14/09/2015 - 11:48

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OAB/RJ reformará e fará manutenção de parlatórios do estado

14/09/2015 - 11:48

OAB/RJ reformará e fará manutenção de parlatórios do estado

 
 
Salas para contato entre advogados e clientes nas unidades prisionais se encontram hoje em péssimas condições, violando as prerrogativas profissionais e a dignidade dos presos. A TRIBUNA visitou duas delas

 
CÁSSIA BITTAR
Projeto de mais de cinco anos, a oferta da OAB/RJ para reforma e manutenção dos parlatórios, salas em que os advogados atendem seus clientes em unidades prisionais, foi enfim aceito pela Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (Seap) do Rio de Janeiro. O convênio entre as instituições foi firmado no dia 20 de agosto, durante sessão do Conselho Pleno, oficializando acordo informal, feito em junho, entre o presidente da Seccional, Felipe Santa Cruz, e o secretário de Administração Penitenciária, coronel Erir Ribeiro Costa Filho.

Na ocasião, o coronel, recém-chegado ao comando da Seap, foi à Ordem para saber mais sobre a proposta, que conheceu ao assumir a secretaria. O documento, de 2012, já havia sido apresentado à antiga administração do órgão pela OAB/RJ, por meio de sua Comissão de Defesa, Assistência e Prerrogativas (Cdap), com o apoio da diretoria e membros do Conselho Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro, na tentativa de realizar as reformas nas salas, em cenário em que as condições desses espaços eram uma das maiores reclamações dos advogados criminalistas à entidade.

De acordo com Felipe, o principal objetivo da iniciativa da Ordem é padronizar os espaços e garantir o sigilo profissional dos advogados, previsto no Estatuto da Advocacia: “Damos aqui um passo muito importante na construção do diálogo com a nova administração da Seap e no respeito à advocacia, que é também o respeito à cidadania e aos direitos dos presos. Esses colegas estão ali contribuindo para a constituição da Justiça, em um sistema com cerca de 18 mil presos provisórios que, afinal, nem têm ainda suas condenações definitivas”.

O contrato prevê a construção ou reforma de salas destinadas ao contato privado entre os advogados e seus clientes presos, com local para sentar, bancada, boa iluminação, aparelhos de ventilação ou climatizadores e isolamento acústico interno e externo, sendo o contato auditivo realizado por equipamentos eletrônicos cuja manutenção será feita pela própria Seccional. 

O acordo também estabelece que cada unidade disponha de uma sala de defesa, além do espaço de entrevista, no qual advogados poderão utilizar mesas, cadeiras, computador e impressora, com acesso ao banco de dados do Tribunal de Justiça, do Tribunal Regional Federal e das cortes superiores, para que possam redigir e imprimir documentos a serem entregues à direção da unidade ou ao Poder Judiciário. Essa sala poderá ser compartilhada com a Defensoria Pública ou com outros órgãos que desenvolvam atividade de defesa.

Toda a mão de obra, ressalta Felipe, será feita pelos internos, seguindo acordo com a Fundação Santa Cabrini, que promove o trabalho remunerado para os apenados do sistema penitenciário, dando também o direito à remição – a cada três dias trabalhados, a pena é reduzida em um dia. “Os detalhes ainda precisarão ser acordados em futuras reuniões nossas com a Seap”, explica.

“O que acontece hoje é que alguns estabelecimentos nem parlatórios têm. Os advogados encontram os clientes em salas improvisadas. Alguns têm locais reservados à Defensoria separadamente, em melhores condições”, denuncia a integrante da Comissão de Segurança Pública da Seccional Maíra Fernandes, que durante todo o seu mandato à frente do Conselho Penitenciário do Estado dialogou com a antiga administração da Seap na tentativa de que recebesse o projeto da Ordem. Em gesto simbólico, ela representou a OAB/RJ na assinatura do convênio, juntamente com a ex-presidente da Cdap Fernanda Tórtima.

Maíra explica que essa é a vitória de um projeto de muitos: a primeira tentativa de acordo havia sido feita em 2011, após um grupo de cerca de 20 advogados membros da Cdap realizar uma vistoria completa de todas as salas do estado e apresentar relatórios sobre o péssimo estado de grande parte delas. A ação foi concebida na gestão de Marco Slerca e se tornou uma das linhas de frente do mandato de Fernanda Tórtima na comissão. “Reforçamos a importância do acordo ao atual secretário quando ele assumiu, pois os colegas continuam reclamando sobre essas salas”, explica o atual presidente do núcleo, João Pedro Pádua.
 
Agradecimento
“Quando fiquei sabendo do projeto, ninguém na Seap conseguia me dizer por que ainda estava ali. Li, analisei, conversei com representantes da OAB e achei mais do que justo. A Seap só tem a agradecer, na verdade, pois hoje diversas instituições nos inspecionam, mas ajuda, que é o de que precisamos, é pouco oferecida. A secretaria não teria condições de fazer essas obras agora, por isso é mais do que bem-vindo o convênio”, disse o coronel Erir na assinatura, ressaltando que o foco de sua gestão seria a humanização do sistema penitenciário.

A péssima estrutura de comunicação dos presos com seus advogados é denunciada no relatório da Cdap que, segundo Pádua, apontou a sala do presídio Ary Franco, em Água Santa, como uma das piores nesse sentido: “Na época da coleta dos dados havia lá três cabines, uma ao lado da outra, sem isolamento acústico. Todos os gabinetes se comunicavam, impedindo uma conversa pessoal e reservada”. O Ary Franco é um dos presídios isolados do Estado que recebem, em sua maioria, presos não sentenciados.
 
Precariedade
Vice-presidente da Cdap na época das vistorias, em 2010, e presente às inspeções, Renato Tonini reforça a precariedade que encontraram no local: “Os três cubículos não tinham banco ou cadeira, o advogado tinha que ficar em pé o tempo todo. Dois deles estavam com os interfones quebrados, então era preciso falar pelas frestas dos vidros, sem conseguir ouvir direito o cliente. Também não havia nenhum tipo de tratamento acústico: tudo que acontecia ao redor interferia, como um portão batendo, gente gritando... Até mesmo o ventilador, que deveria ajudar, nesse caso atrapalhou, pois fazia tanto barulho que não dava para escutar nada”.

Para conferir o estado atual do parlatório do Ary Franco, a equipe da TRIBUNA foi ao presídio em agosto, acompanhada do membro da Cdap Sérgio Vampré. Lá, a reportagem foi recebida pelo diretor Wagner Silva e guiada pelo chefe de segurança Marcos Monteiro, que explicou que os furos nos vidros – para permitir comunicação caso o interfone quebre – eram minúsculos a fim de impedir a passagem de qualquer material para os presos. Na ocasião, todos os interfones funcionavam, mas a estrutura de cabines vazadas, além da sala aberta, onde também ficam os advogados que estão aguardando seu atendimento, continua possibilitando que a comunicação entre o profissional e seu cliente seja ouvida por outros.

“Depende muito do advogado. Alguns falam baixo, outros gritam. E os presos também”, reportou Monteiro, quando perguntado sobre essa estrutura. Já a parte dos presos, extremamente mal iluminada, é completamente fechada entre uma cabine e outra. Uma pequena janela para o corredor do parlatório é a ventilação que eles têm, e não dá conta, porém, de tornar menos desagradável o cheiro de creolina que empesteava o local no dia da visitação. Segundo o chefe de segurança, o produto seria necessário para limpar dejetos que os internos deixariam no local: “Muitos urinam aqui mesmo”, disse.

“Vale ressaltar que é a primeira vez que vejo esse parlatório sem moscas”, relatou Vampré, acostumado a atender clientes no local. De acordo com o membro da Cdap, o ventilador de teto na seção destinada aos advogados, que, na ocasião da visita, um dia chuvoso, deixava o ambiente relativamente fresco, não é suficiente para o calor do verão.

Apesar de ter melhorado desde a inspeção da comissão, a sala está longe de ser ideal, na visão de Vampré: “Os vidros das três cabines estavam sujos e os interfones igualmente imundos. O ventilador de teto claramente não suporta a temperatura do local nos dias mais quentes. E o cheiro de creolina era tão forte que se tornou insustentável permanecer no local, ferindo a dignidade humana do preso e as prerrogativas do profissional, pois conversar com qualquer pessoa nessas condições inviabiliza o pleno exercício da advocacia”.
 
Lixo
A equipe da TRIBUNA encontrou o advogado Rafael Gomes, que se queixou também da sala do presídio Muniz Sodré, no Complexo de Gericinó: “As duas únicas cabines são abertas para a área externa do presídio. E quando eu estava lá passei pela situação de ver o lixo da unidade ser retirado do lado do parlatório, sendo deixado próximo à sala, o que atraiu pombos e outros bichos. Lá, literalmente, o advogado atende seu cliente no meio do lixo”.

Também em uma das unidades de Gericinó, o advogado Francisco Cordeiro contou ter passado por situação marcante em 2011: “Após o procedimento normal de entrada, me dirigi ao parlatório, que na verdade parecia um chiqueiro: sujo, quente, sem ventilador e nem ao menos cadeiras. Aguardei a chegada do custodiado acompanhado de um colega e das muitas moscas habituais ali. Para minha surpresa, após longa espera, os dois presos chegaram juntos e nenhum dos três interfones funcionava. Tive que realizar minha primeira entrevista aos gritos, assim como o colega que estava na mesma situação, sendo que a concentração e atenção com o cliente não era a ideal, já que foi disputada com as moscas que pousavam no meu rosto”.

Além dos complexos, entre os piores locais, Maíra observa que a situação das casas de custódia merecem atenção especial: “Nessas unidades, que recebem os presos provisórios, as salas em geral são muito ruins e o problema maior é que lá o advogado muitas vezes tem seu primeiro contato com o cliente. Precisa do mínimo de estrutura para poder mostrar documentos, colher assinatura e entender o caso”, explica.

Outra unidade isolada, concebida para atender esses casos, é o presídio Evaristo de Moraes, em São Cristóvão, alvo de reclamações principalmente pela janela de contato visual ser muito pequena e pelo calor excessivo, além dos mosquitos. A reportagem também esteve lá para conferir a atual situação.

A equipe foi recebida pelo diretor, Joseph Garcia Pereira, que disse que sua primeira ação ao assumir a unidade, há dois meses, foi reformar a sala: “Coloquei ventilador e ar condicionado. Mão de obra nós temos e não se gasta tanto em material. Basta querer para melhorarmos isso aqui”, frisou, pedindo sugestões ao membro da Cdap Sérgio Vampré para novas melhorias.

A sala, com cheiro de tinta fresca, estava com bom aspecto. O forro no teto, de PVC, cobria o possível aspecto de mofo apontado nos relatórios antigos. Porém, o vidro para contato visual continua pequeno, possibilitando a visão apenas de parte do rosto. Não há interfone, a comunicação é feita através de uma grade de ferro abaixo do vidro. As três cabines da sala também são vazadas, com uma divisória baixa as separando. Segundo Pereira, os advogados que visitam o local preferem este modo de comunicação ao eletrônico, “que pode ser destruído pelos internos ou falhar”.

As três cabines contavam com cadeiras em boas condições, diferentemente da parte reservada aos presos, que só dispunha de dois bancos na ocasião. Aparentemente, lá não houve melhoria, o que foi denunciado pela falta de ventilação e pelo mofo nas paredes, além de o teto ainda ser de telhas de amianto. Por conta dessa estrutura, Pereira contou que os detentos entram algemados, já que “o teto é frágil e pode ser facilmente quebrado”.

“De fato, a parte destinada ao advogado mudou muito desde a última vez que vim atender um cliente, há cerca de três anos”, relatou Vampré. “Mas é preciso atentar para essas questões”, frisou, notando ainda que as bordas do encaixe do ar condicionado estavam com a tinta ainda escorrendo e que não havia vidro na janela próxima a ele, permitindo a saída do ar gelado. “Constatei também que a fiação do ar estava inadequada, dando a impressão de que se tratava de uma instalação provisória. Tudo parecia ter sido feito há pouquíssimo tempo”, afirma.
 
Prerrogativas
O advogado observou que os relatos e inspeções só fortalecem a importância do acordo para a reforma das salas. “Em oito anos de advocacia criminal deparei-me com diversas violações das nossas prerrogativas. Os parlatórios dos presídios do Estado do Rio de Janeiro ferem a dignidade humana, o exercício da profissão e desrespeitam a Constituição, a Convenção Americana de Direitos Humanos, bem como outras previsões legais. Além do Estatuto da Advocacia, a Lei de Execuções Penais garante ao preso cautelar ou definitivo o direito a entrevista pessoal e reservada com o advogado. Esta previsão também está em pactos internacionais dos quais o Brasil é signatário”.

O presidente da Comissão de Segurança Pública da Seccional, Breno Melaragno, reforça: “Sabemos que falta vontade política para investir na ressocialização, da qual faz parte a boa infraestrutura das unidades. Cada providência que a OAB ou outra instituição toma para o cumprimento das leis nesses locais é uma grande vitória. E garantir o sigilo dessas conversas, excluindo inclusive a possibilidade de grampos nos telefones, é essencial para a advocacia. Somos abalados psicologicamente pelo temor que os clientes têm das gravações de suas conversas. Muitas vezes não temos como saber se eles estão nos falando tudo”.

Para Maíra, o ideal seria que, além dessas salas, os advogados pudessem ter acesso direto ao preso, com possibilidade de contato físico, agendando previamente essas reuniões com a Seap em caso de necessidade. “Entendemos que pela quantidade de presos e de advogados é impossível que isso ocorra sempre, mas é importante garantir, em situações excepcionais, que o colega possa mostrar um documento ao seu cliente, pedir um reconhecimento de assinatura ou foto, enfim, agir de toda forma necessária para aquela defesa”.

A abertura da Seap para o acordo foi fundamental, segundo ela, para o início desse diálogo: “Agora podemos, enfim, levar um pouco de dignidade para o trabalho dos advogados que atuam na execução penal. São eles os que mais sofrem na pele os preconceitos e as violações às suas prerrogativas”.

Maíra explica que a ideia é começar pelos piores parlatórios. O cronograma será decidido ainda entre as duas instituições.

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