03/08/2018 - 21:04

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Preconceito ou censura?

03/08/2018 - 21:04

Preconceito ou censura?

Ação do Ministério Público Federal de Minas Gerais pede retirada de circulação de dicionário por prática de preconceito racial e desencadeia discussão entre advogados e especialistas em linguagem
 
CÁSSIA BITTAR

Poucas vezes a definição de uma palavra no dicionário provocou tanta discussão. Uma ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal (MPF) de Minas Gerais, em fevereiro, pedindo a retirada de circulação do Grande Dicionário Houaiss, um dos mais conceituados do mercado, sob a alegação de que conteria expressões pejorativas e preconceituosas em relação aos ciganos, foi o ponto inicial de uma polêmica que mobiliza advogados, jornalistas, professores, lexicógrafos (especialistas na técnica de feitura dos dicionários) e outros especialistas.

Na publicação, duas das oito definições da palavra se referem ao povo cigano como “aquele que trapaceia, velhaco, burlador” e “apegado a dinheiro, agiota e sovina”, deixando expresso, porém, que se trata de uma linguagem pejorativa. Mesmo assim, o MPF, por meio do promotor Cléber Eustáquio Neves, entendeu que a publicação “fez semear a prática da intolerância étnica” e acusou o dicionário da prática de crime de racismo (artigo 20 da Lei nº 7.716/89), pedindo a condenação da Editora Objetiva, responsável por sua publicação, ao pagamento por dano moral coletivo de R$ 200 mil, além da retirada de circulação do livro.
A história começou em 2009, quando a Procuradoria Geral da República aceitou representação de uma pessoa que seria de origem cigana, afirmando que havia preconceito por parte dos dicionários brasileiros com relação à etnia. O MPF passou, então, a enviar recomendações às editoras para que mudassem o verbete, atendidas pela Globo (responsável pelo Dicionário Aurélio) e pela Melhoramentos (que publica o Michaelis).

O Instituto Houaiss alegou, em nota oficial, ter explicado à Procuradoria que a 1ª edição do Grande Dicionário Houaiss, que contém a definição criticada, não teria mais reimpressões e que não a alteraram porque já preparavam a 2ª edição, ainda não publicada. O órgão disse, ainda, que as outras publicações da família Houaiss já não incluíam, desde janeiro de 2010, os termos citados, mas defendeu a inclusão nos dicionários de todos os sentidos de uma palavra, desde que fique explícito quando se trata de acepções depreciativas: “A questão dos sentidos pejorativos ligados a algumas palavras é inconfortável e precisa ser esclarecida. Os dicionários não criam termos na língua; eles apenas refletem, como espelhos, as ocorrências com que se deparam, não os usando, portanto, com intenção de atacar, ferir ou menosprezar pessoas ou grupos”.

A afirmação é confirmada pelo professor e lexicógrafo Evanildo Bechara, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL): “Como todo produto científico, o dicionário é elaborado dentro de certos princípios técnicos e espera que o consulente saiba lê-lo. Ele não é somente o registro do repertório de palavras da contemporaneidade do leitor, mas também o testemunho veicular de ideias, concepções e juízos que o passado legou ao presente e que vigem como relíquias culturais”.

Um dos primeiros a se pronunciar sobre o assunto, o ex-presidente do Conselho Federal e da OAB/SP José Roberto Batochio reforça o coro, afirmando que é do ofício exclusivo do dicionarista a seleção de palavras e significados que lista em sua obra. “Tal sentido é apenas o registro de uma variação depreciativa que o vocábulo incorporou em determinada época. Se na atualidade tal acepção torna-se deselegante, inadequada, politicamente incorreta, cabe aos usuários do idioma decidir se a usam ou ignoram”, observa.
A querela rendeu manifestações das mais diversas, em muitas das quais ecoou a palavra “censura”. O presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB/RJ, Marcelo Dias, discorda dessa classificação: “Como lutamos por uma imprensa livre, fala-se de forma irrestrita em censura. Mas não se trata disso. Temos que encontrar uma nova forma de retratar a história dessa população”. Para ele, a retirada dos termos é essencial: “Um dicionário tão importante não pode passar adiante uma definição racista, que deprecia uma população que já foi tão marginalizada”.

Segundo Batochio, o corte da definição é uma “iniciativa temerária”. “A ocultação dos termos seria tão imprópria e descabida quanto retirar de um texto de Ruy Barbosa, mestre do Direito e do idioma, a palavra ‘denegrir’”. Bechara compartilha da opinião: “A decisão empobrece o dicionário e o conjunto de informações que deve ter”. Para ele, os termos depreciativos não são exclusivos dos dicionários de língua portuguesa. O “politicamente correto”, portanto, teria que se lançar sobre as publicações de língua espanhola também.

“Além do mais, se lançarmos os olhos aos sentidos depreciativos de palavras, numerosas serão aquelas que seriam eliminadas dos nossos dicionários. O verbo judiar, por exemplo, ou denegrir, além da palavra polaca, no sentido de prostituta. Todos esses termos carregam um significado pejorativo, válido ou não, mas que existe no imaginário coletivo. Seria um verdadeiro expurgo nos dicionários”, argumenta o lexicógrafo.
A questão se revela complexa até para especialistas em Direito Civil, como o procurador-geral da Seccional, Ronaldo Cramer. Ele entende que o dicionário é publicação sem opinião, resultado de experiências históricas, mas aceita a reivindicação dos ciganos. “A reclamação do povo que se sente ofendido é justa e legítima, assim como é legítima a neutralidade do dicionário”, observa.
 
Já Dias tem seu juízo bem formado: “Alguns preconceitos precisam ser banidos culturalmente e não reproduzidos sem quaisquer pudores nem consultas prévias aos grupos citados”. Ele acredita que a simples publicação de ideias como essa, detectadas na sociedade brasileira, já traduzem o que chama de “preconceito institucionalizado”.

A questão lembra casos como a condenação do Conselho Nacional de Educação, em 2010, à obra infantil Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, por supostamente dar vazão ao racismo, e outra ação contra o Houaiss, que há dez anos tentou apagar, sem sucesso, a definição pejorativa de judeu como “pessoa usurária, avarenta”. Resta saber que fim terá essa nova polêmica das letras.

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