03/08/2018 - 21:05

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Endurecimento da progressão do regime de pena

03/08/2018 - 21:05

Endurecimento da progressão do regime de pena

Novo desenho vai contribuir para o incremento da explosão carcerária
 
LUIZ FLÁVIO GOMES*
 
A Comissão de Reforma do Código Penal instituída pelo Senado, da qual faço parte, preocupou-se em buscar a proporcionalidade entre as penas, mas em alguns momentos não resistiu aos apelos do populismo penal midiático, que se fundamenta em pensamentos mágicos, como a crença equivocada de que mais prisões significariam menos crimes. O Brasil é campeão mundial na taxa de encarceramento (de 1990 a 2011, 472% de aumento) e, ao mesmo tempo, experimenta um dos maiores incrementos nos índices de homicídio (9,9 mortes para cada cem mil habitantes em 1979, contra 27,3, em 2011). Prendeu muito, e a violência não diminuiu.
 
Fundada em causalidades mágicas, a comissão aprovou por maioria de votos o endurecimento da progressão de regime, estabelecendo quatro níveis: a) 1/6 da pena como regra geral; b) 1/3 da pena em crimes cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa ou que revele especial danosidade social; c) 1/2 de pena quando se trata de réu primário em crime hediondo e d) 3/5 da pena quando se trata de réu reincidente neste tipo de crime.
Duas mudanças com relação à atual lei chamam a atenção: a) de 1/6 para 1/3 no caso de crimes violentos ou de especial danosidade; b) de 2/5 para 1/2 no caso de réu primário em crimes hediondos. Todos esses porcentuais são contados sobre a pena total, não sobre o limite de 30 anos.

Nove crimes, hoje, são responsáveis por mais de 90% dos presos do sistema carcerário: furto, roubo, receptação, estelionato, homicídio, tráfico de entorpecentes, tráfico de armas, estupro e violência contra a mulher. A maioria deles enquadra-se nas categorias de violentos (roubo, por exemplo) ou de hediondos (homicídio qualificado, por exemplo).
Na prática, o que representará o novo desenho da progressão de regime, caso venha a ser aprovado pelo Congresso? Vai contribuir para o incremento da explosão carcerária (de gente não violenta que não deveria nela ingressar), explosão essa que não tem nada a ver com o mito de que mais presos significam menos criminalidade (de 9,9 homicídios para cada cem mil habitantes em 1979, passamos para 27,3, em 2011, contra o aumento de 472% na população carcerária).

Considerando a ausência de políticas preventivas da criminalidade tradicional ou convencional, a nova explosão carcerária que se avizinha tende a contribuir para a inviabilização da convivência no Brasil, tendo em vista seus efeitos criminógenos conhecidos: geração de intensa reincidência, recrudescimento do estereótipo criminoso forjado pela mídia, incremento da criminalidade organizada, aumento da violência etc.
 
* Jurista e cientista criminal
 
Agravamento da lei atende a anseio popular, mas mostra-se ineficaz
 
BRENO MELARAGNO*
 
Aumentar o tempo de cumprimento de pena para o preso progredir de regime é como passar manteiga em queimadura: momentaneamente alivia, mas não trata do verdadeiro problema.
 
A pena no Direito Penal moderno é resposta estatal que tem como fim a proteção da sociedade, concretizada em instrumentos de ressocialização do apenado, que retornará ao convívio social. Para além do caráter retributivo e preventivo na aplicação da pena de prisão, nada é válido se não houver possibilidade de tornar o infrator capaz de conviver novamente em sociedade.

O agravamento da lei penal, que atende ao anseio popular de combate à impunidade, mostra-se, ao longo do tempo, ineficaz. O advento da Lei de Crimes Hediondos não diminuiu a criminalidade. No caso da execução penal, tal recrudescimento desvia do real problema, que não está na lei ou no Judiciário. O sistema prisional é administrado pelo Executivo, ocupado por mandatários eleitos pelo povo. Na lógica eleitoral, preso é lixo social e ressocialização não gera votos. Ao contrário do discurso do combate à impunidade, que atende à sensação de medo arraigada na população.

O sistema progressivo é o instrumento mais eficaz para gerar condições mínimas de reinserção do egresso e evitar que volte a delinquir. Mantê-lo encarcerado sob a custódia do Estado e subitamente colocá-lo na rua sem amparo é incentivo à reincidência. No sistema progressivo, aos poucos, mediante compensações que o incentivam a cumprir condições e punições que o fazem regredir, o detento vai voltando ao convívio social, com um mínimo, em tese, de ajuda.

Mantê-lo mais tempo no regime inicial só o tornará uma pessoa pior. Relatório divulgado pelo Subcomitê de Prevenção da Tortura da ONU, que visitou presídios em diversos estados brasileiros, mostra casos de tortura, maus tratos, corrupção, insalubridade, doenças, falta de médicos, dificuldade de acesso à Justiça e até controle de milícias nos estabelecimentos. O Executivo oferece 306 mil vagas para 514,5 mil presos pelo Judiciário. Manter o apenado nessas condições mais tempo do que hoje prevê a lei para dar início à reinserção é submetê-lo ainda mais às masmorras de torturas físicas e psicológicas, dificultando ou inviabilizando a recuperação social.

Cumprir 1/6 (2/5 nos casos de crimes hediondos) da pena para progredir a melhores condições pode parecer pouco a quem nunca visitou um presídio. Mas um único dia em um cárcere nacional nas atuais condições é suficiente para destruir a estrutura psicológica de quem amanhã andará na mesma calçada que a sua.      

* Membro da Comissão Especial de Estudos em Direito Penal da OAB/RJ e professor da PUC-Rio   
 
 
 

 

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