14/10/2015 - 17:06

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A PEC dos Cartórios e o esvaziamento da Constituição

14/10/2015 - 17:06

A PEC dos Cartórios e o esvaziamento da Constituição

MARCUS VINICIUS FURTADO COÊLHO*

A função judicial encontra seu fundamento em uma dualidade historicamente definida: decidir controvérsias e proteger interesses. O Direito Notarial e Registral, por sua vez, se justifica a partir desse escopo bivalente, ao resguardar interesses e auxiliar, eventualmente, na decisão de controvérsias.

Os serviços notariais e de registro, por determinação constitucional, são exercidos em caráter privado, por delegação do poder público, segundo os ditames do artigo 236 da Constituição da República. Essa é uma delegação direta do Poder Judiciário, incapaz de acumular tantas funções em sua única estrutura, pois já é responsável por exercer a jurisdição em todo o território nacional.

Os cartórios, portanto, zelam por interesses básicos do cidadão. São uma instância de formalização de atos de criação, preservação, modificação e extinção de direitos e obrigações dos indivíduos, exercendo poder de polícia tipicamente estatal e colocando os usuários dos serviços em condição de submissão às suas determinações.

Ademais, os emolumentos cartorários têm natureza tributária de taxa, conforme decidido pelo Supremo Tribunal Federal, sanando qualquer dúvida sobre o caráter público dos cartórios extrajudiciais.
A publicidade, a autenticidade, a segurança e a eficácia dos atos jurídicos, princípios norteadores da atuação das serventias, só serão assegurados em estabelecimentos que obedeçam ao regime estrito de direito público constitucionalmente atribuído aos cartórios, inclusive, e precipuamente, com a exigência de concurso público para o ingresso na atividade notarial e de registro, conforme postulado do artigo 236, § 3º, da Constituição.

A PEC 471/2005, ao garantir a efetivação no cargo de titular de cartório a todos que estiverem na função, independentemente de aprovação em concurso público, é uma ofensa aos preceitos consagrados pelo poder constituinte originário.

Em 2012, atento ao postulado democrático com que deve estar comprometido, o plenário da Câmara dos Deputados já rejeitou proposta de efetivação dos notários e registradores. Cabe ressaltar que a proposta anteriormente levada a votação, igualmente inconstitucional e acertadamente rejeitada, estabelecia um requisito de cinco anos de atividade para a efetivação no cargo, enquanto o projeto recentemente aprovado em primeiro turno sequer determina um requisito temporal. Observe-se que, não obstante a mudança de entendimento da Câmara, nada se alterou, nesse curto espaço de tempo, para que a PEC dos Cartórios, atentando de forma ainda mais grave contra o princípio republicano, passe a ser interesse do povo brasileiro.

A PEC 471/2005 não é politicamente, economicamente ou juridicamente passível de incorporação ao ordenamento brasileiro. Politicamente, porque o interesse coletivo não compactua com critérios subjetivos e parciais de escolha de funcionários que exerçam função pública. Economicamente, porque o erário nacional não possui condições de arcar com a efetivação de quase cinco mil cidadãos que exercem, precariamente, a função de titulares de cartório, especialmente no momento de crise vivenciado pela economia.
 
Juridicamente, porque a Constituição Federal (art. 236, §3º), cujo postulado foi reforçado pela Lei 8.935/1994 (artigo 14, I), estabelece como requisito para a delegação da atividade notarial e de registro a habilitação prévia em concurso público de provas e títulos.

Nunca houve lacuna legislativa ou sequer interesse público na aprovação dessa proposta de emenda. A PEC 471 claramente atropela os postulados de legalidade, moralidade e impessoalidade, violando os princípios entalhados no artigo 37 da Carta.

Registre-se que a atividade cartorial movimenta mais de R$ 4 bilhões por ano. Não podemos delegar serviço público de tamanha relevância a indivíduos que assumiram suas funções em razão de círculos de amizade e parentesco, ou ainda por herança familiar, incorporando em nossa práxis social um regime típico das capitanias hereditárias, vigente nos auspícios do regime monárquico de D. João III, quando, para beneficiar os amigos dos reis, todos os favores eram permitidos, privilegiando-se os interesses da Coroa em detrimento da vontade do povo. Uma prática profundamente hostil ao regime republicano.

Não se questiona a capacidade daqueles que atualmente são titulares dos cargos, mas apenas se exige que comprovem, por meio de concurso público, a sua competência em gerir serventias extrajudiciais, em pé de igualdade com qualquer cidadão que esteja interessado em exercer tais funções.

A aprovação da PEC efetivaria nos cargos, sem concurso público, cerca de 4.500 pessoas que estão a exercer precariamente a titularidade dos cartórios. Essa informação não se coaduna com a constatação da Corregedoria Nacional de Justiça de que, entre 2006 e 2008, cerca de oito mil aprovados em concursos públicos cartorários ainda não tinham sido empossados.

Ademais, o Supremo Tribunal Federal, em situações semelhantes, já julgou inconstitucional dispositivo que efetivava no cargo os titulares temporários de cartórios. Foi o que ocorreu na Ação Direta de Inconstitucionalidade 363, de relatoria do ministro Sydney Sanches, quando a corte rechaçou o artigo 14 do ADCT da Constituição do Estado de Santa Catarina, que previa a efetivação, no cargo de titular, dos substitutos das serventias que exerciam suas funções em caráter precário.

O STF apenas confirmou uma verdade por todos conhecida: o artigo 236, § 3º, da CF, é norma autoaplicável, e a exigência de concurso público para o exercício das funções notariais produz eficácia desde a promulgação da Magna Carta Constitucional, em 5 de outubro de 1988.

A PEC dos Cartórios, considerando o cenário político, jurídico e econômico brasileiro, é um grave retrocesso. E, se ratificada em definitivo, a proposta certamente terá sua legitimidade questionada no âmbito do Supremo Tribunal Federal, pois desvirtua o interesse público, contraria a Constituição da República e viola a essência do Estado democrático de Direito.
 
*Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil

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