14/10/2016 - 13:39

COMPARTILHE

Combate à corrupção fora da lei?

14/10/2016 - 13:39

Combate à corrupção fora da lei?

Projeto com medidas anticorrupção pretende criar teste de integridade para agentes públicos, restringir o habeas corpus e permitir o uso de provas ilícitas
 
VITOR FRAGA
O tema do combate à corrupção nunca esteve tão em voga. Nos últimos três anos, diversos movimentos sociais foram criados a partir desse mote. E, diferentemente do que ocorre em outros debates públicos, nesse caso praticamente não existe contraditório – isto é, ninguém, em tese, irá manifestar-se a favor de práticas corruptas.

O Ministério Público Federal (MPF) apresentou ao Congresso Nacional, em março, um pacote de dez medidas contra a corrupção, por meio de uma ação popular que obteve mais de dois milhões de assinaturas.

Transformada no Projeto de Lei (PL) 4.850/2016, a matéria vem enfrentando resistência de políticos e juristas na comissão especial que analisa o projeto na Câmara dos Deputados. As medidas englobam assuntos como celeridade nas ações de improbidade administrativa, criminalização do chamado caixa 2 de campanha e previsão de crime hediondo para corrupção de altos valores, e segundo o MPF poderiam prevenir a ocorrência de crimes, agilizando decisões judiciais e garantindo a punição dos culpados. 

Para os especialistas ouvidos pela TRIBUNA, porém, em vez de combater a corrupção, a proposta reduziria direitos fundamentais – através, principalmente, de alterações na legislação penal. Entre os pontos mais criticados estão as restrições ao habeas corpus e a possibilidade de provas obtidas de forma ilícita serem aceitas em juízo, além do teste de integridade para agentes públicos – iniciativas que, caso aprovadas, configurariam a flexibilização ou mesmo a retirada de garantias individuais, ferindo o ordenamento jurídico. O teste de integridade, por exemplo, ao permitir a condenação de um agente público pela intenção de cometer um crime, eliminaria a presunção de inocência. Ou seja, a necessária satisfação a ser dada à opinião pública no tocante ao combate das ilegalidades poderia, como consequência, produzir mais injustiças.
 
Projeto de lei
 
O PL 4.850/16 propõe várias mudanças no Código Penal (Decreto-Lei 2.848/40) e nos códigos de Processo Civil (Lei 13.105/15) e Processo Penal (Decreto-Lei 3.689/41), além da legislação relativa a partidos políticos, eleições, crimes hediondos e combate à corrupção, entre outros. O texto propõe “medidas contra a corrupção e demais crimes contra o patrimônio público e combate o enriquecimento ilícito de agentes públicos”, e foi apresentado pelos deputados Antonio Carlos Mendes Thame (PV/SP), Diego Garcia (PHS/PR), Fernando Francischini (SD/PR) e João Campos (PRB/GO), incorporando todas as sugestões do documento oferecido pelos procuradores federais – com exceção da proposta de que o condenado possa iniciar o cumprimento da pena após decisão em segunda instância, mesmo antes do julgamento de recursos (segundo informações da Agência Câmara, esse ponto deverá ser analisado por meio de Proposta de Emenda Constitucional).

As críticas, do ponto de vista jurídico, têm como alvos principais: a inconstitucionalidade do teste de integridade, as limitações na concessão de habeas corpus (hoje instrumento de uso amplo, como em casos de urgência ou ameaça de perda de direitos, só poderia ser concedido pelo juiz em caso de prisão ou ameaça de prisão ilegal) e a validação de provas ilícitas em determinadas situações – além da possibilidade de magistrados não aceitarem recursos que considerem ter a intenção de apenas protelar a decisão final e declararem o trânsito em julgado do processo, ou seja, sem possibilidade de recursos.

Na opinião do presidente da Comissão de Processo Penal (CPP) da OAB/RJ, Diogo Tebet, o projeto “é um festival de ilegalidades”, com várias medidas inconstitucionais, e “não cria mecanismos anticorrupção como o MPF propagandeia”, mas visa a alterar radicalmente dispositivos do Código Penal e do Código de Processo Penal. “Na verdade, algumas das medidas espelham verdadeira retaliação de seus autores às operações anuladas pelo Poder Judiciário, especialmente pelos tribunais superiores. Anulações essas que decorreram do reconhecimento de flagrantes ilegalidades praticadas por agentes do próprio aparato persecutório estatal”, aponta.

A procuradora regional da República Mônica Campos de Ré afirma que os principais objetivos da proposta são assegurar a “efetividade da lei penal contra corruptos e corruptores”, com o objetivo de reduzir a impunidade. “Existe hoje consenso na sociedade brasileira de que é preciso punir quem pratica a corrupção. Entretanto, o sistema jurídico vigente no país não está sendo eficaz para esse propósito. Precisamos de mudanças, e quanto a este aspecto as proposições representam o início de um debate”, sustenta ela, que coordena a campanha Dez medidas contra a corrupção no Estado do Rio de Janeiro.

Presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), Fábio Tofic concorda que “o país está farto de tanta corrupção”, porque esta “corrói o Estado de Direito e viola direitos e garantias fundamentais do cidadão”, e que é preciso haver medidas para combater a prática, mas não confia que aquelas propostas do MPF possam fazê-lo. “Não estou convencido de que estas dez [medidas] – que na verdade são 19 – irão resolver o problema”, pondera, referindo-se ao fato de que as medidas correspondem a 19 projetos de lei, além de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC). “Creio até que, a longo prazo, pode piorar, porque as propostas ampliam demais os poderes das nossas polícias e de outros órgãos de repressão penal. E onde há poder demais, com fiscalização de menos, surge um campo fértil para a corrupção. A corrupção é filha do arbítrio. Para combatê-la, precisamos delimitar os poderes do Estado, e não ampliá-los”, defende. 

Ele acredita que a falta de transparência na discussão é o que mais preocupa. “As pessoas não estão informadas do que se trata. Houve uma jogada de marketing muito bem feita, como se fosse um remédio contra a corrupção. Na verdade, é um pacote que visa a restringir os direitos e garantias do acusado no processo penal.
 
Limita violentamente, por exemplo, o uso do habeas corpus”, denuncia Tofic, que também contesta a ampliação nos poderes policiais. “A polícia poderá, por exemplo, entrar nas casas das pessoas sem mandado, desde que de boa-fé. Será que as pessoas sabem disto? Suponho que não. O mais grave para mim é isso, a falta de boa-fé na própria forma como este pacote está sendo apresentado. O debate precisa ser mais honesto e transparente”, diz.

O presidente do Fórum Nacional Permanente de Carreiras Típicas de Estado (Fonacate), Rudinei Marques, vê prós e contras na proposta. “Algumas medidas, como a questão da celeridade processual, são positivas, pois há consenso no Brasil todo de que a morosidade processual precisa ter um fim. A criminalização do enriquecimento ilícito é o mesmo caso, assim como a revisão dos prazos prescricionais e a facilitação da quebra do sigilo bancário”, enumera. “Por outro lado, as medidas trazem também questões muito polêmicas. A relativização da prova ilícita, por exemplo, é temerária. Como saber se foi obtida com boa-fé ou não? As novas modalidades de prisão preventiva também estão sendo criticadas. Não dá para aceitar que o Estado possa coagir pessoas para obter uma delação”, opina.

Mônica de Ré critica o que chama de uso “inapropriado” de alguns instrumentos. “O habeas corpus é uma garantia constitucional que protege a liberdade do indivíduo. Mas, atualmente, tem sido usado de forma inapropriada como um recurso para atacar questões processuais. Os recursos não devem ser utilizados de forma abusiva, desvirtuada de sua finalidade, apenas para atrasar o cumprimento da decisão”, pondera. Sobre as provas ilícitas, Ré destaca que “a teoria sobre as provas ilícitas foi importada dos Estados Unidos pela metade, gerando um desequilíbrio”, e que as medidas teriam o propósito de ajustar a questão. “O precedente norte-americano, US vs. Leon (1984), traçou uma linha divisória entre abuso da polícia e erro da Justiça. Uma decisão razoável, emitida por um juiz imparcial que tem por objetivo proteger os direitos fundamentais do réu na investigação legitima a ação policial dela decorrente. A revisão de decisões por instâncias superiores deve ser encarada como algo natural e próprio do sistema jurídico e, portanto, esse fato não torna a decisão original ‘ilícita’. Há abertura na lei e na valoração das provas e, assim, a possibilidade de conclusões judiciais diferentes sobre uma mesma realidade”, reforça.

Tebet desaprova o que chamou de “esdrúxula tentativa de limitar o alcance do habeas corpus”, que a seu ver seria um “retrocesso civilizatório em tema de direitos e garantias fundamentais, que somente encontra similar no AI-5, editado pelo governo da ditadura militar”. Já o trecho que possibilita a utilização de provas ilícitas no processo penal foi classificado pelo advogado como “um dos maiores absurdos na história recente da democracia brasileira”, na medida em que “despreza o comando constitucional do artigo 5º, inciso LVI, que expressamente enuncia que ‘são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos’”. O MPF propõe que seja excluída a ilicitude da prova quando “o agente público houver obtido a prova de boa-fé” ou “usada pela acusação com o propósito exclusivo de refutar álibi”, entre outras situações. “Ou seja, abre-se a possibilidade, por exemplo, de se torturar uma pessoa ou testemunha caso o agente policial esteja de ‘boa-fé’, ou no caso de a mesma ter sido indicada por um acusado como seu álibi, e a acusação queira refutar a declaração que entenda inverídica”, critica.

Sobre a questão dos recursos, o presidente da CPP da Ordem enxerga “uma afronta ao direito de defesa e, por conseguinte, à atividade do advogado”. Tebet diz que o texto do PL possui “diversas passagens ofensivas aos advogados, seja de forma direta, seja de forma dissimulada”, e cita trechos em que se afirma que “criminosos de colarinho-branco, como regra, podem contratar advogados com elevada qualidade técnica”, e que “a busca da prescrição e consequente impunidade é uma estratégia de defesa”. Tais posições, segundo Tebet, “são inaceitáveis e revelam a ignorância e tentativa de criminalização do papel do advogado, que é essencial ao funcionamento da Justiça. As medidas relativas ao amesquinhamento dos recursos e do habeas corpus (que eles denominam eufemisticamente de ‘aperfeiçoamento do sistema recursal penal’) e a permissão das provas ilícitas (alcunhada de ‘ajustes nas nulidades penais contra a impunidade e corrupção’) prejudicam não só trabalho do advogado, mas tendem a aniquilar direitos e garantias fundamentais do cidadão”, ressalta.

A pedido do presidente da OAB/RJ, Felipe Santa Cruz, a Comissão de Processo Penal está elaborando um parecer analisando a matéria, que será entregue no final de outubro pessoalmente ao deputado Onyx Lorenzoni (DEM-RS), relator do projeto – ele declarou que apresentará seu parecer na mesma época. O PL 4.850/16 está sendo discutido em uma comissão especial. O trabalho está na fase da realização de audiências públicas, e devem ser ouvidos mais de cem especialistas antes da votação. As sessões foram suspensas no dia 20 de setembro, e serão retomadas após as eleições, segundo a Agência Câmara. A previsão é de que o projeto seja apreciado em plenário no mês de novembro, para ser então remetido ao Senado Federal. A OAB/SP também está questionando a constitucionalidade de dois pontos do pacote: provas obtidas por meio ilícito e restrições ao habeas corpus.
 
Teste de integridade

Um dos pontos mais controversos é o teste de integridade para o funcionalismo. A ideia consistiria em uma “simulação de situações sem o conhecimento do agente público, com o objetivo de testar sua conduta moral e predisposição para cometer ilícitos contra a administração pública”. Os testes seriam “aleatórios ou dirigidos” e os resultados, usados “para fins disciplinares” e para “a instrução de ações cíveis, inclusive a de improbidade administrativa, e criminais”. Se aprovada, a mudança estabeleceria punição pela simples intenção do funcionário de infringir uma determinada regra – o que enfraqueceria o princípio da presunção de inocência.

“O alcunhado teste de integridade é mais uma das medidas teratológicas propostas, que esbarra em posicionamento consolidado em súmula do Supremo Tribunal Federal que considera ilegal o flagrante preparado, além de vulnerar o princípio da presunção de inocência. Ou seja, todos são presumidamente culpados até a realização (e aprovação) no teste. Essa proposta visa a testar a ‘conduta moral e predisposição para cometer ilícitos’ do agente público, assemelhando-se muito às noções da Santa Inquisição”, compara Tebet. Para ele, “não se pode conceber a criminalização da pura intenção de cometer crime, ainda mais quando essa intenção é indevidamente viciada e estimulada”.

Na opinião de Tofic, a ideia estaria “impregnada de um maniqueísmo próprio de teocracias pouco democráticas” . O próprio termo integridade, acrescenta, “já sugere um subjetivismo próprio da moral e da religião, não do Direito. O mais grave, porém, é tal teste poder ser usado como prova no processo penal. E o que espanta ainda mais é que quando alguém propõe criminalizar o mau uso do teste, como é o caso de projeto em trâmite no Congresso Nacional sobre o abuso de autoridade, o MP se coloca contra. Como podemos confiar, então, que estão imbuídos de boa-fé?”, questiona.

Rudinei Marques também considera o teste um dos pontos mais discutíveis. “Em primeiro lugar, me parece inconstitucional, porque fere a presunção de inocência. Soa até meio medieval conseguir detectar a pretensão de alguém para cometer um ilícito”, critica, lembrando que “o modelo, em regra geral, foi adotado com base na legislação norte-americana, e não me parece que este seja inatacável, e nem mesmo que possa resolver os problemas do nosso país”.

Mônica de Ré assegura que não existe violação à presunção da inocência. “O agente público não será punido somente pela intenção de cometer um ilícito, mas pela concreta realização de uma conduta que, por si só, já caracterizará o descumprimento de seu dever de probidade e o desrespeito aos princípios da administração pública. A constatação dessa prática deve ser documentada, seja em procedimento judicial ou administrativo, para permitir ao agente o exercício do contraditório e da ampla defesa. Ninguém será presumido culpado. O teste de integridade poderá ser aplicado a qualquer agente público”, afirma.

O fato de os membros do MP não serem mencionados diretamente no que diz respeito ao teste é considerado um ponto crucial pelos opositores da proposta. “O projeto de lei não cita expressamente membros do Ministério Público e do Poder Judiciário, indicando como alvos do teste agentes públicos da ‘administração pública’ e dos ‘órgãos de polícia’. Na verdade, a medida coloca o MP como superpoder, acima de qualquer suspeita, que fiscalizará todos os testes de integridade realizados. A pergunta que se coloca é: quem fiscalizará o fiscal?”, indaga Tebet. 

Falando no mesmo tom, Marques argumenta que admitir o teste de integridade da forma que foi apresentado significa aceitar que existem “instituições públicas acima de qualquer suspeita” – o Ministério Público, por exemplo, seria apenas fiscalizador, e não fiscalizado. “Qual é o critério absoluto de moralidade pública ou de integridade que permite, a partir dali, avaliar outras condutas?”, pergunta, não descartando uma eventual Ação Declaratória de Inconstitucionalidade caso “uma medida dessa natureza conste do texto final”. Para Tofic, é como se faltasse uma 11ª medida, já que seria “um disparate submeter toda a administração pública aos testes”, excluindo os membros do MP. “Não pode haver cidadãos acima da lei. A verdade é que a medida peca até por certa ingenuidade, porque o velhaco não cairia jamais numa armadilha desta. Quem vai cair é o desavisado, que pratica o ato de improbidade impelido maliciosamente pelo teste”, conclui.

Abrir WhatsApp