13/12/2013 - 16:04

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Vidas privadas, públicos direitos

13/12/2013 - 16:04

Vidas privadas, públicos direitos

MIGUEL SOUSA TAVARES*

A controvérsia que eclodiu no Brasil a propósito da biografia de Roberto Carlos, contendo, presumidamente, factos sobre a sua vida privada cuja divulgação ele não promoveu nem consentiu, é parte de um debate mais amplo e recorrente sobre um conflito de direitos clássico: o direito à informação e o direito à privacidade. Encontrar uma fórmula jurídica que resolva de vez este conflito, e em termos que sejam justos e equilibrados para ambas as partes, não é tarefa fácil, mas é, sem dúvida, uma questão apaixonante.
 
No Direito português, a solução está aparentemente contida no artigo 26 da Constituição da República, quando se diz que “a todos é reconhecido o direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar”. Ao dizer “a todos”, a Constituição está expressamente a não excluir ninguém, incluindo as chamadas “figuras públicas” (melhor se diria até, “sobretudo as figuras públicas”, pois que estas já têm a suas vidas demasiado expostas só por o serem). Aliás, se não dissesse “a todos”, a lei estaria a violar um princípio fundamental de qualquer sociedade democrática: o de que todos são iguais perante a lei – nos deveres e nos direitos. Durante muito tempo, a jurisprudência dos tribunais portugueses entendeu o direito à privacidade como um direito absoluto ou quase, prevalecendo sobre o direito à informação. E foi só recentemente, ao importar a jurisprudência do Tribunal Europeu (fonte de Direito português, por força dos tratados da União Europeia), que os tribunais portugueses começaram a rever a sua doutrina, face à doutrina mais flexível do Tribunal Europeu. Mas isso, no que tem que ver com as relações entre a liberdade de imprensa e o direito à privacidade. Porque a questão, que eu saiba, nunca extrapolou dos conflitos surgidos na imprensa para os que podem decorrer da escrita de uma biografia. Essa é matéria virgem por aqui. 
 
Porém, é preciso reflectir sobre o que será justo. Desde logo, reconheço, sem esforço, que uma biografia não autorizada, não garantindo, de per si, a verdade do que é contado, tem, todavia, o potencial de estar mais próxima da verdadeira história e de ser bem mais interessante como leitura do que uma biografia feita daquilo que convém ao biografado que se saiba. Mas também afasto à partida o argumento do “interesse do público” como justificação para concluir que qualquer biografia é legítima. O “interesse do público” não justifica, por si, coisa alguma: entregue a si mesmo, podendo escolher, não duvido que o interesse do público, ou de grande parte dele, seja o de seguir as chamadas figuras públicas até dentro das suas casas, das suas camas, da sua intimidade. Mas, se esse é o interesse do público, não é o interesse público – coisa diversa, muitas vezes até oposta, e que, ele sim, é a única razão que pode legitimar a violação da privacidade alheia. Isto parece-me óbvio, mas não é, porém suficiente. Nem suficiente, nem, muitas vezes, fácil de distinguir.
 
Tomemos, por exemplo, a biografia da grande escritora francesa Marguerite Duras, escrita por Laure Adler. A biógrafa, jornalista e amiga pessoal da escritora, começou a redigir a biografia em colaboração com ela e, nessa fase, Duras não se importou que ela relatasse que aos 15 anos de idade, na Indochina francesa, tinha sido prostituta privada de um rico chinês. Aliás, essa adolescência exótica e totalmente fora dos cânones morais da época agradava à imagem que Duras gostava de dar de si e que ela própria descreveu no sublime romance O amante. Mas, quando a biógrafa descobriu e desenterrou a sórdida história em que Duras fora também amante do oficial alemão que prendera, interrogara e enviara o seu marido para um campo de extermínio na Alemanha, durante a ocupação de Paris, aí a escritora mudou de atitude, cortou relações com Laure Adler e só não proibiu o livro porque certamente não o conseguiu. Quid juris? Eu, pessoalmente, considerando a importância que Duras teve na literatura universal, a testemunha que ela foi de tempos de escolhas éticas determinantes, julgo que a biografia completa e não autorizada dela foi um contributo fundamental para melhor compreender a personagem e mesmo a escritora. Se o livro tivesse sido proibido, teria sido um crime de ocultação da verdade.
 
A minha conclusão então, é de que não é possível estabelecer uma regra que seja universal e adequada a todos os casos. Em última instância, caberá a um juiz decidir, caso a caso, mas tendo sempre em conta a distinção fundamental entre o que é interesse público e o que não passa de interesse do público. Nem tudo a lei pode resolver: em muitas situações, o senso comum, a sensibilidade do julgador e a capacidade de se meter na pele dos dois lados em confronto são mais importantes do que qualquer esforço legislativo para encontrar uma solução perfeita.
 
*Advogado, jornalista e escritor
 
 

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