03/08/2018 - 21:03

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O caso Alyne: uma decisão sobre os direitos humanos das mulheres relacionados à mortalidade materna

03/08/2018 - 21:03

O caso Alyne: uma decisão sobre os direitos humanos das mulheres relacionados à mortalidade materna

O Comitê das Nações Unidas sobre a Eliminação de Discriminação contra as Mulheres, órgão de acompanhamento da implementação da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (Cedaw), ratificada pelo Brasil em 1984, analisou o primeiro caso de mortalidade materna decidido por uma entidade de proteção dos direitos humanos das Nações Unidas, recomendando que os governos têm a obrigação de cumprir com os direitos humanos e garantir que todas as mulheres em todos os países, indiferentemente de raça ou renda, tenham condições de acessar serviços de pré-natal de qualidade.

O caso refere-se à morte evitável de Alyne da Silva Pimentel Teixeira, ocorrida em Belford Roxo, no Rio de Janeiro, em 16 de novembro de 2002. Alyne era uma mulher afro-descendente, de 28 anos, casada, e tinha uma filha de cinco anos de idade.

Grávida de seis meses, ela se sentiu mal e procurou uma clínica de saúde para tratamento, sendo consultada e liberada para casa. Vindo a piorar, retornou à clínica, foi atendida por outro médico, que detectou que o feto estava morto. Alyne foi submetida a parto induzido e logo após ficou desorientada. Quatorze horas depois foi realizada cirurgia para retirada dos restos da placenta, e sua condição piorou muito, sendo necessária a transferência para um hospital, o que ocorreu oito horas após, face a dificuldade de encontrar uma ambulância. Quando chegou ao hospital sua pressão estava a zero, e ela teve que ser ressuscitada, sendo colocada, provisoriamente, no corredor da sala de emergência porque não havia leitos disponíveis. Além disso, sua ficha médica não havia sido levada ao hospital. Alyne morreu de hemorragia digestiva resultante do parto do feto morto.

Em fevereiro de 2003, foi proposta uma ação civil de reparação de danos pela família de Alyne. A dita ação ainda está pendente de decisão. A morte de Alyne constituiu grave violação ao direito à vida, à saúde e à efetiva proteção dos direitos das mulheres. O Estado brasileiro não cumpriu com sua obrigação fundamental em relação à saúde, de reduzir a mortalidade materna, e não assegurou acesso a tratamento médico de qualidade e cuidado obstétrico emergencial no tempo devido; houve violação ao direito à não discriminação baseada no gênero, na raça ou condição socioeconômica. A demora na reparação doméstica também demonstrou o fracasso do Estado em fornecer recursos jurídicos e reparações, violando o direito de proteção efetiva (artigos 2 e 12, c, da Convenção Cedaw, e artigo 6 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos).

Devido à demora de oito anos sem julgamento desde que o caso foi apresentado à Justiça brasileira, o Comitê excepcionou a regra da exaustão da esfera doméstica.

O Comitê Cedaw considerou que o caso era de morte materna, por não terem sido assegurados serviços apropriados à sua condição de gestante, sendo o Brasil responsável pela morte de Alyne, considerando, ainda, que ela sofreu múltipla discriminação por ser afro-descendente e ter poucos recursos econômicos, e que o Brasil falhou em oferecer uma proteção judicial efetiva e remédios legais adequados, e determinou medidas gerais para garantir o direito à saúde reprodutiva das mulheres, tais como: assegurar o direito à maternidade segura e fácil acesso aos cuidados obstétricos; fornecer capacitação e treinamento profissional adequado aos trabalhadores de saúde, especialmente sobre os direitos à saúde das mulheres, incluindo tratamento médico de qualidade durante a gravidez e o parto, bem como cuidado obstétrico emergencial; assegurar acesso legal a remédios efetivos em casos nos quais haja violação dos direitos à saúde reprodutiva das mulheres, capacitação para o Poder Judiciário e para os agentes responsáveis pelo cumprimento a lei; assegurar que os serviços de saúde cumpram os padrões nacionais e internacionais de atenção à saúde reprodutiva; assegurar sanções apropriadas aos profissionais de saúde que violem os direitos à saúde reprodutiva das mulheres; e reduzir a mortalidade materna prevenível através da implementação do Pacto Nacional de Mortalidade Materna nos estados e municípios, incluindo o estabelecimento de comitês de mortalidade materna onde eles não existam.

Assim, o Estado brasileiro deverá, dentro de seis meses, apresentar resposta ao comitê das iniciativas tomadas a partir das recomendações apontadas. Por fim, a decisão cria relevante jurisprudência internacional sobre mortalidade materna e direito à saúde reprodutiva e obriga, desde já, o Estado brasileiro a rever sua política de saúde destinada às mulheres.

* Beatriz Gali é membro da Comissão de Bioética e Biodireito da OAB/RJ e do Comitê Latino-Americano e do Caribe para os Direitos da Mulher, além de assessora regional para políticas na América Latina e Caribe do Ipas. Gleyde Selma da Hora é membro da Comissão de Bioética e Biodireito da Seccional e da OAB Mulher. Também participou da elaboração do texto a coordenadora do Comitê Latino Americano e do Caribe para os Direitos da Mulher (Cladem Brasil), Carmen Campos.


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