08/08/2013 - 14:29

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Democracia que vem das redes

08/08/2013 - 14:29

Democracia que vem das redes

CÁSSIA BITTAR
 
Meses de junho e julho de 2013. No momento em que as atenções se voltavam para o Brasil em função da Copa das Confederações, protestos contra o aumento das tarifas dos ônibus em vários estados ganhavam força nas ruas, culminando em uma série de manifestações por outras pautas. O grande instrumento de repercussão, e mesmo de alimentação, desse complexo movimento reivindicatório foi a internet. Mais especificamente, as redes sociais, que ajudaram a disseminar pleitos e informações, reconfigurando  o debate sobre a democracia direta e, em consequência, os abaixo-assinados eletrônicos.
 
Após mobilizações populares organizadas por meio da internet, propostas que visam a legalizar petições online como projetos de iniciativa popular ganham destaque no Congresso
Só no Brasil, duas das principais plataformas de petições online do mundo, a Avaaz e a Change, contabilizam, juntas, mais de 4,5 milhões de usuários. Apesar de o alcance ser numericamente expressivo, pela legislação atual coletas nesse modelo não têm valor para a proposição de projetos de lei de iniciativa popular – o artigo 61 da Constituição estabelece a necessidade de subscrições, em meio físico, de, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco estados. Isso representa cerca de 1,3 milhão de assinaturas.
 
"A internet revolucionou a política", avalia a coordenadora global de campanhas do Avaaz, Caroline D’Essen. "Antes, levavam-se semanas para organizar uma manifestação ou conseguir milhões de assinaturas em um abaixo-assinado de papel, e criar ou participar de campanhas era visto apenas como um assunto de especialistas, não como algo que qualquer cidadão poderia fazer. Hoje, mais e mais pessoas estão usando a tecnologia para achar suas próprias vozes".
 
Para o sociólogo Sérgio Amadeu da Silveira, um dos defensores e divulgadores do software livre e da inclusão digital no Brasil, as recentes mobilizações demonstram, também, um desgaste no formato atual de participação da sociedade: "A Constituição de 1988 foi bastante inovadora na época, pois abriu espaço para a participação direta do cidadão na formulação de leis e no debate sobre as políticas públicas. Ocorre que até hoje o Congresso Nacional não tem em seu regimento interno a aceitação desse preceito. Mesmo em papel, petições populares tiveram que ser assumidas por um deputado para serem transformadas em projetos. É algo anacrônico, ainda mais diante das possibilidades que a internet nos traz".
 
Membro da Comissão de Direito Autoral, Direitos Imateriais e Entretenimento da OAB/RJ, Carlos Affonso Pereira de Souza fala no mesmo tom. "Na atual conjuntura, em que o uso político da rede aparece de forma bastante clara, o Congresso se vê provocado a usar os meios que a tecnologia oferece para agilizar o processo legislativo, dar-lhe maior transparência e tornar a participação popular mais efetiva", observa ele, que é também coordenador-adjunto da escola Direito Rio, da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
 
Projeto cria Estatuto da Democracia Participativa
 
Nessa esteira, projetos que já tramitavam no Congresso propondo ampliar a participação da sociedade no processo legislativo ganharam força. Um deles é o Projeto de Lei (PL) 6.928/2002, que cria o Estatuto da Democracia Participativa e aguarda votação da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados para seguir à apreciação do plenário.
 
Autor de proposta apensada ao PL que possibilita a coleta de assinaturas para projetos de iniciativa popular pela internet, o deputado federal Felipe Maia (DEM/RN) afirma que o pleito vai ao encontro das manifestações nas ruas: "Essa mobilização demonstrou que os jovens desejam fazer parte das decisões do Poder Legislativo. E o PL cria um mecanismo constitucional para isso".
 
Há também a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 3/2011, do senador Rodrigo Rollemberg (PSB/DF), que facilita a apresentação de projetos de iniciativa popular e foi aprovada, no início de julho, pelo Senado, seguindo para apreciação da Câmara. O texto propõe a diminuição, pela metade, do número de assinaturas necessárias para que tenha início a tramitação de um projeto desse tipo.
 
De acordo com o relator da PEC, senador Lindbergh Farias (PT/RJ), a proposta responde a uma demanda popular por mais interação através de canais democráticos de participação política pela rede. "Estamos dando à população uma oportunidade de influenciar ativamente nas questões políticas. Ao mesmo tempo, o Congresso atuará em sintonia com os anseios da sociedade. Através da internet, a coleta de assinaturas será mais ágil, dinâmica. É o conceito de ‘cidadania eletrônica’ aprofundando a democracia representativa", afirma.
 
O texto possibilita, ainda, que emendas de iniciativa popular sejam apresentadas a projetos de lei já em tramitação e que PECs também sejam propostas por iniciativa popular - hoje, são restritas a projetos de lei. A diferença entre a apresentação de um se dará pelo número de assinaturas necessárias: para a PEC, será 1,3 milhão, e para o projeto de lei, cerca de 500 mil.
 
Em resposta aos questionamentos sobre possíveis fraudes nas assinaturas virtuais, Souza ressalta as dificuldades existentes no processo de proposição de leis: "No movimento que resultou na Lei da Ficha Limpa, a proposta popular que chegou ao Congresso em formato de petição física teve que ser levada em carrinhos de supermercado, com assinaturas de um número de pessoas tamanho que era impossível conferir a legitimidade de cada uma".
 
Para ele, existe ainda uma pré-concepção dominante de que a internet facilita falsificações: "Sabemos que nas formas offline de propositura essas assinaturas não são conferidas. E a internet oferece, sim, meios seguros para que se tenha uma assinatura individualizada", salienta, observando que a assinatura digital seria o meio mais seguro, porém oneroso: "A certificação digital deve ser vista com algum cuidado, porque metade da população brasileira está inserida na internet e um percentual ainda menor possui uma assinatura digital";
 
Lindbergh pondera que existem variados mecanismos para se evitar a fraude na internet. "Isso pode ser discutido pelo Congresso e pelos órgãos que decidirem implantar esta mesma proposta na regulamentação da medida", frisa.
 
Inclusão digital é desafio
 
O presidente da OAB/RJ, Felipe Santa Cruz, alerta que é preciso ter cautela para que a participação direta através da rede não se transforme em uma "ditadura de quem está online". "É importante lembrar que grande parcela da população não acessa a internet", diz ele.
 
"Sem dúvida, deve haver uma política maior de inclusão digital. Quanto mais se dá acesso aos segmentos mais cauterizados da população, mais se permite que participem da abertura, de fato", alerta, por sua vez, Sérgio Amadeu, destacando que a internet no Brasil é uma das mais caras do mundo. "É necessário incentivo a mais locais públicos de acesso à rede e a facilitação na compra de equipamentos".
 
Segundo Souza, tão importante quanto debater a nova forma de propositura de leis é pensar no seu acompanhamento pela sociedade."Estamos muito focados em questões ligadas à propositura, mas é importante percebermos que a tecnologia também permite que a população possa acompanhar a tramitação dessas leis no Congresso", afirma ele, citando como exemplo o portal E-Democracia, da Câmara dos Deputados.
 
O Marco Civil da Internet, projeto que também corre no Congresso e que foi apresentado em anteprojeto de lei que contou com ampla participação social na própria rede, também é citado pelo especialista: "Sua redação foi construída quase que totalmente de forma colaborativa e, quando a lei chegou ao Congresso, vimos as dificuldades para fazer com que aquelas contribuições fossem preservadas. É preciso que haja um mecanismo de marcas de revisão, para que os deputados esclareçam à sociedade as modificações nas propostas". 
 
Lindbergh esclarece que o Projeto de Resolução do Senado 44/2013, apresentado por ele, prevê essa consulta pública colaborativa. "Um projeto de lei em tramitação no Senado poderá ficar aberto por até 60 dias para comentários e sugestões, via internet; e o relator deverá apresentar relatório dialogando com essas propostas e justificando sua eventual incorporação ou rejeição".
 
Independentemente do resultado das novas propostas, o fato é que a moção política dentro e fora das redes ganhou novo capítulo. "Sempre que se facilita a participação popular na política, a democracia fica mais forte", resume Caroline D’Essen. 
 
Versão online da Tribuna do Advogado.
 

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