26/06/2014 - 11:22

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Projeto traz polêmica sobre sigilo profissional

26/06/2014 - 11:22

Projeto traz polêmica sobre sigilo profissional

VITOR FRAGA
Encerrou-se no dia 31 de maio o prazo para consulta pública e envio de propostas de alteração do novo Código de Ética da Advocacia. O ponto mais polêmico do texto – a ser debatido em audiências públicas nas seccionais e na Conferência Nacional dos Advogados, em outubro, para entrar em vigor em 2015 – está no artigo 38, que prevê que, em caso de um inocente ser acusado de um crime cometido pelo cliente, o advogado deverá renunciar à causa e poderá denunciar o cliente à Justiça, quebrando a relação de sigilo profissional.  Em 1º de março, o Conselho Federal disponibilizou em seu portal na internet espaço para que os advogados pudessem enviar suas sugestões de atualização.

Desde então, a classe jurídica pôde propor aditamentos ou modificações, e as propostas de alteração serão apreciadas pela Comissão Especial para Estudo da Atualização do Código de Ética e Disciplina da OAB. Para seu relator, o conselheiro federal Paulo Roberto de Gouvêa Medina, a participação dos advogados de todo o país foi expressiva, com cerca de 400 sugestões.” Um tema que despertou fortemente a preocupação da classe é o da publicidade profissional. Muitos preconizam uma abertura maior nesse terreno”, revela.

Segundo Medina, “a opção do anteprojeto é manter o sistema tradicionalmente seguido entre nós, que se filia ao modelo francês, caracterizado pela discrição, não franqueando, assim, ao advogado, os meios de divulgação de que se vale a propaganda no campo empresarial, como faz o modelo americano”, explica. 

Conselheiro federal pelo Rio de Janeiro e membro da comissão que trabalha no texto, Carlos Roberto de Siqueira Castro lembra que o atual Código de Ética entrou em vigor em 1º de março de 1995, e precisa ser atualizado. “Nesse período de duas décadas a advocacia brasileira experimentou grandes transformações, como o crescimento vertiginoso das sociedades de advogados, que passaram a ter gestão de tipo empresarial; a insurgência do Código de Defesa do Consumidor, que assimilou grande parte das obrigações civis; a preeminência da internet e da era digital, de que resultou o processo judicial eletrônico; e a crescente internacionalização da profissão na esteira da globalização da economia e das relações humanas, sem esquecer as alterações determinadas por essas mudanças no ambiente profissional no campo da ética e da tipologia das infrações disciplinares”, lista Siqueira Castro.
 
O presidente da Comissão de Segurança Pública da OAB/RJ, criminalista Breno Melaragno, concorda que o Código de Ética tem “diversos institutos e instrumentos válidos”, mas também alguns ultrapassados, e por isso precisa ser discutido. “É importantíssima esta consulta pública aberta pelo Conselho Federal com as participações das seccionais. O debate precisa ser amplo e profundo, sem açodamento, pois a classe precisa chegar a um denominador comum daquilo que precisa ser modificado”, ressalta Melaragno.
 
Fim do sigilo profissional?

E o debate já começou em relação ao artigo 38, que prevê: “Na hipótese em que terceiro seja acusado da prática de crime cuja autoria lhe haja sido confessada pelo cliente, o advogado deverá renunciar ao mandato, ficando livre, em seguida, da preservação do segredo profissional, para agir segundo os ditames de sua consciência e conforme as circunstâncias recomendarem”.
 
Sobre esse tema, Medina defende a posição da comissão especial. “Não me consta que o anteprojeto de novo código, nas suas linhas gerais, esteja causando polêmica. Pode ser que isso ocorra com relação ao dispositivo apontado”, diz ele, citando como argumento a exposição de motivos da proposta.
 
No texto, afirma-se: “Maurice Garçon, que depois de salientar que o segredo profissional ‘não provém de um contrato’, senão que é ‘de ordem pública’, ressalva que ‘a noção do segredo permanente total afronta, por vezes, a consciência’. E exemplifica com a hipótese de ‘o autor de um crime [que] confessou tê-lo cometido mas que, por ele, havia sido condenado um inocente’. Embora o eminente membro da Academia Francesa não indique a solução adequada a essa hipótese, parece que ela há de estar na renúncia ao mandato, procedendo, em seguida, o advogado conforme sua consciência o determinar”.
 
Na opinião de Medina, o artigo, de forma acertada, não chega “a sugerir a revelação do segredo à autoridade competente”, sendo conveniente que se restrinja “à recomendação da renúncia”. Ele faz referência ainda ao Código de Deberes Jurídicos, Morales e Éticos del Profesional em Derecho, do Colégio de Abogados de Costa Rica, que prevê a quebra do sigilo em situações excepcionais. “É essa linha de orientação que o anteprojeto de Código de Ética procura seguir”.

Na visão de Siqueira Castro, a proposição do artigo 38 é equivocada. “Considero que a relação entre o advogado e seu cliente é pautada no princípio da confiança e do sigilo profissional. Não se deve, a meu ver, permitir-se ao advogado, conquanto após a renúncia do mandato, quebrar o segredo profissional para fins de denunciar seu ex-patrocinado pela prática de crime, ainda que por ‘ditames de sua consciência e conforme as circunstâncias recomendarem’”, defende. O conselheiro considera que, no caso de a proposta prevalecer, “o advogado poderá utilizar-se da informação confiada por seu cliente em regime estrito de confidencialidade, seja mantendo-a em sigilo, seja comunicando às autoridades competentes a identidade do verdadeiro autor do delito que esteja sob investigação”.
 
Siqueira Castro reforça a ideia de que “as comunicações, por quaisquer meios, entre o advogado e seu cliente, são indevassáveis como num autêntico confessionário e não se prestam a rupturas de rotina”. Nesse sentido, para ele, “o sigilo profissional constitui para o advogado não apenas um direito, mas também um dever”.

Entre os criminalistas, a proposta vem gerando críticas. “É sagrado em um Estado Democrático de Direito o completo sigilo das relações entre cliente e advogado. Este dispositivo fere gravemente o direito à ampla defesa e o próprio exercício da advocacia na área criminal. [O Código de Ética determina que] O advogado ‘deverá’ renunciar ao mandato, dando a entender no trecho seguinte que poderá servir como testemunha? Este dispositivo coloca o profissional em maus lençóis e certamente causaria inúmeros problemas decorrentes desta situação absurda”, prevê Melaragno. 

Para ele, “o dever de sigilo e a inviolabilidade das comunicações e conversas do cliente com o advogado são a base da confiança entre ambos, pilar que deve reger esta relação”, podendo haver, inclusive, prejuízo para a defesa técnica, caso o cliente não se sinta confiante para relatar tudo o que sabe. “O cliente deve ter total confiança no advogado e certeza do caráter sigiloso da sua relação com ele. Omitir fatos, questões, faltar com a verdade para com aquele que vai fazer sua defesa técnica é tão prejudicial para o exercício profissional do advogado quanto um paciente mentir para o médico. Só prejudicará o caso e o tratamento. As  consequências  desta norma podem ser gravíssimas para o exercício profissional e para o princípio constitucional da ampla defesa”, aponta.

O conselheiro seccional e também criminalista Renato Tonini lembra que a presidência do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/RJ estimulou o debate de ideias em torno no Código de Ética. Sobre o conteúdo do artigo 38, Tonini considera que o dispositivo “é um absurdo completo” que, “se vingar, poderá trazer enorme insegurança na relação existente entre os advogados criminais e seus clientes”. 

Na opinião dele, a norma estabelece “um novo preceito” nas relações entre os profissionais, seus clientes e a sociedade, segundo o qual “o advogado deverá – é um dever – renunciar ao mandato quando tomar conhecimento de que o crime a ele confessado por seu cliente está sendo atribuído a outra pessoa. A norma deixa o advogado livre da preservação do segredo profissional para agir segundo os ditames de sua consciência”, analisa. 

Para Tonini, “por se tratar de um preceito mandatório, sua não observância pelo advogado implicará a imposição de sanção disciplinar”, já que a violação de regras impositivas “previstas no código pode resultar na aplicação de pena de censura, conforme estabelece o artigo 36 do Estatuto”. Mas ele acredita que a conduta dificilmente será fiscalizada. “Se os envolvidos – o advogado e o seu cliente – se mantiverem silentes quanto ao fato, ninguém saberá do cometimento da infração. Portanto, me parece inócua como um dispositivo sancionador”, sublinha. 

Ele alerta ainda para, na hipótese de o advogado estar liberado para agir “de acordo com a sua consciência”, um possível receio por parte do cliente em confiar no profissional. “Sem essa relação de confiança recíproca, não haverá defesa criminal eficiente e sempre haverá a sombra da incerteza pairando sobre o cliente: esse advogado vai me delatar um dia? A mudança desse paradigma é assustadora e trará consequências gravíssimas para o exercício da advocacia criminal e nenhuma vantagem para a sociedade”, conclui Tonini.

O texto elaborado pela comissão com as sugestões da advocacia deve ser levado ainda no mês de junho ao plenário do Conselho Federal. As discussões serão aprofundadas na XXII Conferência Nacional dos Advogados, em outubro, no Rio de Janeiro, e a expectativa é de que nos meses de novembro e dezembro o Conselho Pleno vote o projeto. O tema será discutido também pelas seccionais, que realizarão audiências públicas. “Quanto mais amplo o debate, maior a oportunidade de aperfeiçoamento”, acrescenta Paulo Medina. Uma vez aprovado, o novo Código de Ética da Advocacia possivelmente entra em vigor no próximo ano.

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