16/12/2016 - 14:01

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Representação feminina na política do Brasil

16/12/2016 - 14:01

Representação feminina na política do Brasil

PAULA HELENO VERGUEIRO*
 
Já com a versão original deste artigo praticamente pronta, dou de cara com matéria veiculada na edição brasileira digital do periódico El País, dia 30 de novembro, acerca do “papel cada vez mais ativo das mulheres no Brasil”.

As primeiras linhas do texto reportam que a população feminina em nosso país supera 105 milhões de pessoas e que só no corrente ano a massa de renda das mulheres deve atingir R$ 1,584 trilhão, o que equivaleria ao PIB da Suécia ou da Bélgica. A matéria ressalta, ainda, que na última década a massa de renda das mulheres teve um aumento da ordem de 83%, enquanto a dos homens atingira meros 45%.

Diante do tom superlativo adotado, a conclusão do autor não poderia ser outra: “Estes dados refletem o protagonismo inédito que as mulheres assumiram no Brasil, do ponto de vista econômico e social, a ponto de modificar o curso de decisões políticas. Basta ver como o protesto feminino contra o ministério inicial de Michel Temer, composto somente por homens, fez com que ele recuasse, buscando integrantes do sexo feminino. Ou o papel do protesto feminino para elucidar um caso de estupro coletivo no Rio de Janeiro neste ano”.

A leitura crítica me levou ao primeiro questionamento: esse jornal quer me fazer crer que, diante de todos os tormentos suportados por nós durante os últimos 11 meses, o ano de 2016 foi diferenciado e particularmente positivo justo na histórica condição de aviltamento e inferioridade da mulher no contexto social?

Resolvi voltar ao texto que começara a escrever dias antes e, guiando-me pela frase “A raiva é a pólvora, a organização a faísca”, proferida em uma assembleia de mulheres na Argentina à época do movimento Ni una menos, em que nossas irmãs protestaram contra o feminicídio naquele país – dessa vez tragicamente ilustrado pelo assassinato da jovem Lucía Pérez, de 16 anos, depois de drogada e estuprada –, rearrumei algumas das ideias ora apresentadas.

Tudo começa no princípio constitucional da isonomia. Na obra fundamental O princípio da isonomia e a igualdade da mulher no Direito Constitucional, o professor Carlos Roberto Siqueira Castro assinala que “em sintonia com a universal preocupação acerca do problema jurídico da igualdade entre os seres humanos, que de certo modo tem sido uma vocação humanista do corrente século, sobretudo após a Segunda Grande Guerra, a quase totalidade das constituições contemporâneas dedica um ou mais dispositivos à infindável questão da isonomia, muitas vezes com espantosa explicitude no aspecto que ora mais de perto nos interessa, a ponto de exigir a igualdade absoluta de direitos entre homens e mulheres em todos os setores da vida social ou, quando menos, proibindo solenemente discriminações legislativas por motivo de sexo. É certo, todavia, consoante temos assinalado ao longo deste ensaio, que a ordem jurídica, mesmo a constitucional, não tem conseguido eliminar, ou evitar, as tremendas distorções socioculturais que tanto prejudicam a efetiva emancipação da mulher no convívio social”.

A isonomia constitucional somente atingirá a desejada concretude se for compreendida e experimentada em sua integralidade, ou seja, nos planos formal e material. A letra da garantia do tratamento igualitário de nada vale se a prática social não nos poupa de cenas diárias dos tipos mais cruéis de violação às mulheres e a seus direitos. Essa isonomia manca não nos serve.

Os números grandiosos reproduzidos no início, a meu ver, falam a essa isonomia capenga, falam à forma e não à substância. Comemorar que somos mais em um ou outro espaço, ou até mesmo em todos, traduz-se em tolice diante da perpetuação da multiforme discriminação imposta a nós ao longo de todos os tempos. Trata-se de um feminismo ingênuo que, mesmo bem-intencionado, é descuidado quanto à necessidade de modificar a estrutura social na qual, ainda hoje, há lugar para preconceitos sexistas.

Esse feminismo ingênuo, ao mesmo tempo em que nos conforta diante de números que atribuem às mulheres um grau de autonomia que em verdade não possuímos, por outro lado parece nos colocar forçosamente em constante posição de confronto com os homens (e o resultado desse choque todas nós sabemos). Tudo isso nos afasta do principal: há diferentes níveis de frequência e de intensidade nos comportamentos que podem ser encontrados nos dois sexos. O meio histórico-social é que determinará o grau de opressão à mulher.

Nossa sociedade, em moldes capitalistas e altamente competitiva, estruturalmente recalca a mulher. Ao contrário, em um contexto favorável à cooperação, a mulher seria valorizada. Assim, ao invés de nos seduzirmos diante de meras ilusões trazidas pelas estatísticas e até mesmo pelos casos em que mulheres, ao transigir com valores machistas, deixam-se derrotar como mulheres, para poder “vencer” e ocupar cargos de destaque na política, nas esferas executiva, legislativa e judiciária, penso que podemos direcionar nossa inesgotável energia em ações que, diante da realidade socioeconômica e sob uma perspectiva libertária mais ampla, rompam efetivamente com esse quadro secular de rebaixamento injustificável das mulheres.

Essas ações já ganham vida em algumas partes e o exemplo mais recente e notável foi a greve de mulheres promovida na Polônia e na Argentina durante o último outubro. Na Polônia, mulheres decretaram greve geral para protestar contra um projeto de lei que limitaria as possibilidades de aborto legalmente permitidas. Na Argentina, o Ni una menos convocou a greve de mulheres, que deveriam parar seus trabalhos nas fábricas, empresas, bancos, casas, para protestar contra a morte violenta de Lucía Pérez e mais três jovens.

Nesses países, fica evidente que as mulheres não ficaram satisfeitas em meramente contemplar os dados de nossa superioridade numérica quanto à força produtiva, mas os utilizaram de maneira eficiente e transformadora, o que se deduz de um único cartaz exibido nas ruas de Buenos Aires com os dizeres: “Se a minha vida não vale que produzam sem mim”.

No campo legislativo, ações até mesmo mais eficientes para garantir a igualdade material de mulheres e homens do que as leis que buscam nossa maior representação numérica em cargos do Executivo, do Judiciário e, sobretudo, do Legislativo, já contam com exemplos no Brasil. São os casos (i) da Lei Complementar 150/2015, sancionada com o fim de regulamentar a EC 72/2013, que alterou a redação do artigo 7º da Constituição para garantir igualdade de direitos a trabalhadores domésticos e os demais trabalhadores urbanos e rurais – ora, sabe-se que a enorme maioria dos trabalhos domésticos é exercida por mulheres, muitas das quais sustentam sozinhas suas famílias –; e (ii) da Lei 11.977/09, que dispõe sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV) e a regularização fundiária de assentamentos em áreas urbanas. O art. 35 já determinava que os contratos e registros efetivados no âmbito do PMCMV deveriam ser formalizados, preferencialmente, em nome da mulher. Tal iniciativa, inclusive, teve inspiração nos títulos de posse que eram concedidos a mulheres no programa de regularização fundiária adotado durante governos de Leonel Brizola no Rio de Janeiro.

Em conclusão, menciono meu ponto de convergência com a matéria citada no início, que se relaciona com o caso de estupro coletivo ocorrido este ano no Rio de Janeiro, elucidado pela destemida delegada de Polícia Cristiana Bento, a quem presto uma singela homenagem ao dedicar-lhe este artigo, o que faço também à jovem Lucía Pérez.
 
*Conselheira da OAB/RJ, diretora de Eventos e membro das comissões OAB Mulher e de Direito Constitucional

 

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