06/02/2018 - 15:42

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Encontros que humanizam

06/02/2018 - 15:42

Encontros que humanizam

Criado nos anos 1970, método de co nstelação familiar é cada vez mais utilizado na busca da resolução con sensual de conflitos. 1ª Vara de Família da Leopoldina é pioneira, n o Rio, na aplicação da dinâmica
 
EDUARDO SARMENTO
Em tempos de discursos que exaltam o punitivismo e relativizam direitos, especialmente nas redes sociais, alguns setores caminham no sentindo oposto, buscando novos meios para a solução de conflitos e a humanização do Judiciário. Em 2010, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou a Resolução 125/2010, que “dispõe sobre a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário”, com o intuito de aprimorar a solução consensual de disputas. Cinco anos depois, o novo Código de Processo Civil tornou etapa processual obrigatória a conciliação e, também em 2015, foi aprovada a Lei da Mediação. Nesse meio tempo, em pelo menos 12 estados do país, além do Distrito Federal, a constelação familiar foi introduzida de forma experimental, produzindo resultados mais do que satisfatórios.
A dinâmica criada nos anos 1970 pelo alemão Bert Hellinger – igualmente responsável, uma década mais tarde, por trazer a prática para o Brasil – é realizada em sessões nas quais, enquanto outras pessoas do grupo representam seus familiares, o participante é estimulado a refletir sobre os vínculos pessoais para que, observando de fora a dinâmica, consiga romper comportamentos geradores de conflitos, facilitando um entendimento e, consequentemente, a busca por uma solução consensual. “A pessoa traz um tema de dificuldade em qualquer área da vida: relacionamentos afetivos, doenças físicas, relacionamento familiar ou trabalho, entre outros. Não importa o conflito, a constelação parte do pressuposto de que é questão é sistêmica e tem solução. Montamos o trabalho de representação para mostrar onde estão os pontos de bloqueio”, explica a terapeuta e especialista na matéria Celma Nunes Villa Verde, que estuda a constelação familiar desde 1999 e é uma das pioneiras a tratar do tema no Brasil. Além das sessões coletivas, existem consultas individuais, nas quais a representação dos familiares é feita com bonecos. As experiências no Judiciário, no entanto, utilizam grupos.

No Rio de Janeiro, um dos primeiros a utilizar a técnica foi o juiz Andre Tredinnick, titular da 1ª Vara de Família da Leopoldina. Após conhecer a prática no consultório de uma terapeuta, o magistrado soube, por meio de uma rede social, da aplicação da constelação familiar em um tribunal da Bahia e se interessou pelo tema. A aproximação com o método foi facilitada pela compreensão de Tredinnick de que o Poder Judiciário não presta bom serviço se não tem uma visão humanizada das partes. “Não podemos achar que a ciência jurídica resolve os problemas dos outros pelo próprio sistema. Em uma vara de família, a pessoa que entra com a ação está sofrendo, e o processo pode aumentar esse sentimento, o juiz tem que entender isso”, diz. Ele ressalta que, nas questões de família, muitas vezes há problemas que passam por falhas de comunicação ou por questões emocionais. “São relações continuadas, que envolvem, pais, mães, filhos, maridos e esposas. A solução jurídica na maioria das vezes não significa o fim dos conflitos. O juiz dá a decisão e na semana seguinte a família está de volta. Um não está cumprindo o acordo, o outro não está pagando o combinado ou mudou de emprego para diminuir o valor da pensão, por exemplo”, completa. 

Na Leopoldina, as sessões são conduzidas por especialistas voluntárias, que quinzenalmente promovem encontros com cerca de 12 pessoas. Nem todas participam ativamente da constelação, mas estatísticas demonstram que a mera observação do processo facilita a compreensão de alguns indivíduos. A coleta de dados com o intuito de demonstrar a eficácia do projeto é, inclusive, um diferencial do trabalho realizado por Tredinnick e sua equipe. “Quem faz constelação não pode ser apenas um curioso, tem que ter uma formação extensa. São pessoas sérias, que trabalham de graça aqui e entenderam a importância de documentarmos esse processo”, explica o magistrado. 

Devido ao enorme volume de ações, Tredinnick sugere a mediação apenas para os casos mais complicados. Quando o jurisdicionado concorda, ele participa de uma sessão e depois é encaminhado para realizar uma mediação. Segundo o juiz, o índice de acordos fechados e cumpridos por quem passa pela constelação familiar na Leopoldina bate os 86%, contra 55% dos casos que não utilizam a técnica. “Desde o início nos preocupamos em fazer um projeto com resultados rastreáveis cientificamente. Queríamos passar não só por uma avaliação do judiciário, mas do nosso sistema. Na mediação, a adesão é muito grande, temos casos de conflitos longos em que vimos o processo desaparecer. Não há um indivíduo dizendo verticalmente o que tem que ser feito, há um compartilhamento de poder. A família entende que tem que dar conta do problema que ela sabe que existe”, constata.

Apesar da fácil identificação da dinâmica com conflitos familiares, outras áreas do Direito vêm utilizando a técnica. Segundo Tredinnick, isso não só é possível como é recomendado. “Queremos encontrar o ponto mais central das coisas. Qualquer tratamento humanizado sensibiliza. O juiz compreender que não é uma máquina, um sábio, nem melhor do que ninguém, que não é um Deus, mas um servidor que está lidando com pessoas, propicia uma resolução melhor de qualquer situação, seja de família, cível ou criminal”, esclarece.

Exemplo de boa aplicação em outra especialidade é dado por Alfredo Marinho, atual titular da 1ª Vara Criminal de Madureira. Por volta de 2015, quando estava lotado na 1ª Vara Criminal de Belford Roxo e era responsável pela Central de Penas e Medidas Alternativas ligada à serventia, o magistrado utilizou a constelação familiar como parte do atendimento aos presos condenados a penas restritivas. Com experiência de 14 anos como juiz criminal, Marinho critica a irracionalidade do sistema pricional brasileiro e afirma que ressocialização dos detentos passa pela busca de uma sensação de pertencimento. “Nossas prisões são abarrotadas e totalmente desumanas. As pessoas, em geral, entram na cadeia entre 18 e 24 anos, muitas vezes sendo separadas por facções criminosas. Para não serem obrigadas a dormir ao lado do vaso sanitário, por exemplo, muitas vezes têm que criar relações dentro do presídio. Pensar que alguém vai ser ressocializado desta forma não é razoável”, considera.

Ele afirma, ainda, que a atual política de segurança vem sendo falha e demanda dos magistrados novas saídas. “Estamos nessa guerra às drogas prendendo sem nenhuma efetividade. Por esse enfrentamento, é evidente que não venceremos. Percebi, em Belford Roxo, que muitos presos eram primários, sem antecedentes criminais e que muitos estavam ali por circunstancias da vida delas. Resolvi buscar alternativas ao encarceramento que tivessem resultados úteis para a sociedade”, conta.

As sessões na CPMA de Belford Roxo também são conduzidas por voluntários – mesmo após a saída de Marinho da serventia, o trabalho continua. Ao chegar na central, uma equipe composta por psicólogos e outros profissionais realiza entrevista individual com os detentos que cumprem penas restritivas de direitos. Faz parte do que eles chamam de atendimento integrado, no qual checam e ajustam toda a documentação do preso e oferecem, entre outras coisas, a possibilidade da constelação familiar. Para os que optam por participar, o tempo das sessões é abatido da pena. “O fundamental é dizer ‘o Estado não abandonou vocês’. Além disso, explicamos as obrigações e buscamos considerar diversos fatores. A constelação está inserida nesse contexto, faz parte de nossa ideia de ressocialização. Porque não olhar, já ali dentro, por outros lados que não o do crime?”, indaga, antes de completar que “ao desumanizar um morador de comunidade, por exemplo, ele naturalmente me desumaniza e, fatalmente, vamos nos tratar de forma bárbara ao nos encontrarmos”.

Embora não trabalhe diretamente com constelação familiar, o presidente da Comissão de Direito de Família da OAB/RJ, Bernardo Garcia, acompanha os experimentos realizados e acredita que toda tentativa de tornar mais efetivas as resoluções de conflitos é válida. “Nunca participei de uma dinâmica, mas tenho visto pessoas aplicando a técnica no Poder Judiciário, especialmente em varas de família. Em pesquisas, já constatei que toda prática coletiva tem força para extrair sentimentos e entendimentos pessoais que não temos individualmente. A coletividade torna possível enxergar as coisas mais facilmente”, defende.

O fato de ser um processo realizado antes da mediação é elogiado por Garcia, que enxerga uma possibilidade de suavização do processo. “A dinâmica fica mais amena, desperta algo que você não estava conseguindo vislumbrar. A mediação é uma prática para a qual o cliente tem que estar preparado. Muitos não querem resolver a questão, mas apenas brigar, partir para o litígio. Chegar para um acordo desarmado só pode ajudar”, atesta.
 
Mercado de trabalho para os advogados
Todas as vezes em que medidas que buscam evitar a judicialização vêm à pauta, há questionamentos relativos ao mercado de trabalho dos advogados e a eventuais prejuízos para a classe. Em sentido oposto a essas críticas, Tredinnick exalta a constelação familiar como uma nova possibilidade para a advocacia.
“A participação do advogado em todo processo de resolução é fundamental. Aqui na Leopoldina, a maioria já sabe como é. Os novos, quando percebem que é apenas uma dinâmica, relaxam mais”, conta, revelando que alguns chegam a levar questões particulares para serem tratadas nas sessões. 

O engajamento maior dos colegas acontece, ainda de acordo com Tredinnick, ao perceberem a constelação familiar como uma nova ferramenta profissional. Geralmente, o advogado de família chama a outra parte para tentar uma composição. Não conseguindo, a medida é entrar com a ação. Ao conhecer o novo método, os procedimentos mudam. “Eles observam que, da mesma forma que os juízes muitas vezes parecem máquinas de dar sentenças, os advogados muitas vezes também automatizam a criação de processos. Os que fazem a constelação têm a possibilidade de chamar as partes e realizar o procedimento em seu próprio escritório, compreendendo melhor a questão sistêmica, ou seja, como as pessoas interagem”, ressalta.
A possibilidade de realizar um acordo independentemente da participação do Poder Judiciário pode representar, para o advogado, um ganho de qualidade no trabalho e um diferencial em um mercado de trabalho cada vez mais saturado. “Todo profissional deve agregar qualificações excepcionais. Em uma sociedade que despeja milhares de advogados na sociedade todos os anos, o destaque é quem fica conhecido por resolver as questões. Aquele que propõe uma mediação e obtém sucesso, ganha. O mesmo ocorre com a constelação familiar”, sublinha Tredinnick, antes de revelar que está sendo criado, no Fórum Regional da Leopoldina, um espaço específico para mediações, constelações, oficinais parentais e outras práticas pré-processuais. Ele conclui afirmando que “os advogados têm a chance de mudar o eixo de poder e assumir o protagonismo, especialmente no Direito de Família, em que quanto menos as questões íntimas dos clientes forem expostas, melhor”.

Garcia concorda, descartando a possibilidade de que práticas não judiciais prejudiquem a advocacia. “Do meu ponto de vista não tira trabalho de ninguém. Ao contrário, é mais um ponto de vista para que se chegue a um acordo, que é o que deseja o cliente. Considero uma prática extremamente válida”, salienta.

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