15/03/2016 - 17:25

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Se você não foi até o feminismo, o feminismo foi até você

15/03/2016 - 17:25

Se você não foi até o feminismo, o feminismo foi até você

Movimento por igualdade de gênero foi um dos principais assuntos nas redes sociais em 2015, alertando a população para as demandas das mulheres na sociedade e estimulando ações dentro e fora da internet
 
CÁSSIA BITTAR E NÁDIA MENDES
 
Muito se ouviu falar em feminismo em 2015. Antes estigmatizado, o movimento teve, do último ano até agora, seu ponto máximo em popularidade desde o advento da internet, que serviu como principal instrumento para que as novas gerações conhecessem a luta por igualdade de gênero. Concentrado principalmente em grupos de discussão e blogs específicos até então, o feminismo se fortaleceu a partir de uma sucessão de fatos em curto período de tempo, produzindo uma espécie de catarse nas redes sociais. Não foi raro, nos últimos meses, que usuários – até os mais desligados do movimento – se deparassem com hashtags como #AgoraÉqueSãoElas, que consistiu em abrir espaços na mídia para que mulheres tivessem voz, e #MeuAmigoSecreto, que denunciou casos de machismo naturalizados no cotidiano.

As ações nas ruas do Brasil já contavam com a Marcha das vadias, protesto iniciado em Toronto, no Canadá, em 2011, como resposta à declaração de um policial sobre segurança no campus de uma universidade. Ele dissera que as mulheres poderiam evitar ser estupradas se não se vestissem como vadias. Pouco tempo depois a manifestação foi adotada em várias capitais do país, sendo mantida até hoje.

Porém, o crescimento do ativismo na rede influenciou também o movimento fora dela, ampliando as manifestações. Em novembro, lideranças organizaram passeatas contra o Projeto de Lei 5069/2013, de autoria do presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha. A proposta cria uma série de dificuldades para o acesso à pílula do dia seguinte e obriga as vítimas de estupro a passarem por exame de corpo de delito antes de poderem abortar na rede pública de saúde. Chamado de Mulheres contra Cunha e também de Primavera das mulheres, o protesto reuniu milhares de pessoas em ações no Rio de Janeiro e em outras cidades, pedindo a queda do deputado e alertando para outras questões envolvendo opressão de gênero e de raça – como o alto índice de feminicídio de mulheres negras.

Seguindo a linha, Brasília sediou, no mesmo mês, a primeira Marcha Nacional de Mulheres Negras, que reuniu 20 mil mulheres de todos os estados para protestar contra o racismo e a violência. A manifestação encarou também o outro lado do movimento: a repressão e o ataque do machismo às ações. Na ocasião, dois homens armados fizeram disparos, provocando um tumulto.

“Estamos vivendo em 2016 a consequência de um trabalho muito forte que foi feito em 2015 rechaçando os atos machistas. A reação ao PL 5069 é um dos melhores exemplos disso. Esta é uma grande retomada do feminismo”, analisa a presidente da OAB Mulher,  Daniela Gusmão.

Ela associa a popularização do movimento a situações de opressão que passaram a ser identificadas: “Há três anos nós víamos que pouquíssimas pessoas falavam sobre feminismo no Facebook ou no Twitter. Mas a partir de 2014, 2015, o feminismo de repente voltou a ser um assunto em voga. As organizações estão entendendo esses movimentos que surgem na internet ou nas ruas. Existe uma tentativa de reconceituação do que é o feminismo, acredito que muito forçada por essa retomada da vontade da própria mulher de descobrir o conceito, que estava meio esquecido. A internet é um instrumento de mudança fundamental porque esta é uma luta global”, frisa Daniela.

Exemplo disso foi a criação do bloco de carnaval Mulheres rodadas, que ganhou repercussão internacional por trazer questões políticas e sociais junto às brincadeiras típicas da folia. O bloco foi criado de forma totalmente espontânea, como mais um movimento nascido das redes sociais. Em resposta à foto de um homem segurando cartaz com a frase “Eu não mereço mulher rodada”, internautas se mobilizaram e criaram páginas satirizando a afirmação, como o tumblr Mulher rodada, com gifs de mulheres literalmente girando. As ações cresceram e as jornalistas e amigas Renata Rodrigues e Débora Thomé viram surgir a ideia de organizar um bloco carnavalesco em defesa dos direitos das mulheres.

A advogada e presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (Ibdfam), Maria Berenice Dias, que teve sua trajetória profissional marcada pela luta feminista, tendo sido também a primeira desembargadora do Rio Grande do Sul, classifica como “neofeminismo” a atual fase do movimento: “Creio que entramos em um novo formato de feminismo. Tinha havido um certo contingenciamento. A sensação que eu tinha é de que, após conseguirmos algumas conquistas importantes, as novas gerações estavam conformadas, ainda se dando por satisfeitas com o fato de termos uma legislação mais igualitária e o direito ao voto, por exemplo. Agora, começaram a perceber que isso não basta. Surge um novo movimento percebendo questões de ordem social e cultural que ainda não dão tratamento igualitário de gênero para nós, mulheres, que continuamos vítimas em várias situações”, observa ela.

Berenice entende que o estigma negativo sofrido pelo movimento, subsistente, foi uma estratégia masculina: “Desde que o feminismo deu as caras os homens já começaram a desqualificá-lo. Criou-se um senso comum de que feminista era mulher feia, mal amada, que ninguém queria. As mulheres tinham grande dificuldade em se identificar como feministas. Foi muito importante que algumas tenham desconstruído esse conceito e se afirmado”.

A advogada pondera ainda que, atualmente, os próprios homens aderem ao feminismo – a exemplo da campanha da ONU Mulheres, replicada pela OAB/RJ. Ela destaca a atual mobilização de alunas do Colégio Anchieta, em Porto Alegre, pela permissão do uso de shorts na escola. As adolescentes criaram uma petição online intitulada Vai ter shortinho, sim, pedindo “que a instituição deixe no passado o machismo, a objetificação e sexualização dos corpos das alunas e a mentalidade de que cabe às mulheres a prevenção de assédios, abusos e estupros”.

“Os meninos participam dessa ação”, observa Berenice, completando: “Os homens estão entendendo que a cultura machista pode prejudicar a eles mesmos, que são criados sob uma série de dogmas sobre masculinidade”.

Segundo a antropóloga Adriana Facina, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a popularização do feminismo se deu de forma contínua: “A transformação do feminismo, de  movimento de vanguarda a movimento de massas, é um dos processos mais positivos que a gente está vivendo no momento. Mas isso não se deu de uma hora para outra, foi um processo de longa duração que tem a ver com as lutas feministas que estão aí há mais de um século e que vão se dando em sistema de acúmulo. As redes sociais contribuíram para que essa discussão se tornasse mais ampla e mais democrática. Antes mesmo dos movimentos políticos de junho de 2013, as ideias já estavam sendo ampliadas em discussões que iam além dos espaços mais tradicionais, como partidos e sindicatos.
 
Campanha nas redes sociais

Uma das primeiras iniciativas dessa nova fase  foi a campanha Chega de fiu-fiu, criada pelo coletivo Think Olga em parceria com a Defensoria Pública de São Paulo, em 2013. A iniciativa visa a combater o assédio sexual em espaços públicos e teve participação de mais de oito mil mulheres. Na pesquisa, foi revelado que 98% delas já haviam sofrido assédio; 90% trocavam de roupa antes de sair de casa – acreditando que assim não sofreriam assédio – e 81% tinham deixado de fazer algo como ir a algum lugar, passar em frente a uma obra, sair a pé ou à noite sozinha, pelo mesmo motivo.

O movimento intensificou-se através de respostas a declarações e ações opressoras por parte de homens na rede. Um dos exemplos foi a hashtag #MeuPrimeiroAssédio, também pensada pelo Think Olga depois que uma criança de 12 anos que participava do programa de culinária MasterChef Júnior foi vítima de comentários de teor sexual na internet. A intenção era que as pessoas contassem sobre o primeiro assédio, ainda que considerado sutil, que sofreram. O resultado foi cerca de 100 mil histórias compartilhadas, com a adesão, inclusive, de pessoas públicas, que, ao falar sobre seus casos, estimularam outras a fazer o mesmo. Isso escancarou uma realidade por muito tempo escondida: a maior parte das mulheres sofreu algum tipo de abuso sexual quando criança – com os dados, foi possível calcular que a média de idade do primeiro assédio é 9,7 anos –, muitas por conhecidos ou familiares. A campanha teve destaque como um movimento de solidariedade feminina ou, na linguagem feminista, de sororidade (do latim sororis, irmã).

“A sororidade, sem dúvidas, é a maior contribuição do feminismo que já colhemos de forma prática. Ela faz com que as mulheres como um todo se compreendam oprimidas pelo machismo e criem uma rede de apoio não necessariamente através da militância, mas no seu dia a dia. É você ver uma mulher oprimida e pensar: eu compartilho dessa mesma opressão e vou ajudar essa mulher ou pelo menos me solidarizar com ela”, destaca a advogada Roberta Eugênio, militante feminista.

Segundo ela, a campanha trouxe para muitas a noção de que não eram culpadas pelos assédios verbais ou físicos que sofreram: “Eu mesma participei da campanha sem refletir muito sobre qual seria o impacto daquilo em mim. Nós crescemos deixando para trás as opressões que sofremos, pensando que não interferem mais na nossa vida conforme vamos nos tornando adultas. Mas quando publiquei meu relato tive um momento de crise, fiquei muito triste, chorei. Depois me preocupei com minha exposição, ainda mais pela minha profissão, que é pública. Mas logo depois fiquei feliz com o retorno. A quantidade de mulheres que não necessariamente participaram, mas que pararam para refletir sobre seu primeiro assédio e que vieram até mim e falaram que viveram isso foi muito significativa nesse momento de união”.
 
Avanços e reações

Berenice Dias salienta o quanto os avanços ainda são recentes em relação a representatividade: “Ellen Gracie [a primeira mulher a integrar o Supremo Tribunal Federal em 2000, 110 anos após a criação da corte] nunca usou calças compridas no plenário, por exemplo, somente saias. A ministra Cármen Lúcia Rocha foi a primeira a fazer isso, e na época [2007] o fato se tornou destaque nos jornais. São apenas alguns anos e vejam como o simples fato de usar uma calça não é mais um tabu”.

Como qualquer luta política, o feminismo encara ainda uma grande repressão – em grande parte, munida de ódio –, que ficou muito clara com os comentários nas redes sociais – foram cerca de 106 mil posts sobre o tema – revoltados com o tema abordado no último Exame Nacional do Ensino Médio (Enem): a persistência da violência contra a mulher na sociedade. Além da redação sobre o assunto, a prova continha também uma questão sobre a escritora e ativista francesa Simone de Beauvoir, uma das pioneiras do movimento feminista.
“Apesar das conquistas, vivemos um momento de muito retrocesso em relação à igualdade de gênero. Por isso é tão importante esse movimento de massa. Temos avanço nos direitos, em uma cultura mais democrática e libertária, mas há uma resposta a isso e ela vem no recrudescimento dos setores mais conservadores. A representação que eles têm no nosso Congresso Nacional é um exemplo”, observa Adriana Facina. “Isso se une ao fato de que os setores conservadores geralmente são os que possuem mais poder econômico e mais chance de se elegerem. Agora estamos em uma fase de encarar a reação ao crescimento de movimentos como o feminismo, mas que inclui também os direitos LGBT, da população trans, as questões raciais etc.”, completa.
Para Roberta, que participa do movimento feminista negro, a disseminação permitiu também que haja mais espaço para abordar questões específicas das mulheres. “O crescimento do feminismo se deve à compreensão das pautas relacionadas aos direitos humanos. A internet é a grande propulsora porque muita gente que tinha dificuldade de acesso, tanto a conteúdo teórico como a grupos de apoio, encontra isso na rede e está entendendo que suas vivências se relacionam com a opressão de gênero. Sem a internet não conseguiríamos impulsionar as causas feministas junto às mulheres que moram em periferias, por exemplo. É a partir daí que são reconhecidas também as outras facetas do feminismo, como o negro, o que abraça as causas LGBT, as diversas expressões que através da rede vêm ampliando essa grande luta por direitos de grupos historicamente oprimidos”, explica a ativista.
 
Interseccionalidade

É comum que se veja hoje nas redes outra palavra relacionada ao tema, a interseccionalidade. E, para Roberta, o conceito se relaciona desde a sua origem com o Direito: “A interseccionalidade surge na literatura feminista negra na década de 1980 nos Estados Unidos com Kimberley Crenshaw,  que era advogada. Crenshaw viu que a separação de políticas para mulheres, para negros, para pobres, representava algo não se alinhava à realidade porque essas opressões na prática se atravessavam. Eram, portanto, interseccionais”. Ela continua: “Trabalhar uma política somente direcionada à mulher, não entendendo as particularidades que uma negra vivenciava na sociedade não trazia os benefícios que se esperava para políticas públicas. Assim, a advogada começou a usar esse conceito para tentar mudar decisões judiciais aplicadas ou somente a um conceito de gênero ou de raça ou de classe”, rememora.

Facina reforça: “As mulheres de periferia sempre viveram o feminismo na prática, porque tinham que trabalhar, sustentar suas famílias e sofriam as opressões de gênero. Mas agora elas adotam claramente dessa identidade política de feminista. Notamos as variáveis de raça e classe como parte da reivindicação dos direitos das mulheres”.

“A expansão do feminismo é um caminho sem volta”, resume Berenice. 

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