29/07/2016 - 17:11

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Na prática do Direito, a importância de outras ciências humanas

29/07/2016 - 17:11

Na prática do Direito, a importância de outras ciências humanas

Formação em psicologia, filosofia, antropologia e sociologia ganha relevância na moderna advocacia, que se abre cada vez mais à subjetividade

CÁSSIA BITTAR 


Um livro sobre casos reais de uma vara de família, escrito por uma magistrada petropolitana. Esta poderia, como muitas, ser uma obra apreciada principalmente por profissionais da área jurídica. Porém, A vida não é justa (Agir), lançado em 2012 pela juíza Andréa Pachá – que publicou também, em 2014, a continuação Segredo de justiça (Agir) – , não só ultrapassou seu meio, cativando leitores de todo o Brasil, como, devido ao sucesso, será adaptada para a TV em série que estreia no programa Fantástico, da Rede Globo, no dia 28 de agosto.

Com formação artística, além da carreira em Direito, tendo trabalhado em teatro e cinema antes de ingressar na magistratura, Pachá demonstra, em suas crônicas, conflitos que ultrapassam a esfera objetiva do júri, com exemplos de sensibilidade para identificar questões peculiares nas pessoas por trás dos processos. Com isso, a autora trouxe para os leitores leigos em matéria jurídica a visão da influência que o conhecimento da natureza humana pode exercer sobre um profissional do meio.

Apesar da ênfase nas questões subjetivas nos casos apresentados nos livros, a juíza conta que recebeu com surpresa a notícia do sucesso de sua obra entre psicanalistas: “Foi curioso notar, quando publiquei o primeiro, que as histórias, aparentemente conflitos jurídicos, estavam transitando muito mais facilmente no ambiente da psicanálise do que na área do Direito”. 

Segundo ela, a ligação de seu trabalho com o estudo do inconsciente se deu de forma natural: “Não tenho formação em psicanálise. Mas eu fui psicanalisada por muitos anos. Não percebi enquanto escrevia, mas acho que de certa forma, quando você passa por um processo de psicanálise, aprende a linguagem da representação e o lugar de escuta. De onde escrevi aquelas histórias, acredito que estava em uma posição muito mais próxima de quem ouve terapeuticamente do que de quem julga. Talvez por isso elas tenham transitado mais naturalmente entre os psicanalistas”.

A interdisciplinaridade evidente na obra de Pachá faz parte de um momento do Direito em que a influência de outras ciências humanas como a filosofia, a antropologia e a sociologia, além da própria psicologia e a psicanálise, é cada vez mais aproveitada, segundo especialistas.

“A valorização dos princípios da dignidade humana, da afetividade e do respeito às diferenças possibilitou uma reconfiguração sem precedentes no Direito”, observa o advogado Julio Cezar de Oliveira Braga, mestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade pela Universidade Veiga de Almeida e membro do Corpo Freudiano do Rio de Janeiro.

Ele explica que ocorreu um processo de “subjetivação” do Direito nas últimas décadas: “Reforçou-se a defesa do desejo e do afeto, que urgem ser vistos e ouvidos. Os juristas batem à porta da psicanálise para sustentar seu libelo contra o preconceito, a exclusão e as verdades fundamentalistas. Por isso, a psicanálise fundada na ética da alteridade e do desejo vem sendo cada vez mais convocada pelo Direito para a melhor compreensão das manifestações psíquicas do sujeito em suas relações com o outro na sociedade”.

O exemplo mais marcante da definição de Braga pôde ser observado, nos últimos anos, no Direito de Família. Com os debates sociais, o afeto foi elevado à condição de princípio jurídico oriundo da dignidade da pessoa humana e prevalece hoje como definidor do conceito familiar sobre os laços sanguíneos nas decisões judiciais.
 
Psicanalista, doutora em Direito Civil e diretora nacional de relações interdisciplinares do Instituto Brasileiro de Direito de Família (Ibdfam), Giselle Groeninga destaca contribuições da psicanálise para a área: “Uma é a noção de que a família é um sistema de relações complementares e também inconscientes. E que a parentalidade é, assim, necessariamente complementar. De acordo com esse conceito, o que acontece com um dos integrantes de uma família, mesmo que o casal esteja separado, necessariamente afetará os demais, sobretudo os filhos. Outra contribuição é a ideia de que o inconsciente está presente em todas as pessoas, e nem sempre há uma intencionalidade consciente em magoar, ferir, excluir. Assim, devem ser compreendidos, por exemplo, os casos de tentativa de alienação parental, ou mesmo situações mais difíceis, como as denúncias de abuso sexual. A terceira contribuição diz respeito à grande mudança de paradigma do conceito da culpa para o da responsabilidade”.

Para Julio Braga, é natural ao Direito buscar um olhar mais amplo sobre as diferentes realidades de pensamento. “Os aportes da sociologia, da antropologia e, principalmente, da chamada filosofia das diferenças, em que os afetos, a liberdade, o deslocamento crítico dos poderes e a singularidade do sujeito, são o foco. Quanto mais amplo, profundo e sensível for o olhar do advogado para o outro, a partir da interdisciplinaridade, melhor será a sua atuação e seu reconhecimento profissional”. 

Professora de Direito Constitucional, Direito Educacional e Biodireito Constitucional na PUC/SP, Maria Garcia sentiu necessidade de criar o curso de pós-graduação em psicologia jurídica na instituição por considerar a formação tradicional deficitária para a compreensão da conduta humana. Especializada em análise transacional, método criado em 1956 pelo psiquiatra Eric Berne para estudar as trocas de estímulos, ou transações, entre indivíduos, Garcia também pesquisa a psicanálise à luz da hermenêutica, dando palestras sobre o quanto a subjetividade interfere na interpretação das normas jurídicas por parte dos agentes da Justiça.

“O Direito é, por sua natureza, interdisciplinar. Assim como a psicologia estuda a conduta humana para poder explicá-la, o Direito deve estudar para regulá-la. Meu trabalho foi voltado a trazer essa matéria para o mundo jurídico a fim de compreender melhor o ser humano. Afinal, o juiz, o advogado, o promotor são seres humanos. Tanto o autoconhecimento quanto o conhecimento sobre o outro ajudam o profissional no distanciamento para decisões e análises justas, na comunicação, na compreensão das decisões dos juízes”, acredita a professora, contando que há especializações em psicanálise social voltadas a quem não é profissional da área e não está interessado em se qualificar para clinicar, apenas em expandir seus conhecimentos.

Giselle Groeninga explica que a antiga visão puramente objetiva do Direito fazia parte de um estigma criado em torno das ciências humanas: “Há algum tempo, as ciências humanas sentiam-se diminuídas em relação às exatas, como se estas pudessem se aproximar mais da verdade. Ou, ainda, como se as exatas oferecessem uma ‘certeza’ que, de certa forma, aliviaria as angústias inerentes ao complexo fenômeno humano. Neste caminho, curiosamente, as ciências humanas foram se ‘desumanizando’. Mas, na realidade, o Direito, como não poderia deixar de ser, tem raízes e intersecções com a filosofia, a sociologia, a antropologia, a psicologia e com a psicanálise”.

Para a psicanalista, não há como desassociar as duas formas de pensar: “A dicotomia objetivo versus subjetivo, que vigia em tempos anteriores à interdisciplinaridade, acabava por mutilar o próprio objeto e objetivo do Direito. Buscar a objetividade deve, necessariamente, passar pela compreensão da subjetividade — que constitui cada indivíduo — e da intersubjetividade construída nas relações. Ou seja, a objetividade das normas do Direito nasce da intersubjetividade das relações. Vale dizer o mesmo da relação do Direito com as disciplinas humanas. Sua objetividade só pode estar calcada na combinação de conhecimentos das angústias e questões existenciais, do conhecimento de aspectos que tocam as relações e os indivíduos, que são abordados pela sociologia, pela antropologia e pela psicanálise”.

Presidente da Comissão de Segurança Pública da Seccional, Breno Melaragno conta que a utilização de conceitos dessas matérias na área criminal é muito comum. “Temos no Direito Penal um princípio chamado adequação social, aplicável a uma determinada conduta que na lei é considerada criminosa, mas que a sociedade, no cotidiano, acaba aceitando com naturalidade. Essa aceitação da sociedade é abraçada pelo sistema penal”.

Ele dá como exemplo o fato de, até 2009, o funcionamento de casas de prostituição ser crime previsto em lei. “Digo até 2009 porque após a reforma do Código Penal há discussões sobre a descriminalização da conduta. Mas até então a lei era clara. Porém, não havia reprovação suficiente no meio social que demandasse uma resposta do Estado. As pessoas sabiam onde ficavam as casas de prostituição e quase nunca o sistema penal intervia, a não ser por motivos pontuais específicos”, observa, citando também a adequação social ao adultério, que só foi descriminalizado em 2005. “A traição que envolve sexo fora do casamento é considerada reprovável? É. Mas o Judiciário, se ocorrendo da sociologia, viu que não era reprovável suficiente para criminalizar”.

Segundo Breno, o Direito Penal faz uso de princípios da sociologia e da antropologia para questionar se o que o Legislativo impôs como crime merece uma reprovação efetiva do sistema jurídico: “Nós nos baseamos no conceito de que para merecer uma reprimenda criminal uma conduta tem que atingir o direito de outra pessoa”.

O criminalista afirma que, para a área, também é essencial o conhecimento da psique humana: “Existem também práticas que deixam o cliente à vontade, criam confiança para poder estabelecer o elo tão importante com o advogado para que conte toda a verdade. Mas essas noções sobre comportamento são importantes também para lidar com o juiz, com o promotor. As pessoas têm diferentes histórias de vida e, consequentemente, diferentes concepções. Quanto mais você souber, palpar essa estrutura da personalidade do juiz, perceber o que o toca, melhor será para você atingir os seus objetivos”.

Maria Garcia aponta o crescimento da adoção de métodos alternativos de resolução de conflito como mais um exemplo da aplicação da multidisciplinaridade no campo prático do Direito: “O Direito Processual está mudando. Percebemos que aprendemos na faculdade a brigar, a conflitar, a ir à Justiça, e agora há toda uma mudança de paradigma que inclui a conciliação e mediação como opções”.

Presidente da Comissão de Mediação da OAB/RJ, Samantha Pelajo explica que o próprio conceito do método tem como aportes a multidisciplinaridade e a união entre objetividade e subjetividade: “Quando a Escola de Negociação de Harvard começou a pensar a mediação, considerou o seguinte: as negociações eram muito ruins, porque ou as pessoas priorizavam o bem em disputa – e as relações pessoais se destruíam – ou buscavam preservar as relações e acabavam ficando tão insatisfeitas objetivamente que, com o tempo, a própria relação não se sustentava”.

Para a prática, ela destaca a importância das noções de psicologia: “Na área de família, por exemplo, as relações vão se desgastando, o que prejudica a interação. Não necessariamente o problema é a atitude, a postura, a fala de uma pessoa, mas como a outra interpreta. A primeira coisa que fazemos então é ajudar a limpar essa comunicação, ajudar as partes a compreender quais são seus interesses, e depois ajudar a pensar em uma multiplicidade de alternativas para dar conta deles. É aí que a mediação difere da advocacia tradicional, pois para isso não podemos ouvir com o filtro do que é juridicamente relevante, mas do que é relevante para as necessidades particulares daquelas pessoas”.

Samantha também cita a contribuição da filosofia para o método, através da maiêutica socrática – que consiste em uma série de perguntas para que as pessoas cheguem às suas próprias conclusões – e o aporte da sociologia pela ideia de pertinência, ou seja, de que ninguém é sozinho no mundo: “Nossas alianças, nossos colegas de trabalho, a melhor amiga, a mãe, a tia, podem estar de alguma forma inseridos em nossas relações. E isso é levado para nosso método”.

Segundo ela, que atua na área de família, há muitos casos de pessoas que abandonam o processo no meio por conseguirem enfim se comunicar nas audiências. Segundo Julio Braga, mudanças de rumos de clientes acontecem também na advocacia tradicional quando é desenvolvida a sensibilidade: “Não se trata de atuar como psicanalista no escritório, mas de, por meio de uma postura ética, diferenciada pela psicanálise, produzir um efeito analítico que leve o cliente à possibilidade de trilhar um novo caminho, menos doloroso”.
“O mundo vive em permanente transformação”, completa Andréa Pachá. “Faz sentido que o Direito e a Justiça se conectem com as transformações que o mundo experimenta”. 
 

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