08/05/2015 - 15:17

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Redução da maioridade penal: retrocesso à vista?

08/05/2015 - 15:17

Redução da maioridade penal: retrocesso à vista?

Defensores do pensamento social e do conservadorismo político polemizam sobre proposta que baixa para 16 anos a idade para responsabilização criminal. Entre os adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de internação, apenas 13,3% praticaram delitos contra a vida
 
RENATA LOBACK
Junho de 2013. O país é tomado por manifestações marcadas pelas pautas dos direitos sociais. Outubro de 2014. A população elege o Congresso Nacional mais conservador desde 1964, de acordo com levantamento do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap). A incoerência dos dois momentos e a disputa acirrada que se estabeleceu desde então, opondo defensores do pensamento social e do conservadorismo político, fez com que, em pouco mais de dois meses desta legislatura, matérias polêmicas, até então adormecidas, fossem resgatadas. Entre elas, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 171, de 1993, de autoria do deputado federal Benedito Domingos (PP/DF), que defende a redução, de 18 para 16 anos, da maioridade penal.

Para os deputados favoráveis, já passou do momento de analisar a medida, que, segundo eles, acabaria com a sensação de impunidade vivida pela população. Por se tratar de cláusula pétrea da Carta, afirmam os contrários à PEC, ela sequer poderia ser discutida. No meio do debate, uma das populações jovens que mais morre no mundo: 30 mil a cada ano, sendo 77% deles negros, de acordo com a Anistia Internacional.

Aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) no dia 31 de março, por 42 votos a 17, a Proposta 171 será analisada por uma comissão especial na Câmara dos Deputados, presidida por André Moura (PSC/CE). O grupo terá cerca de três meses (40 sessões) para fechar o relatório. O texto precisa passar por duas votações no plenário, com o sim de pelo menos 60% dos parlamentares, para ser aprovado.

Caso aceita, a PEC segue para o Senado, para também ser apreciada pela respectiva CCJ antes de ser apreciada pelos senadores (em duas sessões). Se o texto sofrer alteração, terá de passar por nova votação na Câmara. O processo só termina quando as duas casas concordarem sobre a redação final da proposta.

Em levantamento da Agência Câmara, 77,8% dos 27 deputados que compõem a comissão especial são favoráveis à diminuição da idade para a responsabilização penal de jovens. Entre os 21 parlamentares que concordam com a proposta, 51,8% a defendem apenas para crimes hediondos, como homicídio qualificado, latrocínio (roubo seguido de morte), estupro e sequestro. Outros 25,9% querem que alcance qualquer crime cometido.

Dos favoráveis, 17 (63%) apoiam a responsabilização aos 16 anos. Três deputados defendem que não haja idade limite, cabendo ao juiz definir se o adolescente irá responder ou não como adulto. Um parlamentar sugere que aos dez anos a criança já seja considerada penalmente responsável.

O debate pela mudança e melhoria do sistema de segurança deveria, obrigatoriamente, passar pelas oportunidades de educação, trabalho e cultura, defende o deputado Alessandro Molon (PT/RJ), contrário à PEC. “Com a aprovação da proposta, os adolescentes pobres, especialmente os negros, serão cada vez mais marginalizados. Mas antes mesmo de entrar neste mérito, vale ressaltar que o artigo 228 da Constituição Federal, que delimita a idade mínima para punição penal, é uma cláusula pétrea, não pode ser alterado ou sequer debatido”, assinala.

Molon, em conjunto com outros parlamentares contrários à redução, ingressará com mandado de segurança no Supremo Tribunal Federal (STF) solicitando a suspensão da proposta, com base no artigo 60, parágrafo 4º. “Nossa Constituição é clara ao afirmar que não podemos nem deliberar um projeto de emenda que vise a abolir uma cláusula pétrea. Logo, é impossível, dentro desta Constituição, mudar a idade mínima para o processo penal. Apenas uma nova assembleia constituinte poderia dizer o contrário”, defende o deputado.

A medida, segundo Molon, está sendo elaborada voluntariamente por juristas e parlamentares defensores da causa. “Não queremos ingressar com o mandado às pressas. Estamos cuidando cautelosamente de todo o embasamento jurídico antes de apresentá-lo ao STF”, afirma.

O ministro aposentado e ex-presidente do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral Carlos Mário da Silva Velloso, que defende a redução da maioridade, argumenta que não há consenso quanto ao entendimento de que a questão é uma cláusula pétrea. “As constituições devem ser feitas para durar. As circunstâncias sociais, econômicas e sociológicas se alteram. Há os que argumentam que a fixação da maioridade penal em 18 anos estaria incluída na tábua dos direitos e garantias individuais. Todavia, redução da maioridade penal, para mim, é apenas questão de política criminal”, afirma.

Segundo o subprocurador-geral da OAB/RJ, Thiago Morani, não é necessário um debate profundo sobre o poder punitivo do Estado para atestar o status de cláusula pétrea da questão. “A Constituição é uma limitação do poder estatal e uma garantidora de direitos fundamentais. O artigo 228 é um desses exemplos, já que é limitador do poder punitivo do Estado e garantidor da inimputação penal aos menores de 18 anos. Logo, é claramente uma cláusula pétrea. Diminuição da maioridade penal, ou menoridade, termo que acho mais justo, tendo em vista que é a idade mínima cujo indivíduo pode ser criminalmente imputável, só numa próxima Constituição”, pondera Morani.

Para Velloso, o STF tem sabido compreender sua missão como corte constitucional e saberá responder com cientificidade, quando consultado, se a questão é pétrea ou não.

Em pesquisa realizada no início de abril pelo Instituto Datafolha, 87% dos entrevistados afirmaram ser favoráveis à redução. Apenas 11% foram contrários à proposta e 2% não souberam responder ou se consideraram indiferentes. Para a conselheira seccional pela OAB/RJ e coordenadora do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro, Camila Freitas, o fato de o Congresso brasileiro ser um dos mais conservadores das últimas décadas já é consequência de grande parte da sociedade defender propostas como a redução da maioridade e ter a ilusão de que a solução dos problemas passa pelo Direito Penal.

No entanto, destaca Camila, espera-se que no meio jurídico e em setores relacionados à saúde, à educação e às ciências sociais tal percentual seja reduzido, tanto pela defesa dos direitos dos adolescentes como por questões de política criminal. “E é o que temos visto. Recentemente, a OAB, a Associação Juízes pela Democracia, a Associação Paulista do Ministério Público, o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, assim como outras instituições, manifestaram posição contrária à proposta de redução da maioridade penal”, salienta.

Mesmo favorável à proposta, o deputado André Moura diz que sua missão como presidente da comissão especial da Câmara é garantir aos contrários os meios para defenderem seus argumentos no debate. “Este grupo terá um papel, acima de tudo, de responsabilidade. É uma matéria polêmica e mexe com o cotidiano do povo brasileiro”, diz.

Para Moura, a Câmara não pode deixar de discutir e legislar sobre uma matéria, só porque é controversa. “O atual sistema de correção, baseado no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), não se mostra eficaz. Vivemos a impunidade quase absoluta. Ninguém com sensatez pode dizer que um jovem de 16 ou 17 anos não sabe o que está fazendo. Há uma legislação injusta, que protege o bandido adolescente, independentemente do crime cometido. Pior, ao completar a maioridade, ele será considerado réu primário. Esta PEC trata de uma questão de justiça, não uma política pública visando a reduzir a criminalidade”, argumenta o deputado na defesa de seu posicionamento.

A socioeducação está fundada nos princípios e parâmetros legais da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), da Convenção dos Direitos da Criança (1989), da Constituição de 1988, do Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990, do Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária de 2006 (PNCFC), e do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo de 2006 e 2012 (Sinase). Preceitos que, segundo Juraci Brito, integrante do Conselho Regional de Psicologia (CRP) do Rio de Janeiro, pesquisador na área da Infância e Juventude e membro do Departamento Geral de Ações Socioeducativas do Estado (Degase), não são seguidos. 
 
À margem dos direitos

O CRP, explica o psicólogo, analisa a situação da redução sob vários aspectos: “O social, que colocou historicamente as pessoas menos favorecidas à margem. O dos direitos, que tem como base o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), código mundialmente elogiado e falho por falta de implantação prática e não de conteúdo. E o aspecto da psicologia enquanto ciência. É do entendimento geral dos estudiosos da área que adolescentes são pessoas em processo de construção de caráter, numa fase de muitos conflitos. Por todas essas razões não podemos nos colocar favoráveis à redução”, observa.

Pelo ECA, são previstas seis medidas aplicáveis ao menor de 18 anos que comete algum ato infracional. De acordo com o Censo do Sistema Único de Assistência Social, de 2014, o Brasil tinha 108.554 adolescentes cumprindo algum tipo de medida socioeducativa em 2012 (sendo 19% em internação ou semiliberdade). Desses, crimes contra vida, homicídios, latrocínio, estupro ou lesão corporal corresponderam a 13,3% das causas de internação, índice menor do que o de adolescentes que estão em restrição de liberdade. Respondem por roubo 38,6% dos casos e, por tráfico de drogas, 27%.

Está determinado no Sinase que cada unidade socioeducativa não poderia ultrapassar o máximo de 90 adolescentes sob sua tutela, com uma equipe técnica (composta por psicólogo, assistente social e pedagogo) atendendo a 20 jovens, cada uma, e um agente de segurança para cada cinco infratores. No entanto, conta Brito, as unidades estão superlotadas, com equipes técnicas responsáveis por mais de 50 jovens e sem agentes suficientes. “Tratamentos desumanos, violentos e que fogem aos conceitos do ECA e do Sinase. Como falar em redução da idade penal se o Estado não cumpriu o que determina a lei?”, questiona.
 
Políticas públicas
 
O deputado André Moura concorda que o estatuto nunca foi cumprido em sua plenitude, mas afirma que não dá para esperar seu cumprimento para pensar em redução da maioridade penal: “Os governos – tanto o atual quanto os passados – simplesmente ignoraram o ECA. Onde estão as políticas públicas de cultura, lazer, esporte, educação integral e saúde para os adolescentes, sobretudo para quem vive nas áreas de risco social comprovado? Quantos anos devemos esperar para termos no país a educação de excelência, a política de geração de emprego e renda eficiente e as políticas públicas de extrema qualidade para depois pensar na redução da maioridade? E, nesse intervalo, quantas serão as vítimas dessa bandidagem que toma conta do país? As pesquisas de opinião pública mostram que a redução da maioridade penal é uma das matérias mais em evidência entre os anseios da sociedade.”

Se o sistema socioeducativo fosse aplicado em sua plenitude, defende Juraci Brito, talvez só ele desse conta da ressocialização dos adolescentes infratores. “O Estado não consegue pôr em prática todos os dispositivos do ECA e em vez de vermos a Câmara debatendo propostas que cumpram este papel, assistimos a uma tentativa de penalização dos adolescentes. Parece uma forma de tirar do Estado a responsabilidade pela falta de políticas de proteção e de direitos. É muito mais fácil culpar a população do que cumprir seu papel de Estado. Hoje, temos um sistema que mais viola do que educa”.
 
Sem resultados
 
Camila Freitas tem o mesmo entendimento. Para ela, o fato de sermos um dos países mais encarceradores do mundo não trouxe resultados para a redução nos índices de violência. “Existem adolescentes internados por longos períodos. Muitos privados de liberdade por mais tempo do que os adultos. O relatório do Subcomitê de Prevenção à Tortura da ONU e dados recentes do Conselho Nacional de Justiça revelam claramente a superlotação nos sistemas penitenciário e socioeducativo. Portanto, o Brasil já responsabiliza os adolescentes infratores e ainda os submete a condições precárias durante a internação, assim como vivem os adultos presos.
 
Sucede que  os estudos de criminologia comprovam não haver relação entre a privação de liberdade e a redução dos índices de criminalidade. Desta forma, a redução da maioridade penal não trará os resultados esperados pelos setores conservadores. Muito pelo contrário. O sistema continuará sendo retroalimentado, como comprovam os elevados índices de reincidência no Brasil”, pondera.

Segundo ela, relatórios dos órgãos que visitam as instituições, como o Mecanismo, apontam falta de luz, escassez de água e precariedade no fornecimento de itens de higiene básica como algumas das violações do sistema socioeducativo. “A tortura também é frequentemente verificada em tais unidades. No entanto, são poucos os que comentam sobre o combate à tortura e aos maus tratos no sistema socioeducativo, tampouco há indignação com os alarmantes índices de homicídios de jovens negros no Brasil. Por tudo isso, acredito que a redução da população internada e a adoção de medidas em meio aberto, como a liberdade assistida ou a prestação de serviço em comunidade, seriam mais eficazes para a prevenção da prática do ato infracional.  De todo modo, é preciso melhorar as condições das unidades de internação e garantir a formação humanista de seus servidores”, diz. 

O ex-presidente do STF Carlos Velloso concorda que os presídios brasileiros não são adequados para receber os jovens, mas, para ele, a redução ainda é a solução: “O condenado, maior de 16 e menor de 21 anos – não somente, portanto, o menor de 18 anos –, deve receber tratamento prisional distinto. Os poderes executivos federal e estaduais devem construir penitenciárias adequadas. É da responsabilidade do Estado dotar os presídios de condições que façam respeitada a dignidade humana. O que não é possível é o cidadão ser vítima da violência praticada por menores de 16, 17 anos.” 

Para Thiago Morani, há muitos pontos a serem discutidos para combater a violência que antecedem a redução da menoridade. “A medida socioeducativa, apesar de não ser, ainda, a ideal, é extremamente menos gravosa do que a prisão. Antes de pensar em inserir o adolescente no sistema penal, debater a expansão do período de internação no sistema socioeducativo seria uma alternativa, apesar de eu ainda não concordar com o perfil encarcerador do país. O que vemos é um debate sobre o alargamento do prazo que o jovem ficará afastado da sociedade, sem qualquer contraprestação do governo. Sem os deveres e garantias que o Estado deveria possibilitar. Defende-se a prisão para os adolescentes, mas as medidas que fariam com que saíssem do crime não são debatidas”, destaca Morani. 
 
Estratégia
 
A Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República negocia com o Senado a possibilidade de a casa legislativa acelerar a votação de um projeto de lei que endurece as penas dos adultos que cooptam crianças e adolescentes para o cometimento de crimes. Trata-se de uma estratégia para tentar tirar força do projeto que propõe a redução da maioridade. 

A presidente Dilma Rousseff publicou texto em uma rede social posicionando-se contra a diminuição. Para ela, isto não resolverá o “problema da delinquência juvenil” no país. Na mensagem, intitulada “Sou contra a redução da maioridade penal”, Dilma disse ainda que, se a proposta virar lei, significará “grande retrocesso”.
Segundo o presidente da comissão especial da Câmara, deputado André Moura, cumprido o prazo de tramitação no grupo, a matéria será posta o mais brevemente possível em votação do plenário. “É uma questão de pouco tempo para termos uma decisão oficial sobre o assunto”, adianta.

O presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ, Marcelo Chalréo, repudia a PEC. Segundo ele, o adolescente brasileiro, especialmente os negros, pobres e moradores das periferias das grandes cidades, encontra-se muito mais no papel de vítima dentro do sistema de segurança pública do que no de causador da violência que lhe é imputada. “Os números apontam para um percentual ínfimo de homicídios cometidos por adolescentes ao passo que, em números absolutos, demonstram que o Brasil é o segundo país do mundo em homicídios praticados contra esta população. Repudiamos veementemente qualquer proposta reducionista bem como os sistemáticos esforços envidados com escopo de criminalização da pobreza”, diz documento divulgado pela comissão.

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