13/06/2016 - 14:21

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Sociedade em rede... cortada

13/06/2016 - 14:21

Sociedade em rede... cortada

Após resistência popular à proposta de operadoras de internet banda larga fixa de estabelecer planos com franquias limitadas, especialistas na área de tecnologia rebatem alegações de esgotamento da rede e afirmam: medida contraria o Marco Civil da Internet e o Código de Defesa do Consumidor
 
CASSIA BITTAR
Tida como elemento essencial da chamada sociedade da informação, a internet – e o acesso a ela – foi pauta constante nos últimos meses, após o anúncio de que algumas operadoras de banda larga fixa – utilizada em residências, comércio e nas redes de WiFi – passariam a adotar o sistema de franquia de dados para seus serviços. O novo modelo de contrato de banda larga seguiria a mesma lógica aplicada hoje na rede móvel, nos celulares, prevendo que a velocidade da internet seja cortada ou reduzida ao atingir o limite de dados contratados no plano, ou a cobrança pelos dados excedentes.

A medida já vinha sendo praticada por algumas operadoras, com aval da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), que regulamentou o modelo ainda em 2013, na Resolução 614. Porém, após uma delas comunicar que aplicaria as novas regras em seus contratos feitos a partir de 5 de fevereiro deste ano, a questão repercutiu.

O debate se acirrou após o presidente da Anatel, João Rezende, afirmar, em abril, em uma coletiva de imprensa, que as empresas, ao longo do tempo, “deseducaram” os consumidores, por oferecer internet sem limite de utilização. Na ocasião, ele criticou a comunicação das operadoras com os clientes no sentido da falta de informação sobre o consumo diário, e disse que as empresas cometeram há alguns anos um “erro estratégico” ao não avistar as consequências do crescimento do uso da internet no Brasil: “Percebemos um avanço progressivo no acesso e é evidente que, em algum momento, esse modelo de negócios aconteceria, assim como ocorreu no serviço ilimitado em voz”.

Gerando revolta em usuários da rede, que criaram, inclusive, memes ridicularizando a fala de Rezende, o presidente da Anatel citou ainda os jogos online para justificar a cobrança. “Tem gente que adora, fica jogando o tempo inteiro e isso gasta um volume de banda muito grande. É evidente que algum tipo de equilíbrio há de se ter porque, senão, teremos o consumidor que consome menos pagando por aqueles que estão consumindo mais”, declarou ele, na ocasião.

A partir daí, a resistência à mudança ganhou corpo, com intervenções do Conselho Federal da OAB, de ativistas digitais, entidades de defesa do consumidor e até setores do governo. Internautas promoveram um “reclamaço” à Anatel no site Reclame aqui, criaram, no Facebook, a página Movimento Internet Sem Limites, e promoveram diversos abaixo-assinados online. O que teve mais adesões, do site de petições Avaaz, contava, até o fechamento desta edição, com 1,6 milhão de assinaturas. Os organizadores pretendiam apresentar o documento às empresas, à própria Anatel e ao Ministério Publico Federal.

A OAB Nacional enviou ofício a Anatel questionando a Resolução 614/2013: “A posição da Ordem é de absoluta contrariedade à resolução. São leis federais [Marco Civil da Internet e Código de Defesa do Consumidor] que estão sendo descumpridas e desrespeitadas”, afirmou o presidente Claudio Lamachia, em entrevista, observando que o prejuízo com a limitação não ficaria restrito ao entretenimento, atingindo o desenvolvimento social e a educação, e que a OAB estudava ir ao Judiciário caso não houvesse resposta da agência.

A resposta veio logo em seguida: após proibir as operadoras de adotar a prática por um período de 90 dias, enquanto seu conselho estudava a questão, a Anatel determinou que a proibição seria mantida por tempo indeterminado. Porém, em evento do qual participou no dia 2 de junho, Rezende voltou a se manifestar, afirmando que a agência não iria regular ou controlar os modelos de negócio das prestadoras de acesso à internet pois, nas palavras dele, “a legislação não impede que as empresas limitem o consumo de dados e também não interfere em decisões estratégicas”.

Em nota enviada à TRIBUNA por sua assessoria de imprensa, a agência informou, porém, que nenhuma decisão oficial foi tomada. A pauta está com o conselho diretor da entidade, que analisará a questão com base nas manifestações recebidas. Até a conclusão desse processo, as prestadoras não poderiam reduzir a velocidade, suspender o serviço ou cobrar pelo tráfego excedente nos casos em que os consumidores utilizarem toda a franquia contratada, “ainda que tais ações estejam previstas em contrato de adesão ou plano de serviço”.

A nota salienta que a Anatel “acompanha constantemente o mercado de telecomunicações e considera que mudanças na forma de cobrança – mesmo as previstas na legislação – precisam ser feitas sem ferir os direitos do consumidor, razão pela qual proibiu qualquer alteração imediata na forma de as prestadoras cobrarem a banda larga fixa”.

Apesar da temporária tranquilidade no debate, estão sendo promovidas desde então audiências públicas para tratar da questão no Senado Federal, na Câmara dos Deputados e em diversos órgãos ligados a direitos do consumidor e tecnologia da informação. 

A presidente da Comissão de Direito e Tecnologia da Informação da OAB/RJ, Ana Amelia Menna Barreto, considera importante a manifestação sobre o tema para que a Anatel reveja seu posicionamento e se molde ao Marco Civil da Internet, mas pondera que a ação por parte das operadoras já poderia ter sido prevista há mais tempo.

“As empresas resolveram agora exercitar o que já estava regulamentado desde 2013. A Anatel permite essa possibilidade, as operadoras têm esse respaldo. As manifestações deveriam estar sendo feitas há três anos”, observa.

Na visão do pesquisador em Telecomunicações do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Rafael Zanatta, as empresas realizaram uma espécie de “experimento” com os clientes, propondo, ao mesmo tempo, a mudança no modelo: “Acredito que testaram a reação das pessoas. E de forma muito positiva a reação foi grande, tanto por parte dos consumidores como da sociedade civil. A repercussão foi enorme e acho que ficou claro para as empresas que essa é uma má ideia, porque não tem fundamento. As pessoas não compraram a argumentação de que se beneficiariam com preços mais baixos”.

Após a segunda declaração de João Rezende demonstrando a tendência de manter a Resolução 614, que dá liberdade às operadoras de decidirem os modelos de plano, a OAB Nacional voltou a se manifestar, afirmando que judicializaria a questão. “Em vez de proteger o usuário, a Anatel age como um sindicato das empresas de telecomunicação”, disse Lamachia, reforçando a intenção da Ordem de levar o tema à Justiça, e também de entrar com uma representação no Congresso Nacional contra Rezende, por suas falas.

Para Zanatta, a proposta das empresas de internet é “ousada”: Chega a assustar, diz, “como elas propuseram franquias tão baixas, entre 10GB a 30GB por mês. Considerando que assistir a um vídeo de alta resolução, por exemplo, consome, no mínimo, 1GB por hora, em um plano compartilhado pela família seria inviabilizado esse consumo”.
 
Franquia não é tendência mundial
De acordo com dados da União Internacional de Telecomunicações (UIT) − organismo das Nações Unidas (ONU) responsável por criar padrões e recomendações mundiais na área −, o Brasil, estabelecendo prioritariamente o modelo de banda larga limitada, iria na contramão da tendência global. Dos 190 países monitorados pelo órgão, 130 deles oferecem prioritariamente planos de banda larga fixa sem franquia, o que corresponde a 68%.

No fim de cada ano, a organização publica o relatório Medição da Sociedade da Informação (Misr), que traz dados atualizados sobre as telecomunicações e divulga o ranking de países de acordo com o seu nível de acesso às Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs), conhecido como Índice de Desenvolvimento das TICs (IDI).

O último relatório, publicado em novembro de 2015, mostra que a Coreia do Sul está na liderança de países mais bem avaliados, seguida por Dinamarca e Islândia. O Brasil ocupa a 61º posição, bem distante dos Estados Unidos (15º), que conta com um dos modelos mais competitivos do mundo. Na frente do Brasil, encontram-se também três países sul-americanos: Uruguai (49º), Argentina (52º) e Chile (55º).

Dos dez países com melhor ranking de desenvolvimento das TICs, apenas três aplicam prioritariamente planos limitados: Reino Unido, Luxemburgo e Islândia. Os demais optavam, até a data do levantamento, por modelos ilimitados. Entre eles, a líder Coreia do Sul e a segunda colocada, a Dinamarca.

Segundo o diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS) e membro da Comissão de Direito Autoral, Direitos Imateriais e Entretenimento da Seccional, Carlos Affonso Pereira de Souza, a tendência no exterior é um sistema de livre concorrência: “Nos países mais desenvolvidos há franquias, mas sempre em modelos muito maiores do que aquelas que inicialmente foram aventadas aqui para o Brasil. De qualquer forma, são contratos que, pagando-se cerca de dez dólares a mais, podem ser transformados em planos ilimitados. A banda larga ilimitada não é um luxo, mundialmente. E me parece que a lógica que quiseram adotar em nosso país é transformar um uso regular da internet em privilégio”, observa.
 
Limite é legal?
De acordo com os advogados contrários às franquias, o limite para navegação dos usuários com base na limitação de dados fere diretamente o artigo 7º do Marco Civil da Internet, como é chamada a Lei 12.965/2014.

A lei estabelece os princípios, deveres e direitos dos usuários e operadoras de internet em todo o Brasil, e o artigo específico garante que um usuário só pode ter sua navegação interrompida por falta de pagamento, e somente após a devida notificação. Além disso, o artigo 7º reconhece o acesso à internet como “essencial ao exercício da cidadania”.

Carlos Affonso destaca que, apesar de menos comentado, o artigo 6º também é violado diretamente com o modelo, já que reforça a importância da internet e “seus usos e costumes particulares” na “promoção do desenvolvimento humano, econômico, social e cultural”.

A internet se tornou algo essencial para a formação da cidadania, para o desenvolvimento da personalidade, do desenvolvimento humano, pondera. O artigo 6º ajuda a entender que não estamos falando de algo que é voluptuário. Estamos falando de um serviço que ajuda a formar indivíduos, a desenvolver personalidades”, acrescenta.

Uma das vozes contra o bloqueio, a associação de consumidores Proteste entrou com ação judicial para impedir as operadoras de limitarem o acesso à internet por meio de uma franquia, tanto em conexões fixas quanto móveis. Na ação, foi pedida liminar para que elas não possam comercializar novos planos com previsão de bloqueio à conexão no fim da franquia do 3G e da internet fixa, e para que sejam obrigadas a adequar suas práticas na contratação do serviço de conexão aos termos do Marco Civil.

Coordenadora institucional da associação, Maria Inês Dolci explica que, apesar das diferenças no modelo de conexão, o bloqueio após o fim da franquia não deve ser aplicado em nenhuma das estruturas: “Ele é vedado pelo Marco Civil, assim como a diferenciação do acesso, com conteúdo restrito a alguns aplicativos após o fim do pacote de dados. Isso acontece na internet móvel por conta de acessos patrocinados, mas viola diretamente o artigo 9º do Marco Civil, que trata da neutralidade da rede”.

O dispositivo citado por Dolci estabelece ao “responsável pela transmissão, comutação ou roteamento” o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação.

A representante da Proteste aponta também incongruência da ação com o Código de Defesa do Consumidor que, no artigo 22, “reconhece a vulnerabilidade do consumidor no mercado e diz que devem ser garantidos serviços com padrões adequados de qualidade e desempenho”.

Presidente da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB/RJ, Giovanni Pugliese apresenta o que seria mais uma violação: “O artigo 39º, em seu inciso V, entende como sendo prática abusiva o uso do sistema de franquias, por exigir dos consumidores vantagem manifestamente excessiva, sendo exatamente o pretendido pelas operadoras de internet fixa, além de podermos fazer menção também ao inciso X, por elevar, sem justa causa, o preço dos serviços”.

Segundo ele, mesmo se o modelo só se aplicar a novos contratos, os consumidores continuarão sendo prejudicados: “Sem opções fora dele, ficarão em desvantagem, com sua velocidade de conexão reduzida, ou forçados a arcar com mais um custo pela necessidade de adquirir uma franquia de dados extra.

A coordenadora executiva do coletivo de comunicação Intervozes, jornalista Bia Barbosa, acredita que, apesar de a franquia estar prevista na ordem da Anatel, deveria se adequar ao Marco Civil,  editado posteriormente. “A resolução da Anatel data de 2013, e seufoco é a limitação da internet móvel, que tem uma outra estrutura. Mas para essa questão deve ser feita uma interpretação combinada do Marco Civil com o Código de Defesa do Consumidor. A Anatel pode até permitir franquia, mas não o bloqueio do acesso a internet, visto que é um serviço essencial. E os planos devem ser altos, justamente para seguir essa lógica. Não os que foram anunciados pelas operadoras”.

Segundo Lamachia, não é necessária mudança legislativa para tratar da questão: “Não acredito que seja necessária uma lei específica para regular o tema, pois já temos legislação que o contempla. O problema não é a falta de lei, é o respeito às normas existentes, com fiscalização e punição a quem não as cumpre. Este papel deve ser exercido com rigor pela Anatel. Infelizmente, não é o que tem acontecido”, critica.
 
Impacto para o advogado e para a sociedade
A OAB Nacional frisa que a limitação dos planos de internet poderá causar prejuízos à sociedade. “A internet é utilizada como um dos meios mais importantes para a disseminação da educação, da formação das pessoas.
 
Aqui mesmo, na OAB, temos a Escola Nacional de Advocacia, que oferece cursos a distância e que utiliza, basicamente, a banda larga”, diz Lamachia.

Ele lembra o que pode ser o maior impacto para o advogado: o prejuízo ao processo judicial eletrônico, já amplamente instalado e que foi apresentado como uma das soluções para a morosidade da Justiça.

Pugliese reforça: “Basta imaginar que haverá a possibilidade de um advogado estar peticionando, com um prazo a ser cumprido, e subitamente sua internet ser suspensa, podendo ocasionar gravíssimos prejuízos”.

Além da influência direta no meio de trabalho do advogado – e de outros profissionais – e na educação, já que muitos conteúdos de estudo hoje são consumidos por vídeo, a limitação de internet fixa traria consequências mais amplas: “Teríamos impactos no uso residencial, na questão do lazer e entretenimento, principalmente pelo serviço de streaming, que cresceu muito nos últimos anos; no uso comercial, pois é comum que estabelecimentos ofereçam hoje WiFi para seus clientes. É claro que o comerciante não vai absorver o custo de uma franquia, então poderá aumentar o preço de seu produto para manter o serviço. E há ainda o impacto público, já que o Estado oferece hoje pontos de banda larga fixa com WiFi aberto. Será o mesmo dilema do comerciante, potencializado por ser uma iniciativa pública”, enumera Pugliese, destacando ainda as operações bancárias realizadas por empresas, acompanhamento de dados e negócios firmados tendo a internet como base.
“Os três componentes mostram que esse é o momento em que a imposição de franquia não ajudaria em nada, muito pelo contrário”, frisa Carlos Affonso, apontando que hoje somente cerca de 50% da população brasileira pode ser considerada inserida digitalmente: ”Não vai ser impondo franquia que a gente vai fazer com que essa outra metade da população se torne uma incluída digital”.

“O que foi motivo de chacota na fala do presidente da Anatel, a questão dos jogos online, não deve ser desconsiderada. Esse é um enorme mercado, a indústria de games é uma das que mais cresce no Brasil. Não é coisa de criança”, aponta. “Isso sem contar a cultura das celebridades de internet, os chamados YouTubers. O YouTube tem uma importância enorme e, ao contrário do Netflix, é conteúdo audiovisual gratuito disponibilizado às pessoas. É dele que vem grande parte do tráfego de dados atualmente”.

Bia Barbosa, do Intervozes, acredita que as pessoas mais pobres serão ainda mais atingidas negativamente: “Houve uma explosão na venda de smartphones, de chips 3G e 4G, mas grande parte desses aparelhos acessa a internet prioritariamente pela banda larga fixa, através do WiFi gratuito. Com a limitação, a gente vai ter uma redução enorme, do ponto de vista da garantia de um direito, para a população brasileira”.

Ela considera a internet o principal meio de comunicação disponível atualmente para garantia da democratização da informação: “Hoje é muito mais acessível criar uma página na internet, uma revista eletrônica alternativa, um site de jornalismo independente, usar a rede social para exercer minha liberdade de expressão. A internet tem sido inclusive um contraponto muito importante à comunicação dos grandes meios tradicionais. Se a gente mudar o acesso, o percentual de pessoas excluídas desse mundo vai se ampliar significativamente, teremos um verdadeiro retrocesso. Vamos chegar a um ponto em que só quem tem dinheiro vai conseguir acesso plenamente”.
 
Internet pode congestionar?
Claudio Affonso destaca que a sugestão das operadoras de impor o modelo de franquia, amparada por uma lógica de “esgotamento da rede” frente à demanda, não foi acompanhada de nenhum estudo que a justificasse.
“Fala-se também em privilegiar usuários que consomem menos internet, fazendo uma diferença entre os usuários intensivos e os casuais. Porém, essa distinção está cada vez mais tênue, considerando que 60% do tráfego de rede no Brasil é de vídeo”, aponta, citando dados de pesquisa do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br).

A advogada Flávia Lefèvre, que representa o terceiro setor no grupo de trabalho que está debatendo o tema no CGI.br, afirma que um dos pontos abordados no núcleo é o argumento do uso excessivo da banda larga: “Tecnicamente, não se sustenta a justificativa de que o volume que você utiliza interfere no custo da prestação desse serviço. No caso da internet fixa, serviço é a conexão, não o volume. Ainda mais porque hoje os grandes provedores de conteúdo, como a Netflix, não mantêm seus dados em uma base, por exemplo, nos Estados Unidos. Eles têm caches instalados nos provedores de conexão, nos pontos de troca de trafego [PTTs] próximos aos usuários. Então, não existe custo de locomoção, de transporte de rede”.

“Nossa infraestrutura não é precária”, argumenta Zanatta, do Idec: “Ela é de fato deficitária para a demanda do Brasil, porque o país quer conectar todas as pessoas hoje. Mas as empresas têm plena capacidade de compreensão de qual é o aumento da demanda para investimento em infraestrutura de internet fixa. Elas não fizeram o investimento e estão usando como desculpa que existiria um problema de congestionamento de rede, o que não é verdade, tanto que não foi publicado nenhum documento oficial por parte das operadoras denunciando essa questão”.

Segundo ele, o máximo que poderia acontecer, com uma demanda que considera estabilizada de internet fixa, seria a perda de capacidade de transmissão de dados em alta velocidade em períodos de maior utilização da internet, como à noite: “O seu vídeo chegará mais lento, por exemplo, se 10 milhões de pessoas estiverem consumindo dados naquele horário, mas nada que seja crítico para fazer com que a infraestrutura parasse de funcionar”.

Para Bia Barbosa, o acesso à banda larga é deficitário, inclusive com o Plano Nacional de Banda Larga, estabelecido nos últimos anos pelo governo federal. “Nosso problema com infraestrutura vem de muito tempo. Isso porque as operadoras sempre investiram nos lugares em que elas acham que têm mais retorno econômico, e não de forma com que a população como um todo tenha o acesso garantido”.

A jornalista ressalta o papel do Estado na mediação desse processo: “O Intervozes defende, na campanha Banda larga é um direito seu, que a prestação do serviço de acesso no Brasil seja feita no que a gente chama de regime público, que é um tipo de prestação de acordo com a Lei Geral de Telecomunicações”.

Publicada em 1997, a lei foi criada em um cenário de expansão da telefonia fixa por conta das privatizações e, para Bia, deveria ser atualizada para inclusão da internet: “A lei garantiria universalização do acesso àquele serviço, além da continuidade da prestação. Ou seja, ele não poderia ser interrompido. Hoje, o único serviço de telecomunicações prestado em regime público é a telefonia fixa. A móvel, TV por assinatura, tudo isso é prestado no regime privado. E dentro dele essas metas são bem menores”.

Bia vê de forma positiva a criação de projetos, na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, no sentido de proibir a franquia na internet fixa, porém não considera isso suficiente para resolver a questão: “Precisamos de uma mudança mais ampla, para não estacionar onde estamos agora, que não é um cenário de inclusão. Bastaria um decreto presidencial para conseguirmos, por exemplo, usar os recursos do Fundos de Universalização dos Serviços de Telecomunicação [Fust]. Isso é totalmente possível, já que temos o Marco Civil declarando que o acesso à internet é um serviço essencial e a Lei Geral de Telecomunicações dizendo que todo serviço essencial deve ser prestado em regime público. Chega a ser uma omissão isso não ter acontecido até agora”. Ela acredita que, desta forma, a internet poderia ser expandida e a Anatel teria poder regulatório maior para as operadoras. 

Lefèvre reforça a visão de Bia, mas acredita que para usar a arrecadação do Fust não seria nem necessário alterar a Lei Geral de Telecomunicações: “Só este fundo arrecada por ano R$ 2,5 bilhões. Se a gente tivesse um investimento desses em rede de alta capacidade, de fibra ótica, com metas de universalização, como aconteceu no começo com a privatização da telefonia fixa, haveria outro cenário. Se você estende o regime público para a estrutura de banda larga, automaticamente está reconhecido caráter universal daquele serviço e, consequentemente, aquele investimento poderia ser usado. E a resistência do governo, essa omissão, tornou-se ainda mais descabida, e até ilegal, depois da edição do Marco Civil, que garante que a internet é essencial para a cidadania”.

Em maio, a OAB Nacional ajuizou  ação civil pública requerendo que a União aplique corretamente a verba do Fust e dos fundos de Desenvolvimento Tecnológico das Telecomunicações (Funttel) e de Fiscalização das Telecomunicações (Fistel). 

De acordo com dados apresentados pela Ordem, em média, menos de 10% do valor de cada fundo foram utilizados para os fins originais. Pareceres do Tribunal de Contas da União (TCU) mostram desvio de finalidade no uso da verba, com utilização praticamente nula aos fins a que se destina ou uso em outras atividades que nada têm a ver com aquelas legalmente previstas, como construção de ferrovias e revitalização de aviões da Aeronáutica.

Claudio Lamachia entende que os problemas com internet e telefonia são reflexos da omissão e da negligência da Anatel. “Os números nos mostram que não há interesse da própria agência. Reafirmo que esta autarquia atua muito mais como sindicato das empresas do que como representante dos usuários”.

O relatório do Conselho Federal apontou discrepâncias entre os valores apresentados pela Anatel e pela Secretaria do Tesouro Nacional: enquanto a secretaria declarou que a arrecadação bruta do Fistel chegou a R$ 82,2 bilhões entre 1997 e 2015, nas contas da Anatel o valor é de R$ 67,2 bilhões. Não há entendimento sequer sobre o saldo do fundo. Em 30 de junho de 2015, a secretaria declarou R$ 15,5 bilhões na conta do Fistel, enquanto a Anatel contabilizou R$ 64,8 bilhões.

Zanatta acredita que o regime da reversibilidade, aplicado na telefonia fixa por funcionar em regime público, deveria ser expandido à banda larga de internet: “Nesse regime, uma vez que há o contrato de concessão, se a empresa não quiser mais investir no Brasil o governo pode ter acesso à infraestrutura que ela desenvolveu para garantir a continuidade do um serviço. Hoje estamos em uma situação de total dependência das empresas privadas”.

Ele conta que a proteção jurídica é comumente aplicada no mundo: “Mesmo os países de tradição mais liberal têm políticas nacionais de banda larga e proteção jurídica para os serviços essenciais – que chamam de public utilities – nos quais o Estado vai deter o poder de definição de qual é a infraestrutura que vai ficar a titulo de coletividade. Ou seja, aquele investimento é feito pela empresa privada, mas ele pertence à coletividade”, explica.
 
Futuro indefinido
Por enquanto, o quadro é de indefinição, agravada com a extinção do Ministério das Comunicações, que previa discussões ampliadas sobre a banda larga nos próximos meses. “A situação já era complicada com a pressão das operadoras sobre o governo. Agora, com a extinção do Ministério das Comunicações, a gente sequer sabe qual vai ser a consequência dos projetos que estavam em curso lá. E um deles era justamente a consulta pública sobre mudanças no modelo de telecomunicações no Brasil. O que vai acontecer agora é uma grande interrogação, mas a gente acredita que essa mobilização dos usuários conseguiu de alguma forma alertar a Anatel para garantir algum debate público antes de tomar decisão nesse sentido”, opina Bia.

Mesmo com a proibição, empresas continuam a ofertar novos planos com franquia de dados, em alguns casos, de forma discreta, diz Zanatta. “Por enquanto elas não poderiam aplicar”, explica. “Mas se daqui a um mês a Anatel decide que a franquia está liberada, as operadoras vão ter vendido esses planos para novos consumidores e eles se aplicarão”, alerta.

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