14/10/2015 - 16:59

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Perícia independente é a solução?

14/10/2015 - 16:59

Perícia independente é a solução?

Proposta de emenda constitucional pretende desvincular a atividade pericial da Polícia Civil. Especialistas debatem efetividade da medida para elucidação de crimes
 
RENATA LOBACK
De 50 mil homicídios ocorridos no país por ano, apenas quatro mil, ou seja, 8%, têm o autor descoberto e preso, de acordo com a pesquisa Mapas da Violência de 2011, divulgada pelo Ministério da Justiça. Em estudo do sociólogo Michel Misse, publicado em seu livro O inquérito policial no Brasil, é possível inferir que a resolução de outros crimes é ainda menor. No Rio de Janeiro, menos de 0,5% das denúncias de furtos e roubos evoluíram para um inquérito policial. Recomendação da Organização das Nações Unidas (ONU), da Anistia Internacional e do Plano Nacional dos Direitos Humanos, e a segunda diretriz mais votada pelo Conselho Nacional de Segurança Pública (Conseg), a autonomia da atividade pericial, e sua constitucionalização, que entre outras medidas, desvincula os peritos da Polícia Civil, é considerada por especialistas como base fundamental para o avanço na investigação de ilícitos. A Proposta de Emenda Constitucional, 325/2009, de autoria do deputado federal Valtenir Pereira (PSB/MT), que versa sobre esta independência e já foi aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania e pela Comissão Especial Temática, aguarda agora ir a votação do plenário da Câmara.

De acordo com o presidente da Comissão de Criminologia da OAB/RJ, Ivan Vieira, não há, ao menos em tese, nenhuma relação de subordinação entre perito e delegado de polícia. Da mesma forma como, também em tese, não deve haver interferência de um no trabalho do outro, senão as decorrentes da troca formal de informações. “Na prática, contudo, sabe-se que não são raros os casos em que o delegado de polícia busca conduzir os trabalhos da perícia, de maneira que se atinjam as conclusões por ele esperadas. Isso é nefasto para a busca de resultados válidos, sob o ponto de vista científico”, afirma.

No Estado do Rio de Janeiro, a perícia é feita por institutos, divididos em área de especialização. Identificação civil, com o Félix Pacheco; questões relacionadas à medicina, no Instituto Médico Legal Afrânio Peixoto; área criminalística, com o Instituto de Criminalística Carlos Eboli; e, para a genética, o recente Instituto de Pesquisa e Perícia em Genética Forense. Por opção política, todos foram administrativamente alocados na estrutura da Polícia Civil, cabendo ao chefe de polícia a indicação dos diretores de cada um.

Segundo o presidente da Associação Brasileira de Criminalística (ABC), Bruno Telles, com a perícia integrando a estrutura da Polícia Civil nem sempre há investimentos suficientes. “Precisamos de profissionais com perfil científico, equipamentos e treinamentos diferentes. A perícia trabalha com a prova material, advinda dos exames em vestígios, enquanto a polícia precisa da prova circunstancial, de depoimentos de vítimas, testemunhas e suspeitos. Com uma estrutura vinculada, há disputa interna por recursos. Notamos que quase sempre a perícia é preterida em relação à área operacional e isso inviabiliza que o perito tenha acesso à tecnologia necessária para responder todas as dúvidas em relação a um crime”, explica.

A demora no início do trabalho dos peritos é outro ponto negativo da vinculação, no entender do presidente da Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais (APCF), André Morisson. “As requisições periciais não podem ser encaminhadas diretamente à unidade de perícia criminal, sem passar por instâncias administrativas das polícias Federal ou Civil, e isso pode levar dias ou até meses. A carência de independência do gestor da criminalística para assinar acordos de cooperação técnico-científica com universidades ou organismos congêneres; a interferência na formação do perito criminal e na lotação dos peritos criminais federais são  outros entraves à evolução deste serviço”, diz.

Os quadros reduzidos geram grandes filas de espera nos laboratórios periciais e defasagem entre a demanda e o volume de trabalho realizado, explicam os presidentes da ABC e da APCF. Tal situação gera pressão para que os laudos sejam elaborados em curto espaço de tempo, o que faz com que, nestas circunstâncias, percam qualidade e ponham em risco a própria validade de seu resultado, ressaltam.

No Brasil, há 17 estados em que a perícia é independente. Nesses, dizem os especialistas, a aplicação dos recursos é mais eficiente e os procedimentos internos, menos burocráticos, com padronização dos órgãos e adoção de protocolos internacionais mais modernos. “Essa agilidade se reflete no andamento dos atendimentos de perícias de locais de crimes e na expedição de laudos para a autoridade requerente. É possível, também, estabelecer convênios com universidades e fundações de pesquisa, o que impulsiona a aquisição de tecnologia e treinamento sem a necessidade de aumento de investimento. Além de permitir a certificação dos laboratórios, atestando maior qualidade aos procedimentos”, analisa Bruno Telles.

Para André Morisson, a criação de estruturas periciais sem nenhuma ingerência sobre a consecução dos exames é a principal medida para a melhoria na qualidade do serviço. “Com instituições fortes, dotadas de profissionais qualificados e devidamente aparelhadas, as investigações científicas serão realizadas de forma mais célere e eficiente, atendendo de forma melhor o agente investigador, a justiça criminal e a sociedade que deseja ver o esclarecimento de todos os crimes. Além disso, fortalece a garantia dos direitos humanos dos brasileiros uma perícia independente, objetiva e imparcial”, destaca o presidente da APCF.

Para o sociólogo Ignácio Cano, a desvinculação é uma medida positiva porque tratará a perícia com o caráter técnico e científico que ela necessita ter. “Nos estados em que essa área já é autônoma, os salários e os investimentos destinados aumentaram. Isto é ótimo do ponto de vista de suporte para elucidação dos crimes. Não ganhamos nada com uma perícia sendo feita por um policial. Nos casos de violação de direitos humanos, sempre há desconfiança sobre a isenção dos peritos. Não estou aqui afirmando que existe alguma parcialidade da parte deles, mas desvinculando completamente esta atividade da policial, afastamos também qualquer possibilidade de suspeitas”, afirmou.

De acordo com Cano, além da legislação, é necessária, também, uma mudança de mentalidade: “O Brasil tem tradição de dar muito peso às provas testemunhais. Conseguir transferir esta importância às provas técnicas traria uma sensação de certeza muito maior nos esclarecimentos dos crimes”. 
 
Desafio
O presidente da Comissão de Criminologia da OAB/RJ espera mudanças, caso a proposta seja aprovada, mas não acredita num impacto significativo e na solução do problema em médio prazo. “É um processo. Essa, inclusive, é a fase mais fácil: a de mudança legislativa. O desafio é mudar práticas. Trata-se de um problema de política de Estado”, diz Ivan Vieira.

“Boa parte dos autos de resistência pode ser esclarecida em uma mesa de necropsia. Mas na esmagadora maioria dos casos, antes de chegar ao Instituto Médico Legal, o corpo da vítima já passou por um hospital da rede pública, ligado à Secretaria de Saúde, pois os locais de execução são desfeitos sob o pretexto de socorrer a vítima. Não há relação de subordinação entre o diretor do hospital público e o delegado, chefe da Polícia Civil ou secretário de Segurança. Mas ele, médico, diretor do hospital, fica exposto a uma série de interferências em seu trabalho. Desde o recebimento, em sua emergência, de um corpo sem vida, até mesmo solicitações informais para negligenciar atendimento em supostos bandidos, um processo conhecido como criminalização do paciente”, descreve.

Para Vieira, tão importante quanto a discussão da desvinculação entre a perícia e a polícia é o debate sobre a conveniência de seu afastamento físico das delegacias e a aproximação da rede pública de saúde. “Não se deve esperar o fim do extermínio majoritário de jovens, pobres e negros, através de um arranjo de poderes. O principal conflito de interesses pode não estar restrito a peritos e delegados, mas incluir o próprio Estado e sua lógica política”.

Vieira destaca que muito se fala sobre os resultados das investigações criminais, mas dificilmente discute-se a pertinência dos critérios e bases metodológicas utilizados: “A ciência nos promete um nível de segurança alto, mas, se desrespeitado o método, não passa de discurso vazio. Lembro isso para dizer que, antes de ser policial, o perito é um cientista. Assim, a meu ver, o principal problema da vinculação entre polícia e perícia é a criação de uma identidade própria, um ethos, uma cultura que funde esses dois personagens e faz parecê-los indissociáveis”. A PEC 325/2009 caracteriza a perícia criminal como instituição permanente essencial à Justiça, frisa. 

Sobre ela muito já se debateu, observa Vieira, e à exceção de parte da classe de delegados de polícia, já impera certo consenso. Por outro lado, com menos destaque, segue a PEC 499/2010, que caracteriza a perícia criminal como órgão de segurança pública, equiparada à Polícia Civil. “Esse segundo tema, ou seja, se o perito deve ser policial para exercer a sua função, aparentemente não contou com a discussão pública que sua seriedade demanda. Mudar uma lei é relativamente fácil. Alterações administrativas, também. Mas as mudanças culturais são mais difíceis de serem efetivadas. E não ocorrem sem que haja uma alteração significativa da forma como esses profissionais se percebem e de como encaram a sua relação com a sociedade. Não seria próprio limitar esse debate a uma necessidade de adequação de cargos e salários do funcionalismo público. Não há soluções mágicas para assuntos complexos”, pondera.

A PEC 499/2010, de autoria do deputado federal Paulo Pimenta (PT/RS), foi apensada à PEC 325/2009 em 2013. O que significa que as duas serão votadas de forma única, mesmo não havendo debates acerca da validade da inclusão da perícia oficial criminal como um órgão da segurança pública, teor da proposta de 2010.

Relator da proposta 325/2009 na Câmara, o deputado federal Alessandro Molon (Rede/RJ) diz que ainda não há previsão para a votação em plenário. Para ele, garantir a autonomia da perícia significa avançar na direção da elucidação de crimes contra os direitos humanos e na produção isenta da prova necessária para condenar culpados e absolver inocentes.

Procurada pela reportagem da TRIBUNA, a Polícia Civil preferiu não se manifestar sobre a proposta de autonomia dos peritos.

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