26/06/2014 - 11:45

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A intervenção do Judiciário na Justiça Desportiva

26/06/2014 - 11:45

A intervenção do Judiciário na Justiça Desportiva

MARCELO JUCÁ BARROS*

O artigo 217 da Constituição Federal prevê expressamente o dever do Estado de fomentar práticas desportivas formais e não formais como direito de cada um, observando, como preceitos, a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto à sua organização e ao seu funcionamento; a destinação de recursos públicos para a promoção prioritária do desporto educacional e, em casos específicos, para a do desporto de alto rendimento; o tratamento diferenciado para o desporto profissional e o não profissional; e a proteção e o incentivo às manifestações desportivas de criação nacional.

O parágrafo primeiro deste dispositivo trata de uma exceção constitucional ao princípio do livre acesso ao Poder Judiciário consagrado pelo inciso XXXV do artigo 5º, apontando que ele somente irá admitir ações relativas à disciplina e às competições desportivas depois de esgotadas as instâncias da Justiça Desportiva, regulada em lei. Esta é que tem competência para processar e julgar as infrações disciplinares e os procedimentos especiais, previstos no Código Brasileiro de Justiça Desportiva (Resolução 29/2009 CNE - CBJD). Ela não integra o Judiciário e não se trata de arbitragem, como muitos equivocadamente consideram.
 
Recentemente, a Justiça Desportiva tem sido alvo de grande polêmica por consequência dos fatos ocorridos nas rodadas finais do Campeonato Brasileiro de 2013, na medida que a Associação Portuguesa de Desportos e o Clube de Regatas do Flamengo escalaram atletas de forma irregular, pois não possuíam condição de jogo.

No caso da Portuguesa, um atleta participou de contenda enquanto deveria estar cumprindo suspensão aplicada pela Justiça Desportiva. O STJD do Futebol aplicou a pena prevista no artigo 214 do Código Brasileiro de Justiça Desportiva, sendo determinada a perda de três pontos e o não cômputo dos pontos obtidos na partida e, assim, a equipe foi punida com a perda total de quatro pontos.

Já o Flamengo escalou um atleta enquanto deveria estar cumprindo suspensão automática por expulsão sofrida na última partida da Copa do Brasil. Em que pese o brilhantismo da defesa, de maneira acertada, o STJD aplicou a pena de perda de três pontos, na forma do mesmo comando legal acima citado, não sendo computado o ponto obtido no empate, o que também gerou a perda de quatro pontos. 

Com o trânsito em julgado das referidas demandas no STJD, o requisito constitucional foi devidamente preenchido, o que em tese deveria autorizar a análise de tal questão pelo Poder Judiciário.
 
O que se viu a partir de então foi uma grande quantidade de demandas intentadas por torcedores e até mesmo por um dos clubes envolvidos, nas quais, na absoluta maioria das vezes, foi dada a correta interpretação de que o Judiciário não tem competência para realizar análises de mérito em questões relacionadas à competição e à disciplina, e sim tão somente no que diz respeito à legalidade dos procedimentos específicos adotados pela Justiça Desportiva.
 
Mesmo assim, devido ao significativo número de demandas e ao desconhecimento de alguns magistrados acerca da legislação desportiva, liminares foram concedidas no sentido de que os pontos fossem devolvidos à Portuguesa e, nesse interregno em que as medidas estavam sob plena eficácia, fomos espectadores de uma situação de caos que poderia, inclusive, ter inviabilizado a realização do Campeonato Brasileiro de 2014.
 
O parágrafo segundo do artigo 52 da Lei 9.615/1998 (Lei Pelé) prevê que o recurso ao Judiciário não pode prejudicar os efeitos desportivos validamente produzidos em consequência de decisões da Justiça Desportiva, e daí extraímos a conclusão de que a ele não cabe a função de reanalisar mérito de questões relativas a competição e disciplina.
 
Nessa esteira, o recurso ao Judiciário somente é admissível se existir algum vício ou nulidade que possa macular o procedimento desportivo, na medida em que a Constituição criou uma estrutura própria para julgamento dessas lides.
 
De outro lado, alguns se filiam à tese de que o parágrafo segundo do artigo 52 da Lei Pelé é inconstitucional, pois limita a atuação do Judiciário, o que seria vedado pela Constituição Federal, esta que tão somente impõe a necessidade de esgotamento das instâncias desportivas, sem restringir a atuação da Justiça comum. 

Dessa forma, a análise que o Poder Judiciário tem feito na ocasião em que concede liminares relativas à perda de pontos pelas equipes do Clube de Regatas do Flamengo e da Associação Portuguesa de Desportos, alterando os efeitos desportivos validamente produzidos, é absolutamente equivocada, pois este não poderia ferir a coisa julgada material desportiva, restando-lhe tão somente a análise de questões relativas à legalidade dos procedimentos adotados, como por exemplo, a ausência de contraditório e ampla defesa.
 
*Presidente da Comissão de Direito Desportivo e Eventos Esportivos da OAB/RJ e vice-presidente do Tribunal de Justiça Desportiva do Futebol do Estado do Rio de Janeiro

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