08/10/2013 - 11:16

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Os caminhos da Carta Cidadã

08/10/2013 - 11:16

Os caminhos da Carta Cidadã

CÁSSIA BITTAR
 
Cinco de outubro de 1988. Após mais de duas décadas de ditadura militar, um regime marcado pelo cerceamento de direitos, o então deputado federal Ulysses Guimarães entrou para a história ao declarar promulgada uma nova Constituição brasileira. Em suas palavras, "um documento da liberdade, da dignidade, da democracia, da justiça social do Brasil".
 
Ulysses, que no início da década de 1980 havia se destacado como uma das principais figuras na campanha pelas eleições diretas, era o presidente da Assembleia Nacional Constituinte instalada em 1º de fevereiro de 1987 e composta pelos 559 congressistas eleitos em novembro de 1986.
A Constituinte era vista como a única via de expressão popular legítima para encerrar o ciclo do barbarismo jurídico representado por dezenas de atos institucionais
Siqueira Castro
Conselheiro federal
 
"A Constituinte teve alguns defeitos", analisa o historiador Marco Antônio Villa, autor do livro A História das Constituições do Brasil. Para ele, a Carta Magna apresenta uma prolixidade que poderia ter sido evitada caso o documento fosse elaborado em menos tempo: "É difícil encontrar na história ocidental uma Constituinte tão longa e isso acabou trazendo certa hibridez ao texto, que com 245 artigos permanentes e 70 transitórios, como foi aprovado, em alguns momentos se mostra presidencialista e, em outros, parlamentarista".
 
A articulação para a criação de uma nova Carta para o Brasil começou após a eleição presidencial indireta de 1985, depois da rejeição da emenda Dante de Oliveira, que alterava a Constituição de 1967 para restabelecer o voto popular direto para a eleição do chefe da nação.
 
Com a morte do presidente eleito pelo Colégio Eleitoral, Tancredo Neves, seu vice, José Sarney, assumiu o cargo e a necessidade da reformulação da lei passou a ser tema permanente dos debates políticos: o caminho para o estabelecimento de uma democracia batia de frente com a Carta vigente, redigida durante o governo ditatorial e utilizada como base para violações de direitos fundamentais.
 
"A Constituinte era vista como a única via de expressão popular legítima para encerrar o ciclo do barbarismo jurídico representado por dezenas de atos institucionais e complementares que centralizaram o poder governamental nas mãos do Executivo militarizado, que liquidaram a representação política democrática e ceifaram os direitos humanos e as garantias constitucionais no Brasil", afirma o conselheiro federal da OAB/RJ Carlos Roberto Siqueira Castro.
 
O também conselheiro federal pelo Rio de Janeiro Cláudio Pereira de Souza Neto reforça: "A elaboração da Carta de 1988 foi o momento culminante do processo de democratização. O próprio presidente da Assembleia, Ulysses Guimarães, a batizou de Constituição Cidadã, pois sua intenção, de fato, foi constituir as amplas garantias para a cidadania: liberdade, igualdade e direitos sociais", lembra.
 
Vinte e cinco anos depois, reformulado por 74 emendas, ainda se debate a efetividade completa do texto constitucional. Em junho, a discussão sobre a instalação de um processo constituinte específico para tratar da reforma política - ideia já apresentada em propostas que tramitam no Congresso Nacional - ganhou novo fôlego com a sugestão da presidente Dilma Rousseff de convocação de um plebiscito para que o eleitorado decidisse a questão.
 
Na época, o presidente da OAB Nacional, Marcus Vinicius Furtado, criticou a ideia. Na avaliação dele, um plebiscito seria "muita energia gasta em algo que pode ser resolvido sem necessidade de se mexer na Constituição". Em nota oficial, afirmou que a reforma seria viável apenas com a alteração da Lei das Eleições e da Lei dos Partidos.
 
Na opinião de Siqueira Castro, a Carta mantém sua contemporaneidade em face das mudanças ocorridas no país no último quarto de século. Dando como exemplo as manifestações das ruas em junho e julho, ele observa: "Não se viu nesses movimentos organizados pelas redes sociais um apelo popular por uma nova Constituinte. Na realidade, o texto da Constituição é fonte de inspiração para esses movimentos e verbaliza os anseios de mudança. Quem tem medo do povo não é a Constituição, mas a classe política, ou parte dela, que se deslegitimou em face do poder das ruas e praças do país".
 
Marco Antônio Villa diz que há mecanismos para a reforma no texto vigente: "A grande questão é que o Congresso Nacional não consegue implementar as reformas que são possibilitadas pelo próprio documento. Parece que o Legislativo não está à altura da Constituição que nós temos".
 
Os especialistas convergem na opinião de que o texto permanece atual, mas ainda não corresponde completamente à realidade brasileira: "Há uma dissociação entre o Brasil da Constituição e o real", afirma o historiador. "A seguridade social não consegue ser implantada efetivamente. É o caso das questões que envolvem o Sistema Único de Saúde (SUS), que é um produto da Carta, ou até mesmo a aposentadoria. São tópicos vitais para o Brasil e que estão muito distantes de serem cumpridos a rigor. Isso é terrível, na verdade", completa Villa.
 
Para Cláudio Pereira, comstitucionalista e conselheiro federal, o não cumprimento do princípio da inviolabilidade de domicílios em áreas de favelas é a mais notória ineficácia social da Constituição
Para Siqueira Castro, os pontos da Constituição ainda negligenciados são um desafio para as futuras gerações: "Em muitas áreas não conseguimos erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, como determina o artigo 3º. Em que pese o aumento da distribuição de renda nos últimos nos últimos 20 anos, a quantidade de pessoas vivendo em favelas, 11,5 milhões, é superior à população de Portugal, que é de 10,7 milhões de pessoas, e o analfabetismo ainda atinge cerca de 13 milhões de brasileiros".
 
Segundo o conselheiro, a mais notória ineficácia social da Constituição diz respeito ao artigo 5º, que considera a prática de tortura crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia e assegura aos presos o respeito à integridade física e moral. "Conhecendo-se as condições deploráveis do sistema prisional brasileiro, onde tudo pode acontecer, menos a incolumidade física e moral dos detentos, pode-se afirmar que inexiste norma constitucional mais vilipendiada pelos poderes públicos", frisa.
 
Cláudio Pereira cita, por sua vez, o não cumprimento do princípio da inviolabilidade de domicílios em áreas de favelas. "O desafio ainda é efetivar os direitos fundamentais para todos os brasileiros. Mas temos avançado e adaptado mais o texto nesse sentido. Um exemplo disso é a aprovação recente da PEC das Domésticas [Emenda Constitucional 72], que reflete a preocupação em estender as conquistas do Estado democrático para toda a população. Foi também com base na Constituição que se reconheceu a união de pessoas do mesmo sexo e que o direito à educação tem sido cada vez mais reivindicado no Poder Judiciário".
 
O jurista José Afonso da Silva, procurador aposentado do Estado de São Paulo e membro da Associação Brasileira de Constitucionalistas Democráticos, observa que o não cumprimento de todos os princípios da Carta cabe no conceito de realização progressiva: "Direitos econômicos, sociais e culturais necessitam de tempo para serem realizados. Não se cumprem todos de uma vez porque outras realidades vão surgindo". Em termos gerais, pondera, muitos dos direitos sociais, de saúde e educação, por exemplo, que os tribunais têm mandado aplicar vêm da base constitucional. "Pode-se dizer que ela está cumprindo o seu papel. E em situações de crise, como o impeachment do presidente Fernando Collor, e mais recentemente, no julgamento do 'mensalão', continha os instrumentos para solucioná-las".
 
Para José Afonso, as alterações no texto nem sempre são benéficas ao Estado Democrático de Direito: "Os projetos de emenda à Constituição estão sendo abusivos. Temos propostas totalmente desnecessárias, que visam a mudar uma palavra do texto por sinônimos, por exemplo. Elaborar projetos de emenda, na verdade, está sendo uma tática de muitos deputados e senadores para aparecer frente a  seus eleitores".
Villa, por sua vez, destaca pontos que considera importantes para alteração: "Há anomalias que precisam ser corrigidas, como os artigos 15 e 55, que tratam de mandatos parlamentares e que têm defeitos só vistos agora, com a questão do julgamento do 'mensalão' e da manutenção do mandato do deputado federal condenado Natan Donadon [sem partido/RO]".
 
Em agosto, o plenário da Câmara dos Deputados entendeu que a condenação de Donadon a 13 anos pelos crimes de peculato e formação de quadrilha não era suficiente para cassar seu mandato. Isso foi possível porque a Constituição estabelece que, quando o parlamentar deixa de comparecer a um terço das sessões ou fica afastado da casa por mais de 120 dias ininterruptos, cabe à Mesa Diretora da Câmara ou do Senado declarar a perda de seu mandato.
 
"Apesar de todas essas anomalias, porém, essa é sem dúvida a melhor das constituições brasileiras", pondera o historiador, citando como principais avanços obtidos a garantia de liberdade dos cidadãos depois de longo período de autoritarismo. Para ele, uma reforma ampla, além de não ser necessária, acabaria retirando direitos e liberdades do texto atual.
 
O saldo da Constituição de 1988 é positivo, avalia Siqueira Castro: "Graças a ela temos hoje uma imprensa livre e sem o medo da censura e um debate responsável sobre as históricas e odiosas discriminações contra a mulher, contra o negro, contra os homossexuais e contra a orfandade social em nosso país. Sob os seus comandos vamos conquistando avanços civilizatórios, o que nos permite hoje aprofundar o debate sobre a intolerância no Brasil. Sob o influxo da visão moral e social do discurso constitucional, o Brasil vai aos poucos se tornando mais transparente, mais tolerante, mais ético e mais democrático".

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