17/11/2016 - 15:01

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‘Partidos políticos se fortal ecem no parlamentarismo’ Ada Pellegrini Grinover – jurista e processualista

17/11/2016 - 15:01

‘Partidos políticos se fortal ecem no parlamentarismo’ Ada Pellegrini Grinover – jurista e processualista

Referência na área jurídica, autora de dezenas de livros, trabalhos acadêmicos e artigos, a processualista Ada Pellegrini Grinover se mantém como defensora do sistema parlamentarista de governo e diz que a realidade do regime presidencialista, a não ser nos Estados Unidos, país que o criou, vem sendo “particularmente negativa, principalmente no contexto latino-americano, pois tem gerado ditaduras e semidemocracias, com constantes rupturas institucionais em quase todos eles”. Aos 83 anos, a jurista, professora titular sênior da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, diz que a ideia das chamadas cláusulas pétreas da Constituição não a convence. “Nada pode ser ‘pétreo’ no Direito, que está em constante evolução”.
 
PATRÍCIA NOLASCO

A senhora defende o regime parlamentarista, e no Brasil de 1993 a maioria dos eleitores reafirmou, em plebiscito, a preferência pelo presidencialismo, como já o fizera em 1963. Na atual crise por que passa o país, seria o caso de voltar a submeter o tema à população?
Ada Pellegrini Grinover – Antes de um novo plebiscito, é preciso esclarecer muito bem e em profundidade do que se trata. No presidencialismo, as funções de chefe de Estado e chefe de governo são reunidas na mesma pessoa, enquanto no parlamentarismo elas são atribuídas, respectivamente, ao presidente da República e ao primeiro-ministro. Os modelos parlamentaristas são diversos, com maior ou menor atuação do chefe de Estado. Alguns até exercem funções de governo, como nos sistemas francês e português, por exemplo, mas em todos os regimes parlamentaristas o governo pode ser derrubado pelo Parlamento por intermédio do voto de desconfiança. No presidencialismo, sua derrubada, sem ruptura institucional, só se dá através do processo traumático do impeachment. Não há “voto de desconfiança” capaz de afastá-lo, mesmo que tenha deixado de ter o apoio do povo que o elegeu. E a solução do referendo revogatório divide igualmente a sociedade e é igualmente traumático.

O grande diferencial entre as duas formas de governo, a meu ver, está na responsabilidade. No parlamentarismo, o mau desempenho é motivo de afastamento do primeiro-ministro, eleito sem prazo certo para governar. A própria separação entre chefe de Estado e chefe de governo cria uma espécie de poder ultrapartidário capaz de intervir nas crises, seja para aprovar novos governos escolhidos pelo Parlamento, seja para dissolver o Parlamento quando este se mostre também inadequado.

Eleito um governo, este escolherá entre os servidores públicos que estão no topo da carreira os que mais se afinam com o planejamento e a maneira de ser do novo governo. Nas quedas de gabinete, os servidores administram o país até a escolha de um novo governo, sem traumas políticos.

Por outro lado, a separação da chefia de Governo da chefia de Estado cria outros atributos próprios do sistema parlamentar, como o da burocracia profissionalizada.

Também os partidos políticos se fortalecem no parlamentarismo, enquanto no presidencialismo se esfacelam, à luz da figura do presidente. Quando se diz que o Brasil não pode ter o parlamentarismo porque não tem partidos políticos, endosso a resposta de Ives Gandra Martins, no sentido de que o Brasil não tem partidos políticos porque não tem parlamentarismo. Cláusula de barreira é fundamental para evitar legendas de aluguel, algo que, no país, é um dos maiores males do presidencialismo, chamado até de presidencialismo de coalizão. Não sem razão há, aqui, 35 partidos políticos, 28 com representação no Congresso Nacional, enquanto a maioria dos países parlamentaristas têm em torno de cinco, com representação nacional, raramente ultrapassando dez.

 A realidade do presidencialismo – salvo a experiência do país que o criou (EUA) – vem sendo particularmente negativa, principalmente no contexto latino-americano, pois tem gerado ditaduras e semidemocracias, com constantes rupturas institucionais em quase todos eles. Basta dizer que, quando Lijphart (citado por Ives Gandra Martins) escreveu o clássico livro Democracies, em 1984, encontrou, sem violações democráticas, 19 países parlamentaristas e um presidencialista.

O Brasil, que viveu 42 anos no sistema parlamentar monárquico, desde 1889 jamais teve um período tão longo de estabilidade. De 1889 a 1930, foram 41 anos interrompidos pela ditadura Vargas (1930-1945). O período de 1946 a 1964 (18 anos) terminou com a revolução de 31 de março. A redemocratização de 1985 deu início a um período de 31 anos, com dois impeachments presidenciais e alta instabilidade. É certo que, ao longo do sistema parlamentar monárquico brasileiro, cada governo durou em média um ano e meio. Mas a troca frequente de gabinetes não interferiu na condução política do país. Finalmente, como nenhum governo governa sem a confiança do povo, o parlamentarismo encontrou os meios para, sem traumas, afastar o mau governo e substituí-lo por governos que façam melhor.

A previsão de um referendo, em situação de desaprovação do governo, é viável no sistema atual?
Ada – Não creio que o referendo revogatório possa ser aplicado no presidencialismo previsto na Carta. Mas poderia ser criado por emenda constitucional. No entanto, como visto acima, também é traumático, divide a sociedade e conturba a condução do país.

A execução da pena antes do trânsito em julgado foi defendida pela senhora em diversas ocasiões, em contraposição ao entendimento de vários juristas. Por que razões?
Ada – A Constituição e as leis devem ser interpretadas em conformidade com a realidade social do momento, e não de acordo com a interpretação que lhes foi dada em face de valores de outrora (interpretação evolutiva).
Em lugar nenhum a Carta afirma que a presunção de inocência significa a impossibilidade de prisão antes do trânsito em julgado, tanto assim que o próprio texto constitucional prevê a prisão. E não é verdade que a prisão preventiva só tem natureza cautelar, pois quando fundada na garantia de ordem pública (clamor público, periculosidade) é verdadeira antecipação da pena (interpretação sistemática). Na realidade atual, a multiplicidade de recursos, o tempo infinitamente longo para seu julgamento, as procrastinações dos advogados favorecem os ricos e não os pobres, e levam à impunidade, dada a possível prescrição, frustrando a segurança jurídica e a efetividade das decisões judiciárias. Trata-se de aplicar o princípio da proporcionalidade. E a presunção de inocência, mesmo com a possibilidade de execução provisória da pena, permanece incólume, pois se mantêm o tratamento de inocência (com o recolhimento reservado aos presos provisórios) e o princípio in dubio pro-reo. Seja como for, para casos excepcionais, resta ainda ao condenado pedir a aplicação do efeito suspensivo aos recursos especial e extraordinário, bem como manejar o habeas corpus.

A Constituição garantista de 1988 deveria ser revista em uma assembleia constituinte? Cláusulas pétreas não são necessárias na realidade atual?
Ada – A existência de “cláusulas pétreas” nunca me convenceu. Trata-se apenas de princípios e regras que não podem ser modificadas pelo Poder Constituinte derivado (emendas constitucionais). Nada pode ser “pétreo” no Direito, que está em constante evolução. E uma nova Constituição pode tudo, pois rompe com o regime constitucional anterior.

A jurisprudência, como a senhora entende, tem função criadora, e não apenas de interpretação?
Ada –
Sem dúvida. O civil law aproxima-se cada vez mais do common law e vice-versa. A súmula vinculante, as decisões nas ações de controle direto da constitucionalidade e agora a ênfase que o novo CPC dá à jurisprudência e aos chamados “precedentes” mostram claramente que a jurisprudência é fonte de Direito.

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