16/12/2016 - 14:03

COMPARTILHE

Se Vossa Excelência me permite...

16/12/2016 - 14:03

Se Vossa Excelência me permite...

JOÃO MAURÍCIO MARTINS DE ABREU*
 
Não é do óbvio que vamos tratar aqui. Todos sabemos que atrás do que parece o simples zelo com o nó da gravata de um advogado existe, na maioria das vezes, uma mensagem linguística de distinção social; a mesma mensagem que povoa, silenciosamente, o uso de expressões latinas, que só os iniciados compreendem (ou não); a mesma que determina os mais diversos padrões de comportamento. O mínimo de observação permite reconhecer o óbvio: que os signos mais marcantes da linguagem jurídica inclinam-se para a reprodução de hierarquias, internas e externas ao campo jurídico: traços aristocráticos de velada aversão ao mais raso valor do republicanismo, a isonomia.

É preciso lutar pela conquista de todos os espaços que, teimosamente, continuam habitados por esses valores aristocráticos. E os signos da linguagem jurídica merecem a fixação de uma trincheira. Pois no discurso aparentemente republicano de juízes que exijam ser chamados de “Excelências”, por exemplo, a única verdade social que grita é a do pronome de tratamento.

Existe uma imagem de alegria, cultivada no ideário dos estudantes de Direito desde o início da faculdade, que alimenta o desejo de distinção social: primeiro, distinção da massa trabalhadora – papel que a vestimenta típica, os salões frequentados, o vocabulário hermético e os assuntos bacharelescos passam aos poucos a desempenhar com eficiência; posteriormente, distinção dentro do próprio campo jurídico, cujo motor Pierre Bourdieu, sociólogo francês, indica como sendo a luta silenciosa pela última palavra sobre o Direito, o certo e o errado, que se reflete nos signos linguísticos.

Basta, contudo, uma geração fazer diferente. Definitivamente diferente, melhor dizendo, porque o caminho já está em parte facilitado: o aumento exponencial do número de bacharéis em Direito, que tem aspectos negativos, ao menos vem tornando menos estanques os padrões de comportamento e os desejos dos que habitam o campo jurídico. Mas quantos de nós ainda se alegram com a imagem de algo que nos distinga, de antemão, dos demais!

Seguem algumas propostas para reflexão e desenvolvimento.

Para combater o desejo de distinção em relação aos não bacharéis, principalmente em relação à massa trabalhadora, haverá uma verdadeira mudança de rota: 1 – quando buscarmos, majoritariamente, escrever e falar de forma inteligível a qualquer pessoa minimamente instruída: o esforço sincero em fazer-se compreender é uma demonstração de respeito e uma forma de implicação dos verdadeiros sujeitos de direito (os cidadãos) nos processos de luta por seus próprios direitos e de reconhecimento de seus deveres; 2 – quando soubermos, majoritariamente, ouvir com atenção, olhar nos olhos e ponderar as razões não técnicas, o sofrimento e as angústias de quem discute questões jurídicas conosco; de quem nos contrata como advogados ou de nossos adversários; de quem depõe em audiência que presidimos como juízes; de quem noticia um crime à nossa frente como delegados ou promotores etc: o esforço sincero em buscar compreender razões, sofrimento e angústias dos cidadãos, mesmo que seja para posteriormente discordar ou denegar o que pretendem, deveria ser simples reflexo do caráter de serviço próprio de qualquer atividade jurídica; 3 – quando oferecermos a todos o mesmo respeito que exigimos que tenham conosco: esforço de reconhecimento da impessoalidade do valor básico igual de todos os seres humanos; 4 – quando nada além de nos vestirmos com sobriedade for considerado importante em termos de aparência; 5 – quando, principalmente, cuidarmos de nossa formação técnica e humana não só para sermos bem-sucedidos profissionalmente, mas em especial pelo reconhecimento da gravidade social do trabalho que prestamos, equivalente à de médicos, psicólogos, professores primários, engenheiros etc: uma causa mal defendida, um cliente enganado, uma prisão precipitada, uma acusação sem indícios de crime, uma sentença feita de qualquer jeito, uma notícia-crime, de violência doméstica por exemplo, ignorada... Tudo isso repercute contundentemente e de forma direta na vida das pessoas atingidas e também, por acúmulo e repetição, no descrédito que a sociedade aos poucos vai atribuindo aos profissionais e às instituições.

Para combater o desejo de distinção entre os próprios bacharéis, ou seja, o desejo de distinção interna ao campo jurídico, que se reflete na nossa linguagem, teremos dado um grande passo: 1 – quando majoritariamente praticarmos e aceitarmos, como tratamento comum dado aos profissionais ou bacharéis, ser chamados simplesmente de doutor(a) ou senhor(a), sem distinção ligada a uma ocupação ou profissão eventual: excelência e excelentíssimo, ilustre e ilustríssimo, eminente e eminentíssimo – assim como, por razões correlatas, egrégio, colendo e excelso tribunal; respeitável sentença e venerando acórdão etc. – tudo isso são palavras sem valor quando vulgarizadas e, o que é pior, palavras barrocas mal empregadas, que desviam o olhar do que é realmente importante: a comunicação com respeito, verdade e eficiência; 2 – quando, mais especificamente, todos os juízes forem apenas juízes, e não ministros e desembargadores: afinal, a função de todos é judicante, não mais do que judicante; 3 – e, principalmente, quando não nos deixarmos levar por causas externas, normalmente ligadas ao desejo de reconhecimento alheio, para decidir que rumos e atividades seguir na militância do Direito: todas as opções têm alguma contribuição a oferecer e o mais importante é que haja mais alegria do que tristeza no caminho que abraçamos; só assim estaremos seguros de fazer bem a nós mesmos e aos outros; só assim subverteremos essa irracional competição por triunfo, ou por uma imagem preestabelecida do que é triunfar, que desconsidera o fato social de que ninguém profundamente infeliz e frustrado pode servir e atuar bem na esfera pública da vida.

É certo que, assim como acontece quando nascemos e encontramos uma língua com gramática e usos consolidados, o bacharel em Direito também encontra tradições, práticas, valores e hierarquias estabelecidos quando se forma. No entanto, a própria mobilidade da língua materna e, mais genericamente, da história, da qual participamos todos os dias, ensina que nada é para sempre. Basta uma geração fazer diferente, definitivamente diferente. Não é trabalho para heróis solitários; é trabalho coletivo para aqueles que sabem gozar a alegria serena da isonomia. E ainda será muito pouco.
 
*Advogado, mestre em Sociologia e Direito pela UFF; doutorando em Direito na PUC-Rio

 

Abrir WhatsApp