03/08/2018 - 21:05

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Pelo fim do juridiquês

03/08/2018 - 21:05

Pelo fim do juridiquês

Iniciativas dos poderes Judiciário e  Legislativo têm como objetivo
garantir uma linguagem mais clara e objetiva em leis, sentenças e processos
 
PATRÍCIA NOLASCO
Sabe o que é cônjuge virago? E consorte supértite? Que tal cártula chéquica? Ou, quem sabe, animus furandi ou animus necandi? Ergástulo público, talvez?

Se você é advogado, juiz, promotor ou defensor, não deve ter maior dificuldade para entender que estamos falando, em juridiquês, de esposa, viúva, cheque, ânimo de furtar ou de matar e, por fim, cadeia. Mas, para um leigo, especialmente se não souber algum latim, expressões empoladas como essas em sentenças ou petições judiciais são uma barreira e tanto para a compreensão do que está sendo dito no processo que, afinal, lhe diz respeito.

Felizmente, nota-se, no Judiciário e no Legislativo, esforços na busca de uma linguagem mais clara e acessível, especialmente nos últimos anos. Avesso ao pedantismo que ainda permeia alguns textos do Direito, o juiz da 2ª Vara Cível de São Gonçalo e professor André Luiz Nicolitt diz que, da perspectiva da linguagem em sentenças, a forma rebuscada e inacessível às pessoas comuns “viola os próprios princípios constitucionais, na medida em que impede o acesso à Justiça, ferindo o princípio da publicidade”.

Do ponto de vista jurídico, Nicolitt entende que um texto complexo é indicativo de exercício de poder sobre os que não podem alcançar seu significado. “É uma violência que se faz, uma prática autoritária aproveitando-se da linguagem contra a democratização do acesso à Justiça.”

É claro, ressalva o magistrado, que apesar de o jurista ter obrigação de manifestar-se de forma acessível, “há peculiaridades da função que exigem o uso da norma culta, incluindo algumas expressões latinas necessárias e já incorporadas pela população, como é o caso de habeas corpus”. Não se trata, portanto, de abrir mão de palavras técnicas próprias do Direito, explica. “O problema é encontrar a justa medida, escrever é um ato de comunicar de forma clara”. Nicolitt tampouco se opõe ao costume de alguns juristas de proferir suas decisões em versos. “Eu mesmo já o fiz, mas a sentença estava clara.”

Ainda em 2005, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) empreendeu uma campanha – com cartilha e glossário – pela simplificação da linguagem jurídica, depois de uma pesquisa do Ibope ter captado o incômodo e a rejeição da população diante de palavras que não compreendia. No Superior Tribunal de Justiça (STJ), a ministra Nancy Andrighi também resolveu, na mesma época, criar em sua página no site da corte a ferramenta Entenda a decisão para facilitar às pessoas comuns a compreensão das decisões.

No site do Senado Federal, se o cidadão quiser pesquisar sobre projetos em tramitação, encontra na aba Identificação da matéria o nome do autor e, seguindo-se à ementa apresentada no texto, o item Explicação da ementa, um serviço criado justamente para facilitar o entendimento das proposições.

Relator para sentenças no anteprojeto do Código Penal elaborado por uma comissão de juristas do Senado, o procurador regional da República Luiz Carlos dos Santos Gonçalves também se preocupou em adotar linguagem acessível.

“Muitas vezes, por etiqueta ou pudor, a lei não chama as coisas pelo nome verdadeiro. É por esta razão que nosso projeto fala em ‘sexo anal’ ou ‘sexo oral’, em vez do eufemístico ‘atentado violento ao pudor’. Em outras ocasiões, diz o procurador, foi percebida “a linguagem cifrada para ocultar soluções que têm bom trânsito na comunidade jurídica, mas talvez não na sociedade em geral”. Ele exemplifica. “A eutanásia sempre esteve prevista em nosso Código Penal como causa de redução da pena do homicício. No entanto, sua disciplina jurídica se escondia na locução ‘relevante valor moral’. Deliberamos chamá-la pelo nome. Como consequência, não sei quantas vozes disseram que estamos introduzindo a eutanásia no Código Penal, como se ela já não estivesse ali!”

 Mas há um outro lado, ressalva. “Muitas vezes, o linguajar comum não atende aos reclamos da técnica jurídica. Usá-lo seria, portanto, criar imprecisões ou dúvidas. Dolo não pode ser traduzido simplesmente por intenção, putativo tem mais densidade semântica do que imaginário, e antijuridicidade não se reduz facilmente a injustiça”, enumera. A solução, segundo Luiz Carlos, foi buscar “o máximo de clareza possível, desde que isto não resultasse num prejuízo à aplicabilidade ou certeza da lei”.

 Na opinião do jurista, maior simplicidade da redação não se traduz, necessariamente, em utilidade para as pessoas comuns que buscam seus direitos na Justiça. “Do modo como vejo as coisas, o problema não é de linguagem. É de dinheiro, estrutura e cultura de observância da lei. Não há tradução coloquial de precatório que esconda o fato de que o Poder Público é, normalmente, mau pagador; não há sinônimo de jurisdição que prescinda da Defensoria Pública ou de convênios para o atendimento de pessoas carentes”.

 Assim como Nicolitt, Luiz Carlos não vê problemas em citações poéticas ou estilos diferentes em cada sentença. “O melhor juiz que conheci escrevia de maneira oblíqua, mas suas sentenças eram ótimas. Outros redigiam sentenças ruins, mas usando termos simples”.

 Ele encerra citando um provérbio alemão: “É melhor ser rico e saudável do que pobre e doente”. Vale dizer, explica: “A situação ideal é a das sentenças justas, ponderadas, dadas em tempo razoável e escritas em linguagem clara. Mas se eu tiver que optar, fico com as sentenças justas, ponderadas e dadas em tempo razoável, ainda que escritas em estilo gongórico, parnasiano ou simbolista”.

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