14/10/2015 - 17:16

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Trabalho aos 14 anos. Retrocesso?

14/10/2015 - 17:16

Trabalho aos 14 anos. Retrocesso?

Nos 25 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente, propostas de redução da idade mínima suscitam polêmica.
 
NÁDIA MENDES
O combate ao trabalho infantil no Rio de Janeiro ganhou mais um aliado. Em setembro, o Tribunal de Justiça (TJ) se comprometeu a realizar ações para a erradicação do trabalho infantil no estado e assinou protocolo de intenções com essa finalidade, do qual a OAB/RJ também é signatária. Mas esse esforço esbarra em diversas propostas que tramitam no Congresso Nacional para regulamentar o trabalho parcial para adolescentes de 14 anos. Há, hoje, na Câmara dos Deputados seis propostas de emenda à Constituição (PECs) com tal intuito, três delas protocoladas no segundo semestre deste ano. 

A PEC 18/2011, de autoria do deputado Dilceu Sperafico (PP/PR), pode ser incluída na pauta de votação da Comissão de Constituição Justiça e Cidadania (CCJC) a qualquer momento. As outras cinco estão apensadas a ela. Atualmente, menores de 14 anos só podem trabalhar em regime de aprendizagem. Como aprendiz, é necessário que o adolescente esteja matriculado em uma instituição de ensino e seja supervisionado em suas atividades. Entre 16 e 18 anos, o trabalho só é proibido se for noturno, perigoso ou insalubre.

O autor defende que a mudança vai inserir os adolescentes no mercado formal de trabalho, atendendo à sua vontade e à necessidade de suas famílias, que muitas vezes precisam melhorar a renda e a qualidade de vida. “Na realidade, muitos desses jovens já tratam da sobrevivência das famílias, só que na informalidade, clandestinidade e até em situação muito pior, como na criminalidade, a serviço de traficantes de drogas”, diz o parlamentar.

Algumas entidades, como a Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (Anamatra), já se manifestaram contrariamente à aprovação da PEC. “Trata-se de retrocesso social em matéria de direitos fundamentais e, por essa razão, viola cláusula pétrea da Constituição. Além disso, as atuais idades estabelecidas no texto da Carta foram estabelecidas por emenda constitucional, procurando consolidar o compromisso do Brasil diante, por exemplo, da ratificação da Convenção 138 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). De lá para cá não houve mudança significativa que pudesse indicar alteração que retrocedesse no plano da prioridade completa e à proteção integral que a Carta estabelece quanto se trata de crianças e adolescentes”, observa a diretora de Cidadania e Direitos Humanos da Anamatra, Noêmia Porto. 

Para a vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (Ibdfam), Maria Berenice Dias, a situação dos adolescentes no país não é a ideal, o que muitas vezes os obriga a optar pelo trabalho desde cedo. “Pessoalmente, sou contra que adolescentes trabalhem, mas eles já estão trabalhando mesmo com a proibição na Constituição. Essa ideia de que a família deve zelar e cuidar dos adolescentes nem sempre acontece na vida real. O trabalho pode ser uma forma de retirar os jovens da marginalidade. Se eles não podem trabalhar legalmente, ficam à mercê do tráfico, que os aceita ilegalmente”, afirma.

Entretanto, ela defende que o tema seja examinado com bastante cautela. “É preciso analisar a sociedade real. Ao não se regularizar o trabalho para adolescentes, eles ficam em uma situação de invisibilidade, como se não existissem”.

Integrante da Comissão de Direito da Infância e Adolescente da OAB/RJ, Dália Tayguara ressalva que é necessária uma ampla discussão sobre essa questão no país. “Temos que compreender a realidade de cada município, não podemos nos ater apenas a São Paulo e Rio de Janeiro. O Brasil é enorme e é preciso entender o que leva os adolescentes a trabalharem mais cedo”.

Segundo Dália, a aprovação da PEC 18 pode gerar evasão escolar. “É preciso chamar os conselhos regionais de assistência social, que são onde essas demandas chegam primeiro, e que podem nos ajudar a entender o porquê de o adolescente precisar trabalhar. Uma mudança de tal natureza tem que ser discutida para que os adolescentes não sejam prejudicados. O foco deve ser esse”, defende.

O Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) apontou a redução do trabalho infantil no Brasil como uma das principais conquistas nos 25 anos de vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
 
 Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) de 2013, o número de crianças de 5 a 15 anos trabalhando era de 1,3 milhão. Em 1992, eram 5,4 milhões. A pesquisa indica, ainda, que dois milhões de brasileiros entre 14 e 17 anos trabalham de forma irregular. De acordo com o relatório do Unicef, a maioria das crianças trabalhando é de meninos negros da zona urbana, na faixa entre 10 a 15 anos. O trabalho entre crianças entre 5 e 9 anos é praticamente inexistente, de acordo com o estudo.

O ECA estabelece que crianças e adolescentes podem participar de espetáculos públicos, ensaios e de certames de beleza. Teoricamente, esse é o único trabalho que podem fazer. Titular da 2ª Vara de Infância, Juventude e Idoso da Capital do TJ, a juíza Glória Heloiza Lima da Silva explica que, legalmente, menores de 16 anos não podem trabalhar em hipótese alguma e que os alvarás são concedidos apenas se não existir caráter de trabalho. “Só é possível a participação de crianças e adolescentes em eventos artísticos que não tenham cunho trabalhista. Não se pode falar em horário a cumprir, subordinação, salário e assiduidade, elementos que classificam uma relação de trabalho. Se surgem pedidos que se encaixem em uma relação de trabalho, eu não autorizo”.

Além de não poder estabelecer vínculo empregatício, para conceder uma autorização de participação de menores em eventos artísticos a juíza avalia as condições em que a criança será inserida. “O ambiente tem que ser benéfico para o crescimento. Não posso permitir que ela seja exposta em uma situação de prostituição ou abuso. No carnaval, as crianças e adolescentes que desfilam em escolas de samba precisam dessa autorização e não podem desfilar nuas, por exemplo. Avalio se as condições são favoráveis à moral e aos bons costumes”, explica.

Porém, não existe consenso se a competência pela emissão dos alvarás é mesmo das varas de Infância. A juíza Noêmia Porto, da Anamatra, defende que a liberação seja responsabilidade da Justiça de Trabalho. Segundo ela, a Emenda Constitucional 45 de 2004, a chamada Reforma do Judiciário, ampliou a competência da Justiça trabalhista. “Hoje podemos atuar em qualquer controvérsia que diga respeito à relação de trabalho. Além disso, não se pode negar que, como ramo especializado em direito social, o Judiciário já tem bom acúmulo de debate e de reflexão sobre os temas que envolvem o trabalho infantil, combinando-os com as normativas internacionais”. 

Ela acredita que essa controvérsia se dá porque existe uma compreensão de que se tratava de mera tutela de menores. “Na realidade, essa tutela visa a uma situação específica de trabalho”, explica. Noêmia esclarece que os alvarás geralmente são negados, por exemplo, “quando se constata concretamente, à luz das circunstâncias colocadas para apreciação, que a integridade da criança ou do adolescente está em risco, o que envolve, inclusive, o aspecto da integridade psicológica”.

Em agosto, o Supremo Tribunal Federal (STF) concedeu liminar determinando que os pedidos de autorização de trabalho infantil artístico são de competência dos juizados da infância. A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5326 foi ajuizada pela Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) contra uma determinação conjunta em São Paulo e no Mato Grosso para que os pedidos fossem julgados pela Justiça do Trabalho.

No Rio de Janeiro, não existe nenhuma determinação nesse sentido. Para a juíza Glória, o ECA deixa claro que a competência é das varas da Infância. “O artigo 149 do estatuto estabelece a competência dos magistrados da infância para emitir alvarás para os menores da idade participarem de espetáculos públicos, inclusive desacompanhados de seus pais, e também de certames de beleza. Eu já autorizei a participação de crianças em um documentário, por acreditar ser uma situação que não as expunha a risco. Elas têm o direito de se desenvolver plenamente, e a arte e a cultura são uma forma de crescimento intelectual e social”, defende.

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