11/09/2017 - 16:28

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Dica do mês: Em Caravanas, Chico Buarque alia a reconhecida qualidade do letrista à sofisticação melódica

11/09/2017 - 16:28

Dica do mês: Em Caravanas, Chico Buarque alia a reconhecida qualidade do letrista à sofisticação melódica

MARCELO MOUTINHO
Depois do hiato de seis anos, a expectativa quanto ao novo disco de Chico Buarque era naturalmente alta. Basta uma primeira audição das nove faixas que compõem Caravanas para constatar, no entanto, que valeu a espera. O CD recém-lançado pela Biscoito Fino traz um artista em pleno domínio de sua arte. Nas canções compostas sem parceiros ou assinadas a quatro mãos com craques como Cristovão Bastos e Jorge Helder, Chico alia a reconhecida excelência do letrista a melodias extremamente sofisticadas.

É o caso, por exemplo, de Jogo de bola. “Vivas à galera, viva às / marias-chuteira / Cujos corações incandescias / Outrora, quando em priscas era / Um Puskás eras / A fera das feras da esfera”, dizem os versos, lançando mão de aliterações e assonâncias ao demarcar a diferença entre duas épocas.
Em Massarandupió, parceria com Chico Brown, o compositor evoca a paisagem à beira-mar onde o menino, frente ao xuá das ondas que se repete de modo incessante, roga: “Ó mãe, pergunte ao pai / Quando ele vai soltar a minha mão / Onde é que o chão acaba / E principia toda a arrebentação”. O mundo de dentro e o mundo de fora espelhados no desamparo.

O disco conta ainda com duas regravações. A belíssima A moça do sonho, escrita originalmente para o musical Cambaio, e Dueto, que Chico compôs em 1980 e interpretou então, a duas vozes, com Nara Leão. Dessa vez, o gracioso duo é com a neta Clara Buarque. E o clima afetivo do registro se confirma ao fim da letra, quando a dupla arrisca um improviso que atualiza a canção. Após os autos, as bulas, os signos, os orixás, vêm o “Face”, o Twitter, o Skype, o Tinder.

A música que empresta o título ao CD é a mesma que o encerra. As caravanas – na canção, há esse artigo “as” que tanto sugere, ao indicar precisão sobre o sujeito de quem se fala – pode ser incluída desde já entre as grandes composições brasileiras do século. Nela, Chico trata de nossa cisão social – e de racismo.

“A caravana do Irajá, / o comboio da Penha / Não há barreira que retenha / esses estranhos / Suburbanos tipo mulçumanos / do Jacarezinho / A caminho do Jardim de Alá”, e os versos aproximam margens tão distantes (e tão próximas) como a população da periferia carioca e os refugiados da África, estabelecendo pontes entre a Maré e Benguela, entre a prisão e o porão das caravelas. O olhar enviesado com relação ao outro, àquele que afronta a “gente ordeira e virtuosa” ao adentrar os limites da “real grandeza”, redunda na premissa expressa na estrofe final, que anuncia sem mais rodeios o “remédio”: “Tem que bater / tem que matar, / engrossa a gritaria”. Então a rima se completa: “Filha do medo, a raiva é mãe da covardia”. Uma poderosa síntese do moto-contínuo da segregação.

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