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03/08/2018 - 21:00
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A literatura militante de José Saramago
Marcus Vinicius Cordeiro*
O título é quase inevitável. O falar do extraordinário escritor português, recém-falecido no seu exílio voluntário nas Ilhas Canárias, traz a imediata inspiração de correlacionar uma vida de conhecida participação política, de ativa militância no Partido Comunista Português (PCP), a uma obra posta a serviço dos ideais imanentes a essa atuação. A socorrer a obviedade do vínculo, está a biografia de José Saramago, pontuada de fatos e acontecimentos e detalhes todos eles indicativos do entrelaço sugerido.
Nascido em uma família de aldeões pobres, na pequena vila de Azinhaga, Saramago estuda apenas até o secundário. Contornando os empecilhos da pobreza, dedica-se vorazmente à leitura nas bibliotecas públicas. Jovem, inicia sua vida profissional como serralheiro mecânico; no mesmo passo, engaja-se nas lutas antifascistas. Entre os anos 1940 e 1950, sob a opressora ditadura salazarista, publica romances, poesias, contos e faz traduções de Baudelaire, Hegel, Tolstói, entre outros. Em 1969, já conhecido nos meios literários portugueses, ingressa no PCP. Há, a partir desse momento, uma intensa dedicação do militante José Saramago às tarefas partidárias. Integra as instâncias de direção do PCP e tem presença marcante, como um dos Construtores de Abril, nos episódios que levariam à Revolução dos Cravos de 25 de abril de 1974, libertando Portugal de mais de 40 anos do regime fascista de Antonio Salazar e Marcello Caetano.
O desenrolar do processo revolucionário de abril vai encontrar José Saramago em múltiplas atividades políticas do PCP, na Célula dos Escritores do Setor Intelectual de Lisboa, na direção do Setor de Artes e Letras, nas listas de candidatos para os cargos eletivos da Assembléia - foi eleito, inclusive, presidente da Assembléia Municipal. Mas vai também trazer ao conhecimento público o gênio do escritor que se guardara, até então, para lançar ao mundo sua visão particular e inovadora do poder da palavra em face das estruturas que oprimem, afrontam, humilham o homem, relegando-o à indignidade, subjugando-o à ignorância. Daí em diante, desse momento histórico que ele, o militante José Saramago, também ajudou a construir a partir de sua própria experiência de vida material, surge o autor de Levantado do chão (1980), Memorial do Convento (1982), O ano da morte de Ricardo Reis (1984), A jangada de pedra (1986), História do cerco de Lisboa (1989), O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991), Ensaio sobre a cegueira (1995), Todos os nomes (1997), A caverna (2000), O homem duplicado (2002), Ensaio sobre a lucidez (2004), As intermitências da morte (2005), A viagem do elefante (2008) e Caim (2009), todos publicados no Brasil pela editora Companhia das Letras.
Muito embora a literatura já perpassasse sua vida há muito, é sintomático que exatamente na bifurcação de uma nova era de acontecimentos transformadores emerja o escritor reconhecido, tempos depois agraciado com as mais altas distinções literárias, inclusive o Prêmio Nobel único da Língua Portuguesa. O escritor corajoso, desassossegado, coerente com os seus princípios libertadores, iconoclasta dos mitos e representações do poder e da religião. Na perspectiva de que seria a hora de modificar o mundo e não mais de interpretá-lo das diversas maneiras já propostas pelos filósofos, Saramago transpôs toda a sua energia militante para a sua obra, sem qualquer receio dos incômodos que sua verdade crua poderia causar aos defensores de um mundo imutável, erguido sobre desigualdades e enriquecido pela exploração de semelhantes. Sua firmeza diante da censura do governo neoliberal português e dos ataques da Igreja Católica comprovam sua impavidez, certa feita já prenunciada na reveladora afirmação: "Depois de morto, o escritor será julgado segundo aquilo que fez. Reivindiquemos, enquanto ele estiver vivo, o direito a julgá-lo também por aquilo que é". E Saramago era o que escrevia.
Alheia ao evidente panfleto, a literatura de José Saramago é inovadora/refinada na forma e contundentemente realista em seu conteúdo. Despersonaliza e dimensiona aquela procura de Diógenes, o filósofo mendigo grego que, com sua lamparina, buscava à luz do dia pelo homem honesto, para em seu lugar indagar sobre um mundo honesto no qual o homem, desnecessitado da religião, reintegrado na sua razão, curado, enfim, de sua cegueira, poderá viver em paz. E tudo, nas palavras do próprio autor, graças às portas abertas por aquele mês de Abril: "Creio que nada ou quase nada do que fiz depois do 25 de abril, podia ter sido feito antes". Eis o evangelho segundo José Saramago.
*Conselheiro federal pelo Rio de Janeiro e diretor do Departamento de Cultura e Eventos da OAB/RJ.
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