12/06/2018 - 13:20

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‘Saída legítima para crises consiste no respeito às normas constitucionais’ Ricardo Lewandowski – ministro do Supremo Trib unal Federal

12/06/2018 - 13:20

‘Saída legítima para crises consiste no respeito às normas constitucionais’ Ricardo Lewandowski – ministro do Supremo Trib unal Federal

“Existe uma clara linha divisória, nem sempre percebida nitidamente, entre a moral e o moralismo”, diz o ministro do STF Ricardo Lewandowski, ao comentar, nesta entrevista à TRIBUNA, a decisão do colegiado de permitir a prisão após condenação em segundo grau. Para ele, a “restrição a direitos, inspirada em moralismos de ocasião, a pretexto de combater a ‘corrução’ ou a criminalidade em geral, é sempre nefasta e contraproducente”. Lewandowski esteve na OAB/RJ no dia 4 de maio para lançar a edição ampliada e atualizada do livro Pressupostos materiais e formais da intervenção federal no Brasil.
 
PATRÍCIA NOLASCO

Em seu livro, o senhor diz que a intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro parece apontar para uma “nova tendência, a ingerência pontual, cirúrgica, formal ou informal”, da União nos estados e a destes nos municípios. Assim, e de acordo com a regulação estabelecida na Carta de 88, as unidades federativas estão preservadas em sua autonomia?

Ricardo Lewandowski – Uma federação assegura aos seus membros as vantagens da unidade preservando a respectiva diversidade. Esse equilíbrio é mantido por instrumentos que vão desde a solução de dissenções internas por um tribunal especializado até a intervenção do governo central nas unidades federadas.

A ação interventiva é limitada no tempo e ao objetivo de preservar a associação. Quando não se amolda a tais condições torna-se abusiva. Embora configure corretivo drástico, há situações em que se mostra necessário. Em que pese ser decidida pelo presidente da República, independentemente de apreciação prévia do Congresso ou Judiciário, a intervenção não destitui as autoridades eleitas, ainda que estas tenham cometido falta grave ou algum ilícito. Cessados os motivos da intervenção, elas voltarão aos seus cargos, salvo impedimento legal.

Tal como o estado de sítio ou de defesa, a intervenção federal constitui providência excepcional, admitida em situações em que a paz social ou a governabilidade do país não possam mais ser asseguradas por medidas convencionais. Ainda assim, ela deve ser sempre pontual, de modo a causar o menor dano possível à escolha democrática feita pelo eleitor local. Por isso, a autonomia do ente federado que sofre a intervenção deve ser preservada ao máximo, naquelas áreas não atingidas pela medida.

Assim penso que uma intervenção mais comedida, localizada, cirúrgica, que não remova todas as autoridades estaduais ou municipais, quando for o caso, dos cargos que legitimamente ocupam, é mais consentânea com a autonomia dos entes federados.

De qualquer modo, entendo que o Brasil tem um encontro marcado com uma profunda reforma constitucional destinada a promover uma nova – e mais justa – redistribuição da renda tributária nacional, seguida de uma redefinição das competências das unidades federadas, permitindo que cumpram o papel para o qual são vocacionadas, a saber, o de prestar a tempo e com eficiência os serviços públicos essenciais à população em conformidade com suas peculiaridades locais.

O senhor disse que “é preciso voltar a tomar parte da política, a defender o Estado democrático de Direito, as garantias fundamentais que estão na Constituição, sejamos nós advogados, juízes, jornalistas, ou simples cidadãos”. Qual é a sua opinião sobre a manifestação de opiniões pessoais de magistrados e outros agentes públicos na mídia?

Lewandowski – É antigo nos meios forenses o adágio segundo o qual juiz só fala nos autos. A circunspecção e discrição sempre foram consideradas qualidades intrínsecas dos bons magistrados, ao passo que a loquacidade e o exibicionismo eram – e continuam sendo – vistos com desconfiança, quando não objeto de franca repulsa por parte de colegas, advogados, membros do Ministério Público e jurisdicionados.
A verbosidade de integrantes do Poder Judiciário, fora dos lindes processuais, de há muito é tida como comportamento incompatível com a autocontenção e austeridade que a função exige.

O Código de Ética da Magistratura, consubstanciado na Resolução 60, de 2008, do Conselho Nacional de Justiça, consigna, logo em seu artigo 1º, que os juízes devem portar-se com imparcialidade, cortesia, diligência, integridade, dignidade, honra, prudência e decoro.

A incontinência verbal pode configurar desde uma simples falta disciplinar até um ilícito criminal, apenada, em casos extremos, com a perda do cargo, sem prejuízo de outras sanções cabíveis.

A Lei Complementar 35, de 1979, estabelece, no artigo 36, inciso III, que não é licito aos juízes manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças de órgãos judiciais, ressalvada a crítica nos autos ou em obras técnicas ou no exercício do magistério.

Por mais poder que detenham, os juízes não constituem agentes políticos, porquanto carecem do sopro legitimador do sufrágio popular. E, embora não sejam meros aplicadores mecânicos da lei, dada a ampla discricionariedade que possuem para interpretá-la, não lhes é dado inovar no ordenamento jurídico.

O protagonismo extramuros, criticável em qualquer circunstância, torna-se ainda mais nefasto quando tem o potencial de cercear direitos fundamentais, favorecer correntes políticas, provocar abalos na economia ou desestabilizar as instituições, ainda que inspirado na melhor das intenções.

Por isso, posturas extravagantes ou ideologicamente matizadas são repudiadas pela comunidade jurídica, bem assim pela opinião pública esclarecida, que enxerga nelas um grave risco à democracia. 

A restrição do foro especial será capaz de dar maior celeridade aos julgamentos do STF?

Lewandowski – Existe uma clara linha divisória, nem sempre percebida nitidamente, entre a moral e o moralismo. Aquela, grosso modo, revela um conjunto de valores e princípios que deve reger a conduta humana, variando no espaço e no tempo. Todas as sociedades, em algum momento de sua história, adotaram determinadas normas de comportamento, não raro resultantes de práticas multisseculares, as quais reputaram essenciais para a convivência harmônica de seus integrantes.

Embora destituída de sanções materiais, a moral corresponde a um código de procedimentos que sujeita os transgressores à reprovação, velada ou explícita, dos membros da coletividade a que pertencem, acarretando, por vezes, a própria exclusão dos recalcitrantes de seu convívio.

Já o moralismo representa uma espécie de patologia da moral. Enquanto nesta há um certo consenso das pessoas no tocante à distinção entre o certo e o errado, no moralismo alguns poucos buscam impor aos outros seus padrões morais singulares, circunscritos a certa época, religião, seita ou ideologia. Os que discordam são atacados por meio de injúrias, calúnias ou difamações e até agressões corporais. No limite, são fisicamente eliminados. Paradoxalmente, quase sempre os moralistas deixam de praticar aquilo que exigem dos demais.

A ética, por sua vez, derivada da palavra grega traduzida por “bons costumes”, corresponde a uma disciplina comportamental que estuda as escolhas morais sob o prisma da razão, com vistas a orientar as ações humanas na direção do bem comum. O direito para alguns juristas, a exemplo do clássico Georg Jellinek, equivaleria a um “mínimo ético”, isto é, a determinado número de preceitos morais, considerado indispensável à sobrevivência pacífica de dado grupo social, transformado em lei.

No campo do Direito, os moralistas expandem ou restringem esse conceito conforme lhes convém, interpretando as regras jurídicas segundo sua visão particular de mundo. Sobrevalorizam a “letra” da lei, necessariamente voltada ao passado, em detrimento do “espírito” da lei, que abriga interesses perenes. Aplicam as normas legais fria e burocraticamente, trivializando a violência simbólica que elas encerram. Não hesitam em incorrer, proposital ou inconscientemente, no risco da “banalização do mal” de que nos falava a filósofa Hannah Arendt.

A restrição a direitos, inspirada em moralismos de ocasião, a pretexto de combater a “corrução” ou a criminalidade em geral, é sempre nefasta e contraproducente. Ainda há pouco, os jornais divulgaram que, logo depois da da controvertida – e ainda não definitiva – decisão do STF de permitir a prisão em segundo grau, só em São Paulo foram determinadas cerca de 15 mil prisões. Isso milita claramente na contramão do esforço que o Judiciário faz com as recém-instaladas audiências de custódia, mediante as quais se conseguiu liberar da prisão, em média, aplicando medidas alternativas, cerca de 50% das pessoas detidas em flagrante.
 
Os embates jurídicos têm dado lugar a conflitos abertos entre ministros do STF, em questões importantes na vida do país. O que o senhor pensa a respeito?

Lewandowski – Bertold Brecht, antevendo os horrores das guerras e genocídios do século passado, em conhecido poema, profetizou: “Primeiro levaram os negros. Mas não me importei com isso. Eu não era negro. Em seguida levaram alguns operários. Mas não me importei com isso. Eu também não era operário. Depois prenderam os miseráveis. Mas não me importei com isso. Porque eu não sou miserável. Depois agarraram uns desempregados. Mas como tenho meu emprego também não me importei. Agora estão me levando. Mas já é tarde. Como eu não me importei com ninguém, ninguém se importa comigo”.

Essa advertência nos recorda que em situações de crise é preciso observar princípios, guardar coerência, agir com desassombro, sem perder a serenidade, e sobretudo mostrar-se solidário para com os semelhantes. Na esfera individual, nessas horas, muitos encontram consolo na religião, alguns na amizade, outros na família, uns poucos na filosofia. No plano coletivo, porém, as multidões desavisadas costumam buscar amparo em figuras messiânicas, pretensamente dotadas de soluções mágicas, quase sempre apartadas dos marcos civilizatórios que a humanidade construiu ao longo de séculos.

Salus rei publicae suprema lex esto costumava ser o bordão esgrimido pelos ditadores da antiga Roma em épocas de adversidade. Para eles, qualquer medida, por mais brutal ou cruenta que fosse, era válida para salvar a República. Essa tese, retomada num passado relativamente recente pelo jurista alemão Carl Schmitt, serviu de base para algumas das mais ferozes autocracias da centúria anterior. Só que, desde a derrubada do absolutismo monárquico pelas revoluções liberais, há cerca de 200 anos, as quais puseram fim à teoria da inimputabilidade dos reis, implantando o Estado de Direito, não se tolera mais, mesmo a pretexto das melhores intenções, nenhuma ação arbitrária por parte de agentes estatais, cuja atuação deve circunscrever-se rigorosamente aos limites da lei.

A única saída legítima para as crises, seja qual for sua natureza, consiste no incondicional respeito às normas constitucionais. Nelas estão acolhidos os princípios da limitação do poder, da isonomia, da legalidade, da inafastabilidade da jurisdição, da presunção de inocência e da ampla defesa, que protegem a coletividade contra o arbítrio e a violência. Também nelas encontra guarida o postulado da soberania popular – quiçá o mais importante de todos –, que se expressa pelo voto direto, secreto, universal e periódico. Sobre ele repousa a própria democracia, a qual, segundo afirmava Churchill, é a pior forma de governo, exceto todas as outras.

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