03/08/2018 - 20:59

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Futebol como patrimônio cultural

03/08/2018 - 20:59

Futebol como patrimônio cultural

Futebol como patrimônio cultural

 

Flávio Ahmed*

 

 

A OAB/RJ, através de sua Comissão de Esporte e Lazer, iniciou este ano uma campanha pela paz nos estádios de futebol, num movimento contra a violência propiciada pelas torcidas organizadas.

 

Dispomo-nos aqui a, com base nessa louvável iniciativa, demonstrar a interface que o direito ao ambiente possui com o futebol, não só como um elogio ao intento, mas destacando a sua amplitude, eis que encerra, em seu conteúdo, o livre exercício do direito do desporto, o direito do torcedor, o direito ao consumo desse bem indispensável à qualidade de vida nas nossas cidades e essencial ao exercício do lazer como direito social, conforme consagrado no art. 6º da Constituição.

 

Para Joffre Dumazedier, o lazer decorrente de um tempo livre constitui "um novo valor social da pessoa que se traduz por um novo direito social, o direito de ela dispor de um tempo cuja finalidade é, antes, auto-satisfação", e que consiste em item essencial à sadia qualidade de vida.

 

O legislador constitucional, por sua vez, erigiu o meio ambiente em diversas dimensões, de forma holística e plúrima, contemplando o meio ambiente do trabalho, o artificial, o patrimônio genético (não só o DNA, mas a tutela da biodiversidade) e o cultural.

 

Comentando o art. 216, da Constituição Federal, José Eduardo Ramos Rodrigues assinalou que "não se discute mais se o patrimônio constitui-se apenas dos bens de valor excepcional ou também daqueles de valor cotidiano;(...) se dele faz parte a cultura erudita ou também a popular (...). Todos esses tipos de bens acima citados estão incluídos no patrimônio cultural brasileiro, desde que sejam portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores nos exatos termos constitucionais."

 

Os direitos culturais possuem, por sua vez, característica dinâmica, materializam-se nas garantias e acesso a bens materiais e imateriais para se viver.

 

Assim, assegurar ao cidadão o direito ao meio ambiente cultural, ao meio ambiente sadio e à qualidade de vida, numa perspectiva plural e cidadã, significa proporcionar acesso aos bens culturais em toda sua significação. 

 

O bem ambiental cultural, bem de uso comum do povo, conforme a dicção do art. 225 da Constituição Federal, vem expressado, via de regra, na cultura indígena, na cultura quilombola, nas manifestações religiosas, em modos de fazer, como o queijo minas, em manifestações culturais como o samba de roda, o carnaval carioca e, é claro, no futebol, inserindo-se a tutela do futebol também na perspectiva da tutela do patrimônio cultural.

 

Celso Fiorillo (A tutela jurídica do desporto vinculada ao meio ambiente cultural e o Estatuto de Defesa do Torcedor - Lei nº 10.671/2003) destacou que, "como recreação, passatempo, lazer, o desporto, embora explicitamente tratado no art. 217 da Constituição Federal, passou a ter natureza jurídica de bem ambiental a partir de 1988, por se encontrar claramente integrado ao conteúdo do art. 216 como importante forma de expressão (art. 216, I), portadora de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. O desporto faz parte, em síntese, do patrimônio cultural brasileiro (art. 216, caput da Constituição Federal)". Ainda assinala ser dever do Estado proporcionar não só o acesso a tal bem, como seu uso incólume, o que não acontece quando pessoas são agredidas fisicamente em brigas de torcidas, sendo a segurança um dever do Estado.

 

No mesmo sentido, manifestou-se o promotor Marcos Paulo de Souza Miranda, para quem "algumas práticas desportivas podem ser inseridas entre as formas de expressão do povo brasileiro, como, por exemplo, o futebol", e para tanto, reporta-se ao acórdão do TRF-1 no Ag.1998.01.00.057324-DF (J. 14.12.1999).

 

O STJ, em voto da ministra Eliana Calmon (REsp 1041765-MG), embora reconhecendo o caráter exclusivamente financeiro da pretensão envolvendo determinado clube, reconheceu o futebol como expressão do patrimônio cultural, sendo “de interesse indisponível não só aos amantes do esporte, mas de toda a sociedade”.

 

Evidencia-se que tal manifestação da cultura (com origem alienígena, mas que adquiriu contornos especiais no nosso país) exige uma ação do Estado apta não só a assegurar sua realização, mas a adequada realização, de forma que seja fonte de cidadania, com pleno uso por parte de todos. A atuação da OAB/RJ, junto à Federação de Futebol do Estado do Rio de Janeiro (Ferj), premiando as Torcidas Legais revela-se, sobretudo, um gesto de cidadania, em prol da dignidade da pessoa humana.

 

* Presidente da Comissão de Direito Ambiental da OAB/RJ


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