03/08/2018 - 21:00

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Garzón é homenageado pela OAB/RJ por sua atuação em defesa dos direitos humanos

03/08/2018 - 21:00

Garzón é homenageado pela OAB/RJ por sua atuação em defesa dos direitos humanos

Garzón é homenageado pela OAB/RJ por sua atuação em defesa dos direitos humanos


O auditório Evandro Lins e Silva foi pequeno para o ato de homenagem e solidariedade ao juiz espanhol Baltasar Garzón, realizado no dia 13 de outubro por iniciativa da OAB/RJ. Garzón, responsável por levar a julgamento ditadores como o chileno Augusto Pinochet e chefes militares da repressão argentina, foi saudado pelo presidente Wadih Damous pelo "destemor com que vem enfrentando os riscos e as perseguições no combate aos crimes contra os direitos humanos". Com 22 anos de carreira, o magistrado está suspenso de suas funções na Audiência Nacional e será julgado em seu país, acusado de prevaricação por organizações da extrema direita, por abrir investigação dos assassinatos e desaparecimentos ocorridos na ditadura de Francisco Franco.

"A presença do juiz Garzón reforça nossa Campanha pela Memória e pela Verdade no Brasil. A Espanha sofre o mesmo drama, pelo desconhecimento do paradeiro dos desaparecidos políticos", Garzón é homenageado pela OAB/RJ por sua atuação em
defesa dos direitos humanos disse Wadih. "Contamos com a participação de artistas que gratuitamente gravaram depoimentos para a campanha. Isso sensibilizou boa parte da opinião pública. A sociedade se anestesiou após a conquista da democracia; há temas ainda não superados e a questão dos que desapareceram é um deles", lembrou, enfatizando a importância do apoio do ministro da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, Paulo Vannuchi, ao movimento.

O presidente da Seccional disse ao juiz que sua atividade jurisdicional tem sido um exemplo.  "Foi um dia de júbilo quando tivemos a notícia de que o ditador Pinochet havia sido preso na Inglaterra por determinação sua. Também calaram fundo aqui suas decisões atinentes aos cidadãos espanhóis torturados e mortos na Argentina. Por isso, não tenha dúvidas de que nesta casa o senhor conta com a nossa solidariedade, contra todas as perseguições de que tem sido vítima", afirmou Wadih, antes de entregar a Garzón placa de homenagem com a inscrição: "Quem fecha os olhos para o passado fica cego para o futuro. Por sua corajosa colaboração em defesa do direito e da verdade".

O ministro Vannuchi, depois de elogiar a iniciativa da Seccional, "inspiradora, de vanguarda", entre as entidades de defesa dos direitos humanos, destacou que a visita de Garzón é de "encorajamento e de inspiração para a nossa luta pela instalação da Comissão da Verdade, do Plano Nacional de Direitos Humanos".  O governador eleito do Rio Grande do Sul e ex-ministro da Justiça, Tarso Genro, revelou estar "estarrecido" com a situação vivida pelo magistrado, e defendeu que "para se consolidar a democracia substantiva, nos países onde a transição democrática não se completou, é preciso conhecer o passado e exigir responsabilidades."

Em seu agradecimento, Garzón lembrou que memória, verdade e justiça são conceitos básicos do Direito internacional e dos direitos humanos.  "São as três palavras que, faz muitos anos, as vítimas dos crimes de Estado, dos grandes crimes contra a humanidade, vêm reclamando sistematicamente, em cada um dos países onde se têm vivido episódios de repressão similares". E em todos eles, observou o magistrado, "o rechaço oficial para essas três demandas é idêntico. A reação é dizer que é melhor esquecer, virar a página, que não há porque revolver o passado, isto seria ruim para o país que já se reconciliou".

A reconciliação, nesses casos, não é verdadeira, insistiu Garzón. Ele afirmou nunca ter visto "um caso em que vítimas de repressão, como a chilena, a argentina, a guatemalteca, a tibetana, entre outras, hajam pedido algo diferente do que a eles não aplicaram: o Estado de Direito, o julgamento justo ou uma reparação". "Portanto, memória, verdade e justiça são três conceitos que têm que andar, indissoluvelmente, unidos", sublinhou.

O juiz relatou como passou de investigador a investigado. "Quando submeti os casos de Pinochet, dos membros da juntas militares argentinas, o que fiz foi não aceitar as leis de autoanistia, porque estavam afetadas pelo Direito internacional". Na Espanha, observou, ele interpretou a lei no mesmo sentido, de que os crimes da época do franquismo eram crimes permanentes. "Isso está assentado de forma sistemática por cada um dos tribunais penais internacionais, pela Corte Interamericana e pela Corte Europeia de Direitos Humanos", explicou.

Participaram também do ato os presidentes da Comissão de Anistia, Paulo Abrão; da Associação Brasileira de Imprensa, Maurício Azêdo, da OAB/Pará, Jarbas Vasconcelos; o vice-presidente da Seccional, Sérgio Fisher; os conselheiros federais Cláudio Pereira e Marcus Vinícius Cordeiro; presidentes de subseções, parlamentares, representantes de entidades de defesa dos direitos humanos e líderes estudantis.

Leia, abaixo, a entrevista exclusiva concecida por Garzón à TRIBUNA.


A primeira pergunta se relaciona com a campanha da OAB/RJ pela abertura dos arquivos da ditadura, e que de alguma forma tem a ver com sua atuação em casos como os de Pinochet e Franco. Alguns dizem que não vale a pena lembrar desses fatos, que é mais importante olhar para o futuro. O que o senhor pensa sobre a questão?

Garzón - Ouvimos sempre a mesma história, a mesma argumentação, e que vem sempre da parte daqueles que participaram desses processos.  Qualquer tipo de reconciliação exige uma série de elementos prévios, de componentes imprescindíveis.  E o primeiro deles é conhecimento sobre o que passou. Não se pode falar em reconciliação se não há um conhecimento sobre quem tem que se reconciliar. No caso do Brasil, por exemplo, são cerca de 300 desaparecidos, e não sabemos como sumiram, ou sabemos em parte. Tampouco sabemos quem participou desses desaparecimentos, como se deram, por que, e onde estão os corpos.


Qual a sua opinião sobre a experiência da África do Sul, onde Mandela promoveu anistia, mas sob a condição da revelação dos crimes?

Garzón - Para se aplicar o sistema utilizado na África do Sul, é preciso primeiro se ter um Mandela.  E não há em todo canto. O que aconteceu lá, o trabalho da comissão de reconciliação, não seria possível sem Mandela. Os que haviam participado da apartheid reconheceram seus delitos. Esse sistema nasceu do consenso entre todo um povo e com base na pessoa carismática que é Mandela. Conciliação exige acordo prévio da sociedade, e a história não é igual em todos os países. Entendo que há algumas premissas: primeiro, é preciso conhecer os crimes, assumir culpas e que exista esse consenso que houve no caso sul-africano.


O senhor, hoje, trabalha no Tribunal Penal Internacional. Acredita que pode haver algum tipo de conflito entre as decisões da corte e a soberania dos países?

Garzón - Não é possível, porque o Tribunal Penal Internacional, em seu estatuto, de 1998, estabelece, como condição para se tornar membro, que o país se submeta à corte. Isso foi ratificado por todos os estados que o integram. O tribunal, na verdade, atua de forma complementar. Quando em um país, nos limites demarcados no estatuto, não tem efeito o que devia ocorrer por intermédio de seu poder judicial, ou quando se dificulta essa ação, o tribunal atua. Há que se ter claro que a corte não entra em conflito, complementa.


Ainda assim há estados que consideram ter sua soberania violada...

Garzón - Os que fazem parte da corte, não.  Nos demais, o que sucede é que desconhecem a jurisdição do tribunal. Bom exemplo são os EUA, um dos países mais beligerantes do mundo, e que é contra a corte internacional. Em 2002, lá foi editada uma norma que proibia expressamente, e sob sanções, qualquer cooperação com o Tribunal Penal Internacional. Alguns senadores chegaram a afirmar que, se fosse decidido algo sobre ações norteamericanas, o país poderia usar o direito da força contra a corte. Foi na época mais dura da administração de George Bush. Assim como os EUA, a China também não reconhece o tribunal. Mas mesmo os países que não reconhecem nossa jurisdição podem ser condenados, se seus cidadãos delinquem em um Estado que reconhece a competência.


No Brasil houve uma anistia, que a ditadura chamou de recíproca, porque se aplicava aos autores de crimes políticos, mas também aos representantes do Estado. Ainda este ano, o país será julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Uma decisão contrária ao Brasil pode levar ao questionamento da Lei de Anistia?

Garzón – A Lei de Anistia não pode se estender a delitos que se enquadram como crimes contra a humanidade. Esta é a doutrina consolidada no Direito Internacional sobre direitos humanos e nos convênios multilaterais. Não podem ter qualificação de delito político o assassinato e o desaparecimento por razões ideológicas. Esse crimes integram-se ao contexto de crimes contra a humanidade, favorecidos pela repressão política. Se a supre-ma corte brasileira ditar resolução no sentido contrário, dando validade à Lei de Anistia, não terá amparo nas normas internacionais e nas sentenças dos tribunais internacionais, como a cortes Interamericana e Europeia de Direitos Humanos.


Isso poderia criar um impasse jurídico?

Garzón - O Brasil ratificou o estatuto da Corte Interamericana e seria muito grave se não aceitasse a sentença. Embora haja precedentes na América Latina, como foi o caso de [Alberto] Fujimori.  Fujimori não cumpriu a sentença, mas o Peru acabou tendo que cumpri-la após a redemocratização.


Como o senhor avalia a evolução dos direitos humanos no mundo nas últimas décadas?

Garzón - É difícil dar uma opinião geral, há que se diferenciar países, pessoas... Mesmo em termos de proteção normativa, por leis, convênios, resoluções de tribunais sobre direitos fundamentais de primeira geração, há violações sistemáticas em várias partes. Como dizer, por exemplo, que melhorou no Sudão, no Zimbábue, onde há ditaduras, ou mesmo na China, onde o anúncio oficial do Prêmio Nobel para um opositor do governo vira ameaça de mais represália? É difícil comparar a situação na Europa com a da África, a da América Latina com a da Ásia. Mas, evidentemente, há avanços; um movimento da sociedade civil, através de organizações de direitos humanos que levam à frente essa luta, com influência cada vez maior sobre governos democráticos e denúncia sobre aqueles que não o são. Há mecanismos de proteção judicial também importantes, como a Corte Interamericana, a Corte Europeia etc. E, também,uma linha de prevenção da violação dos direitos humanos por intermédio da educação básica. Em suma, embora os direitos humanos ainda não estejam definitivamente assentados, caminhamos na luta contra a pobreza, em favor da diversidade, contra a discriminação...  E o futuro, creio, está no que seria a proteção de direitos humanos de terceira geração: o meio ambiente, os ecossistemas.


O senhor atuou contra o narcotráfico, a lavagem de dinheiro, o terrorismo. Chegou a correr risco pessoal em razão desse trabalho?

Garzón - Faço parte, na Espanha, da Audiência Nacional, cuja competência é tratar de narcotráfico, lavagem de dinheiro, crime econômico organizado, terrorismo e crimes contra a humanidade. Um campo suficientemente amplo para que possam aparecer problemas. Se surgem, minha obrigação é cumprir meu trabalho, à margem de ameaças. Se não for assim, tenho que deixá-lo. Os estados, hoje, contam com mecanismos de proteção mais ou menos efetivos.  O caso do juiz [Giovanni] Falcone [assassinado pela máfia, em 1992, durante uma investigação], na Itália, foi paradigmático. Até aquele momento, o Estado fracassava na luta contra o crime organizado. A partir dali, os instrumentos de proteção se sofisticaram. Qualquer grupo criminoso organizado vai tentar atacar aqueles que o combatem. Mas erram ao pensam que é uma luta individual. Outras pessoas virão e levarão o trabalho à frente.


Como o senhor se sente sendo processado pela Justiça espanhola por prevaricação ao investigar crimes do regime franquista?

Garzón - Por razões que me escapam, está paralisada a tramitação do processo. Quero que me julguem. Tenho direito a julgamento rápido, com todas as garantias. Se estão dispostos a provar minha culpa, estou disposto a provar minha inocência.  Respeito ao máximo as instituições judiciais, mas não compartilho do critério aplicado no caso que me afeta. Creem que a acusação de prevaricação está de forma compatível com interpretação da lei, mas há mecanismos no Estado de Direito para discordar. Não pode haver apenas a imposição de um critério vertical de interpretação jurídica, senão a independência judicial desaparece. Quanto ao conteúdo, não entendo como é possível haver uma causa aberta por eu investigar delitos que são crimes contra a humanidade quando há, segundo os primeiros dados, 150 mil pessoas desaparecidas.  Entre 1937 e 1951, mais de 30 mil crianças foram dadas por mecanismos de adoção. Pessoas que estão aí, vivendo. São delitos permanentes, porque o desaparecimento continua. Está havendo uma interpretação da lei local, no contexto internacional que a afeta. E eu me apoio na jurisprudência e nos convênios internacionais.


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