05/06/2013 - 16:58

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Manutenção de direitos e necessidade de reforma na legislação dividem opiniões

05/06/2013 - 16:58

Manutenção de direitos e necessidade de reforma na legislação dividem opiniões

  • Vitor Fraga
Até os últimos anos do Estado Novo (1937-1945), alguns empregados brasileiros trabalhavam 12 horas ou mais por dia, e não tinham nenhum dos benefícios de hoje. A partir de 1º de maio de 1943, data em que Getúlio Vargas promulgou o Decreto Lei nº 5.452, conhecido como Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), o mercado de trabalho no país iria mudar de forma significativa.
 
Embora tenha recebido o nome de “consolidação”, a CLT não foi apenas a reunião de uma legislação dispersa, introduzindo também novos direitos e regulamentações. Sua promulgação conferiu prestígio popular ao governo, que teria buscado conciliar concessão de direitos e controle da organização dos trabalhadores. “A CLT consolidou, em 1943, um conjunto de leis trabalhistas criado a partir de 1931 sob o governo Vargas. Significava uma resposta do Estado às lutas da classe trabalhadora nas décadas anteriores. De um lado, reconheceu direitos previdenciários e trabalhistas; de outro lado, buscou limitar as possibilidades de luta, controlando os sindicatos por meio de seu atrelamento ao próprio Estado, pela via de uma estrutura sindical corporativista”, explica o professor titular de História do Brasil na Universidade Federal Fluminense Marcelo Badaró.
 
Para o secretário-geral da OAB/RJ e presidente de sua Comissão de Justiça do Trabalho, Marcus Vinicius Cordeiro, a CLT não foi simplesmente uma “dádiva” getulista. “A busca por uma legislação trabalhista que atendesse aos interesses dos trabalhadores marcou o início do Século 20, com greves históricas, incremento do movimento sindical, criação do Partido Comunista Brasileiro etc. A CLT traduz, hoje, o símbolo da resistência de classe aos projetos liberais que querem a desregulamentação do mercado, a livre iniciativa sem freios e amarras, a transformação da força de trabalho em mercadoria barata e de fácil aquisição e reposição”, afirma.
 
Em maio de 2013, a CLT completou 70 anos. Mesmo após uma série de alterações – como a criação do 13º salário, em 1962; do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), em 1966; e das férias remuneradas, em 1977 –, permanece até hoje como principal referência para regular as relações individuais e coletivas de trabalho, sem grandes reformas – embora ao longo dessas sete décadas o tema nunca tenha deixado de ser debatido. 
 
Um dos principais argumentos dos que defendem a reforma trabalhista é o de que os custos e a complexidade da legislação seriam responsáveis pela informalidade e pela dificuldade na geração de empregos. O presidente do Conselho de Assuntos Sindicais da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP), Ivo Dall’Acqua Júnior, assinala que a CLT já vem sendo modificada ao longos desses 70 anos, e defende sua reforma. “É necessário um ato de coragem para modernizá-la, pois se enfrentam críticas dos que acreditam que os dispositivos legais são ‘direitos adquiridos’, e que mudar a CLT provocaria um ‘retrocesso nas conquistas’. Existem aspectos da lei que estão travando a geração de empregos. A CLT não deve ser apedrejada, mas não deve ser vista como uma legislação pétrea e imutável”, observa Dall’Acqua.
 
Para Marcus Vinicius, a demanda por mudanças não pode suprimir direitos garantidos pela CLT. “Se for para excluir direitos, restringir, flexibilizar, não creio que seja necessária reforma alguma. Até poderia se falar em adequação da lei a novas realidades, o que já vem sendo cumprido, sobretudo por força das decisões da Justiça do Trabalho”, argumenta. 
 
Membro da 1ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região (TRT-1), o desembargador Gustavo Tadeu Alkmim corrobora a visão de que a ação do Judiciário tem promovido adequações na legislação. “Desafiando um perfil conversador originário, os juízes do Trabalho, com o passar do tempo, empunharam a CLT como instrumento de defesa do próprio Direito do Trabalho, particularmente o seu aspecto protetivo, que o diferencia de outros ramos do Direito.
 
“Evidentemente, após 70 anos a CLT precisa se modernizar, acoplar novas relações de trabalho e novas realidades sociais. O que não se confunde com a reforma que visa a flexibilizar e precarizar direitos trabalhistas”, completa.
 
Com mais de 50 anos de experiência na área, o advogado João Baptista Lousada Camara reforça a tese contrária à plena flexibilização. “A CLT foi e é um instrumento fundamental para regular a relação capital-trabalho. Mais ainda em um país como o Brasil, com tantas realidades diversas. Necessitaria, talvez, de pequenas adaptações, mas sem descaracterizá-la e tornar a pretendida plena flexibilização mais importante do que a lei. Ajustes pontuais são importantes por causa das novas atividades e novos tipos de trabalho, como o trabalho a distância, o telemarketing e atividades vinculadas à internet, em seus diversos desdobramentos”, pondera ele, acrescentando que, de vez em quando, por motivos políticos, ajustes pontuais podem gerar retrocesso. “Por exemplo, a medida provisória dos portos determinou um retrocesso na legislação de trabalho portuária. A Lei dos Portos de 1993 estava mais avançada que essa nova”.
 
Para Marcelo Badaró, os interessados na plena flexibilização e até mesmo na eliminação da CLT têm como objetivo acelerar o “processo de retirada de direitos” da classe trabalhadora. “Sob o argumento de ‘modernizar’ as relações de trabalho, o que querem é nivelar os salários e condições de trabalho por baixo, com aqueles praticados em determinadas áreas do mundo em que a precariedade do trabalho é ainda mais ampla do que no Brasil. Pelas propostas desses setores, tornar-se-ia normal e legal, por exemplo, a situação das confecções clandestinas de São Paulo, em que trabalhadores (especialmente imigrantes sul-americanos) são explorados de forma análoga à escravidão”, critica o professor.
 
“Existe ainda hoje, no Brasil, trabalho escravo ou em condições análogas à escravatura. Como imaginar, nesta realidade, que trabalhadores que se submetem a situações como estas terão condição de ‘negociar’, sem a norma regulamentadora, com o patrão sedento pelo lucro?”, questiona o desembargador Alkmim, acrescentando: “O princípio protetivo e tutelar é característica do Direito do Trabalho”. Lousada Camara acrescenta que “ainda por algum tempo, em função da pouca qualificação de boa parte dos trabalhadores, é necessária uma lei protecionista, embora não excessivamente tutelar”.
 
Do ponto de vista do setor empresarial, o caráter tutelar da legislação trabalhista tem desvalorizado os acordos coletivos, gerando uma intervenção excessiva do Judiciário. “Precisamos valorizar as convenções coletivas que respeitam o que está disposto na Constituição, mesmo quando contrariam a CLT. Quem entende das relações de trabalho é o empregado e o empregador. O Judiciário precisa respeitar as convenções e ser menos tutelar, precisa apenas dizer a lei, e não legislar. Há um excesso de intervenção da Justiça Trabalhista. A luta de classes foi teorizada no Século 18, e o mundo mudou, hoje temos cidadãos mais informados, uma massa crítica maior. Há problemas e diferenças, mas quem tem que tratar disso é a sociedade, negociando uma concertação que promova o desenvolvimento em sentido amplo, mais do que simplesmente o crescimento econômico”, defende Ivo Dall’Acqua.
 
Nesse aspecto, Marcus Vinicius sublinha que o crescimento econômico e o aumento da taxa de emprego formal enfraqueceram o debate sobre a reforma nos últimos anos. “O ingresso no mercado de trabalho formal de mais de 15 milhões de trabalhadores na última década demonstra que a CLT não é obstáculo às contratações. Assim, os arautos do liberalismo desenfreado perdem o seu discurso, que está centrado justamente no suposto anacronismo da legislação trabalhista a impedir o crescimento. No cenário de crescimento econômico, melhoria de renda e fortalecimento dos mecanismos de controle e fiscalização, a informalidade tende, se não a desaparecer, ao menos a ficar restrita a serviços periféricos e àquelas atividades ilícitas que não podem mesmo ser registradas”, defende o secretário-geral da OAB/RJ. 
 
Alkmim também discorda da tese de que a regulamentação impede a geração de empregos. “Não por acaso, o desemprego aumenta a cada mês na Europa e EUA. Em países como a Espanha – fonte inspiradora de certas normas flexíveis adotadas por aqui, como a contratação temporária e parcial, o banco de horas –, os números são assustadores. O mesmo acontece nos Estados Unidos, ícone da total ausência estatal nas relações de trabalho – o que demonstra que inexiste correlação direta entre regulamentação e desemprego”, explica.
 
Para Marcus Vinicius, a ideia de que o Brasil tem normas em excesso em comparação a outros países é questionável. “Na Europa em crise de hoje, o que vemos são gigantescas manifestações de trabalhadores contra cortes de direitos. A jornada de trabalho da França é de 35 horas, inferior à nossa; o intervalo para repouso é de uma hora e meia; há indenização por tempo de serviço, contribuições para o sistema de saúde e previdência mais onerosas que no Brasil. Cada país tem a sua legislação trabalhista, desdizendo os que apresentam a CLT como se fosse uma excrescência jurídica”, afirma.
 
Ou seja, a CLT chega aos 70 anos sem deixar de ser um instrumento de equilíbrio em uma relação historicamente desigual. “Sua existência garante um equilíbrio social capaz de minorar o desnível existente entre quem produz a riqueza e quem dela se apropria. Se nos remetermos às leis antigas, chegaremos àquelas que autorizavam a escravidão”, conclui Marcus Vinicius.
 

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