11/04/2017 - 11:47

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Contra o foro por prerrogativa de função

11/04/2017 - 11:47

Contra o foro por prerrogativa de função

DANIEL SARMENTO*

O foro por prerrogativa de função, tal como hoje é concebido no país, recorda um preceito da constituição elaborada pelos porcos na obra A revolução dos bichos, de George Orwell: “todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros”.  Trata-se de símbolo odioso de privilégio, que contribui para a impunidade dos agentes políticos, alimentando a descrença social no sistema de justiça.

Afinal, não há razão plausível para que pessoas acusadas pelos mesmos delitos sejam submetidas a instâncias jurisdicionais distintas. Trata-se de diferença injustificável de tratamento, que não se compadece com os princípios republicano e da igualdade. Sintoma de uma cultura hierárquica e estamental, em que ainda se ouvem com frequência expressões como “cada macaco no seu galho”, ou “você sabe com quem está falando?”
No Brasil, são milhares as autoridades beneficiárias do foro privilegiado: parlamentares federais e estaduais, ministros de Estado, governadores, prefeitos, magistrados de todos os graus de jurisdição, membros do Ministério Público e dos tribunais de contas, dentre outros agentes públicos. Não há paralelo em nenhuma outra democracia. Nos Estados Unidos, por exemplo, não existe o foro por prerrogativa de função. Na França, Itália e Portugal, ele se aplica a um número muito reduzido de autoridades de elevado escalão, e mesmo assim apenas para fatos estritamente ligados ao exercício das respectivas funções, diferentemente do que ocorre no Brasil.

Na prática, o foro por prerrogativa de função contribui para a impunidade, especialmente pela morosidade dos tribunais para processar e julgar ações penais. Para que se tenha uma ideia, o tempo médio só para recebimento de uma denúncia no STF é de 565 dias, algo que um juiz de primeiro grau realiza em menos de uma semana. Com enorme frequência, os crimes prescrevem. As alterações de competência no curso do processo são comuníssimas, em razão de vicissitudes como términos de mandato, renúncias, nomeações para outras funções públicas etc., tudo isso em detrimento da celeridade processual. Quando os casos são finalmente julgados, já se passou tanto tempo desde a ocorrência dos fatos que a justiça não se realiza com plenitude. Afinal, como já dizia Ruy Barbosa, a justiça tardia é injustiça qualificada.

Diante disso, não é de se estranhar que os autores de todo tipo de “malfeitos” busquem o abrigo do foro privilegiado. Tornam-se comuns as nomeações para cargos, cujo objetivo maior é proporcionar o foro especial para amigos e aliados. Para alguns políticos e autoridades, manter o mandato ou o cargo vira necessidade vital, não para o desempenho da função pública, mas no afã de evitar o julgamento mais célere e a imposição de eventuais restrições à liberdade pelas instâncias judiciais ordinárias.

Por outro lado, o foro especial é profundamente disfuncional para os tribunais, especialmente para os superiores. Veja-se o caso emblemático do STF. A função institucional precípua do Supremo é atuar como guardião da Constituição. Nossa suprema corte não é talhada para atuar como julgadora penal, nem está devidamente aparelhada para isso. O desempenho dessa atividade subtrai o tempo e energia da corte, já tão assoberbada, prejudicando a sua capacidade de atuar a contento como tribunal constitucional. O julgamento do caso do Mensalão, por exemplo, consumiu muitos meses de trabalho quase exclusivo do STF. Imagine-se o que deverá ocorrer com os inquéritos e processos ligados à operação Lava-jato, que envolvem número muito maior de fatos e pessoas. Mantido o foro por prerrogativa, teremos o STF provavelmente convertido em tribunal penal de 1ª e única instância pelos próximos anos, em prejuízo da tramitação e julgamento de relevantíssimas questões constitucionais.

Por essas e outras razões, entendo que o foro por prerrogativa de função deveria ser radicalmente limitado, para número muito restrito de autoridades. Idealmente, deveriam desfrutá-lo apenas o presidente e o vice-presidente da República, os presidentes da Câmara e do Senado, os ministros do STF e o procurador-geral da República. Para isso, contudo, seria necessária a promulgação de emenda constitucional, que depende de aprovação por três quintos dos deputados e senadores. Existem, é certo, propostas de emenda constitucional tramitando no Congresso de teor similar. Porém, apesar do apoio da opinião pública a essas louváveis iniciativas, é muito improvável que elas tenham sucesso, especialmente no cenário da operação Lava-jato, com tantos e tão importantes parlamentares envolvidos e temendo pela própria liberdade.

Há, contudo, outra solução viável para minorar o problema, que não depende de mudança no texto constitucional, como venho sugerindo há algum tempo (Foro privilegiado, república e interpretação constitucional, disponível em https://jota.info/artigos/constituicao-e-sociedade-4-03112014). Trata-se de adotar interpretação restritiva e teleológica dos preceitos constitucionais que consagram o foro por prerrogativa de função, para limitar a sua incidência àquelas hipóteses em que o delito atribuído à autoridade pública tenha relação com o exercício do cargo ou função ocupado. Afinal, se o foro especial é concedido em razão do desempenho de certas funções, não há porque estendê-lo para fatos absolutamente estranhos a esse exercício. Em um exemplo, se um ministro de Estado é acusado por ter se corrompido no exercício das suas funções ministeriais, o foro se aplica; mas se a autoridade é processada por sonegar tributos na sua empresa, ou por manter trabalho escravo na sua fazenda, não há porque submetê-la ao foro especial.

Essa exegese alternativa, inspirada pelos princípios republicano e da igualdade, foi recentemente submetida ao Plenário do STF pelo ministro Luís Roberto Barroso, no julgamento da Ação Penal 937. Anteriormente, ela já havia sido proposta pelo ministro Celso de Mello, em entrevista jornalística.

Felizmente, a sociedade brasileira está mudando e aceita cada vez menos o privilégio; tolera cada vez menos a imunidade dos poderosos diante da lei. Por isso, é preciso combater essa reminiscência aristocrática que é o foro privilegiado, seja com as armas da boa política, nas ruas e no Congresso, seja pelo emprego da interpretação constitucional orientada pelos princípios mais elevados da Carta da República.
 
* Advogado e professor titular de Direito Constitucional da Uerj

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