15/03/2016 - 17:55

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Proibição do livro Minha luta, de Hitler

15/03/2016 - 17:55

Proibição do livro Minha luta, de Hitler

Proteção dos valores civilizatórios

ARY BERGHER*
A possibilidade de publicação, edição e comercialização do livro racista escrito por Adolf Hitler deixou-me, como advogado criminal, perplexo, o que me fez apresentar notícia-crime ao procurador-geral de Justiça do estado, Marfan Vieira, que, por distribuição, encaminhou-a ao promotor Alexandre Themístocles. O Ministério Público requereu então à 33ª Vara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro medida preparatória para impedir essa fragrante ilicitude. Em decisão histórica, o magistrado Alberto Salomão determinou a proibição de venda, exposição, divulgação e comercialização do livro Minha luta, de Hitler, realizando ainda  busca e apreensão de exemplares do mesmo, no Rio e em São Paulo.

Além de absolutamente de acordo com a legislação brasileira, a imposição determinada pelo magistrado tem o efeito de impedir que se propague o racismo, a discriminação racial e o antissemitismo, práticas expressamente vedadas pela Constituição Federal.

Ao que tudo indica, os poucos editores brasileiros do sobredito  livro estão mais preocupados com o lucro que pode ser obtido com a venda da obra do que com a própria liberdade de expressão, já que agora seus direitos autorais não pertencem mais ao Estado da Baviera, na Alemanha. Afiguram-se nitidamente duas únicas intenções: a obtenção de vantagem econômica e o indissimulável intuito de propalar os ideais nazistas.

É preciso que fique claro: a proibição neste caso não significa censura, mas verdadeira proteção dos valores fundamentais civilizatórios destruídos pelo nazismo. Por outro lado, permitir única e exclusivamente a publicação e comercialização do livro nazista de Hitler sob a forma de edição crítica é o que configuraria, por via transversa, a censura, na medida em que tornaria obrigatória a elaboração de uma crítica. E a simples edição do livro desacompanhada de qualquer crítica vai contra as leis brasileiras e ao que decidiu o Supremo Tribunal Federal no conhecido caso de uma outra publicação nazista, no sentido de que a liberdade de expressão deve ser relativizada, se com a publicação pratica-se crime.

Nesta linha, o STF sublinhou de formar solar não haver rigidez na liberdade de expressão, já que esta não pode ser imoral ou criminosa. Na aparente colisão entre dois ou mais comandos constitucionais, existe uma verdade axiomática: o direito à vida e à dignidade humana se sobrepõe à liberdade de expressão. Sendo assim, nessa dialética, o Supremo decidiu: a liberdade de expressão, não é, e não pode ser absoluta.

Também se fala que a proibição do livro de Hitler seria ineficaz porque seu texto pode ser obtido na internet. Ora, no território livre da rede obtém-se tudo, inclusive manuais de pedofilia, terrorismo, etc. Nem por isso, entretanto, é permitida a publicação de livros que propalem tais brutalidades e barbarismos.

O livro de Hitler não só propaga o racismo como sugere a exterminação física do que se afirma serem raças inferiores. A proibição de sua publicação, divulgação e comercialização é, pois, fundamental para que jamais ocorra – como preceitua Carlos Roberto Schlesinger, presidente da Associação Nacional de Advogados e Juristas Brasil-Israel (Anajubi)  – novamente uma “Noite dos Cristais” [a explosão de violência nazista contra judeus em 9 de novembro de 1938] ”.
 
*Conselheiro seccional da OAB/RJ


Desconstruindo mitos

CLÁUDIO LINS DE VASCONCELOS*
Não existe forma mais eficaz de matar uma ideia estúpida do que deixando que ela exponha a própria torpeza. Minha luta, de Adolf Hitler, é um livro abaixo da crítica. Seu autor foi um orador eloquente, mas um escritor medíocre e nunca foi um intelectual. Seu conteúdo, odioso, é constrangedoramente pseudo-científico, com conclusões referendadas por passagens bíblicas, empirismos baratos e teorias conspiratórias.

Diante do nível da obra, Jean-Jacques Chevallier disse: “Achamo-nos verdadeiramente em presença de um caso-limite, em que uma prodigiosa oportunidade histórica proporcionou uma força de penetração e uma celebridade extraordinárias a uma obra intrinsecamente medíocre – mesmo sem levar em conta o fato de que revolta, sob tantos pontos de vista, o espírito humano”. (As grandes obras políticas de Maquiavel a nossos dias. Rio de Janeiro: Agir, 2001, página 419).

Mein Kampf não entrou para a história pela força persuasiva de seu conteúdo, mas pelo que representou em determinado momento histórico, do qual foi um dentre muitos símbolos: um sinal externo de lealdade ao regime; algo para ser exposto, mais do que lido. Sua importância como literatura ou filosofia é nula, mas para a história, a sociologia, as ciências políticas, a psicologia e também para o Direito é imensa, pois mesmo aos trancos e barrancos documenta os elementos-chave da execrável doutrina nazista.

Como é possível se saber tudo isso? Lendo. Por isso a proibição de Minha luta – como seria o caso de qualquer livro que me venha à mente no momento – coloca em xeque não apenas a liberdade de expressão como a liberdade de informação e a pesquisa científica. A história da humanidade está repleta de erros e para nossa sorte parte deles está documentada. Assim, podemos conhecê-los, discuti-los e principalmente evitá-los no futuro. Varrer a sujeira histórica para debaixo do tapete não nos ajudará a lidar com supremacismos delirantes. É mais fácil desconstruí-los, falácia por falácia, à luz do dia.

A Constituição e o Direito Internacional classificam a liberdade de expressão e informação como um direito fundamental, essencial à democracia e à dignidade humana. É possível haver abusos? Sim, mas para isso há muitos remédios, do direito de resposta à indenização do dano, todos a posteriori. A censura prévia é intolerável, como decidiu o STF no caso das biografias não autorizadas, salvo, talvez, na iminência de um cataclismo. A venda, no Estado do Rio de Janeiro, de exemplares de um livro cuja íntegra está disponível na Wikipedia não é capaz de causar, por si só, uma tragédia. Criar um index de livros proibidos, sim. Há muitas outras obras preconceituosas. Teremos um comitê?

Proibir livros é um ato que nos remete aos piores momentos da humanidade. Em 1933, Hitler ordenou a famigerada Bücherverbrennung, ou queima de livros. No topo da lista, nomes do quilate de Sigmund Freud, Albert Einstein, Stefan Zweig, Thomas Mann, entre tantos outros intelectuais inimigos do regime. Todos ou quase todos judeus, um povo que há séculos cultiva o estudo, a ciência, as artes, entre outros valores que são mesmo uma ameaça constante aos regimes autoritários. Ainda bem. Devemos muito a eles por isso.
 
* Advogado, doutor pela Uerj, vice-presidente da Comissão de Direitos Autorais, Imateriais e do Entretenimento da OAB/RJ

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