetidos ao Congresso Nacional para o necessário trâmite legislativo. Ainda que os trabalhos da comissão se encerrem, afirma o ministro, os juristas permanecerão acompanhando sua tramitação. “O que mais nos interessa é que cada cidadão se empenhe numa transformação cultural necessária ao país”, salienta.

Para Piquet Carneiro, a comissão tem a consciência de que não conseguirá acabar com a burocracia desnecessária. “A nossa esperança é de que este seja um pontapé inicial para o enfrentamento do problema. No entanto, a desburocratização deve ser uma agenda permanente”, conclui.

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