13/06/2016 - 14:35

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O Brasil e os direitos LGBTI

13/06/2016 - 14:35

O Brasil e os direitos LGBTI

MARIANNA CHAVES*

O Brasil, em matéria de direitos LGBTI, comporta-se de maneira singular. O país, acompanhando os passos do bloco progressista (cujos países, em sua maioria, se concentram na Europa), terminou por reconhecer a união homoafetiva como entidade familiar e outorgou o regime – por equiparação –  da união estável entre homem e mulher.

Curiosamente, muito embora o Brasil faça parte do sistema romano-germânico no qual um dos elementos caracterizadores é o fato de o Direito estar organizado em grandes codificações, em matéria de diversidade sexual e identidade de gênero comporta-se como um país da common law, onde o Direito é revelado pela jurisprudência.

A união estável homoafetiva foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal (ADPF 132/ ADI 4277) e foram automaticamente autorizadas, desde 2011, as adoções por casais do mesmo sexo, conforme os ditames do Estatuto da Criança e do Adolescente. Posteriormente, o STJ reconheceu a possibilidade do casamento homoafetivo direto e o CNJ editou a Resolução 175/2013, que veda às autoridades competentes a recusa de habilitação, celebração de matrimônio civil ou de conversão de união estável em casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Com o Provimento 52/2016 do CNJ, resolveu-se a questão das crianças nascidas através do recurso às técnicas de Procriação Medicamente Assistida. Muito embora as técnicas de PMA já estivessem acessíveis aos casais de lésbicas e gays há muitos anos, a questão sempre desaguava no Judiciário em virtude do problema de estabelecimento da filiação. Assim, finalmente, as crianças filhas de dois pais ou duas mães passaram a poder ter a sua parentalidade retratada in totum em seus registros de nascimento, sem necessidade de longos e desgastantes processos judiciais, que deixavam as crianças desprotegidas até que chegassem ao final.

Apesar de todos esses avanços, a terra dos direitos LGBTI continua sendo uma “terra sem lei”. Os projetos sobre regulamentação de uniões homoafetivas nunca chegam à votação em plenário no Congresso Nacional. O Poder Legislativo peremptoriamente acusa o Judiciário de ativismo judicial, de afronta ao princípio da separação dos poderes, mas não legisla sobre o assunto. E, muito provavelmente, não legislará nos próximos tempos, já que o Congresso brasileiro atual foi considerado o mais conservador desde 1964 e, não raras vezes, faz da Bíblia a Carta Magna, em um Estado (supostamente) laico.

Existe hoje uma enorme dificuldade em se debater o tema da laicidade de forma científica, desprovida de paixões ou convicções morais ou próprias da religião. Nas tribunas das nossas casas legislativas, das municipais ao Congresso Nacional, não é incomum a presença de discursos pautados por princípios religiosos. A pregação bíblica, como amparo argumentativo, termina por vilipendiar a indispensabilidade do emprego da razão nas discussões públicas.

Esse cenário traduz a representação do pensamento e convicções morais de uma parcela da sociedade, orientados por dogmas religiosos, que terminam gerando reflexos (muitas vezes nefastos) no âmbito de políticas públicas, prática judicial e atividade legislativa. Devemos enxergar a questão da laicidade estatal em uma lógica que é consagrada até mesmo na Bíblia Sagrada: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mc 12, 17). Portanto, é preciso desvincular a concessão ou regulamentação de direitos puramente civis de doutrinas religiosas. Mas parece que o nosso legislador tem uma dificuldade brutal de compreender isso.
Os poucos e tímidos avanços normativos alcançados logo são contestados pelos fundamentalistas religiosos, como aconteceu recentemente com a oposição ao Decreto 8727/2016, que dispõe sobre o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional. 

Mal foi aprovado, uma parcela conservadora, opressiva e reacionária da Câmara dos Deputados buscou a sua impugnação. O mais curioso é que mais de um parlamentar que busca impugnar o decreto usa nome social. Será que o direito de personalidade ao nome de um deputado vale mais que o direito ao nome de qualquer outro cidadão brasileiro? Certamente, não. E, indiscutivelmente, não é legítimo buscar tolher direitos civis alheios com base em preceitos de fé.

Nesse sentido, o Conselho Pleno da Ordem dos Advogados do Brasil, seguindo a tendência mundial de respeito à diversidade sexual e à identidade de gênero, aprovou o pleito para que advogados e advogadas travestis e transexuais usem o nome social no registro da Ordem. A proposta aprovada permite ainda a inclusão do nome social nas carteiras de identidade profissional.

A identidade de gênero deve ser compreendida como a consciência íntima de uma pessoa pertencer ao gênero feminino ou ao gênero masculino. A identidade de gênero tem um forte componente biológico e genético e é – ou deveria ser – o elemento mais poderoso, determinante, do sexo de uma pessoa. Todos possuem identidade de gênero, não apenas as pessoas trans. 

A identidade de gênero pode ser congruente ou incongruente com a determinação médica do sexo, feita no momento do nascimento, que ainda é baseada na aparência da genitália externa do recém-nascido. Ser um transgênero é resultado de uma diversidade natural e parte de um fenômeno humano culturalmente diversificado, que não deve ser reputado como inerentemente negativo ou patológico.

No Brasil, não existe legislação específica que discorra acerca dos direitos dos transexuais. Os critérios e os pressupostos de acesso ao tratamento hormonal e cirúrgico para “mudança de sexo” (que não é mais considerada indispensável para a mudança do nome) estão elencados na Resolução 1.955/2010, do Conselho Federal de Medicina. A mudança do status civil do indivíduo transexual vem sendo deliberada, caso a caso, em ações judiciais propostas individualmente.

Desconstruída a correlação antecipada entre gênero e sexo, é imperativo o reconhecimento da identidade individual por meio do arranjo do nome ao sexo correspondente. O nome da pessoa deve estar de acordo com a sua identidade pessoal. Não basta que seja atribuído a um sujeito o nome de Maria ou João. É preciso que aquele nome reflita a identidade real do indivíduo em causa.

A efetiva compreensão da ideia de laicidade auxilia na tarefa de perceber os avanços e retrocessos relativos ao embate pela consecução de uma irrestrita cidadania sexual e familiar na conjuntura de um Estado laico. Nesse sentido, andou muito bem a OAB ao reconhecer e salvaguardar a identidade de gênero com o apoio ao uso do nome social e, como de costume, o nosso Legislativo anda cada vez pior, na contramão de todas as tendências mundiais relativas à tutela e salvaguarda da cidadania, identidade e dignidade da população LGBTI.
 
* Advogada, doutoranda em Direito Civil pela Universidade de Coimbra, mestra em Ciências Jurídicas pela 
Universidade de Lisboa

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