21/12/2017 - 17:50

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Foro especial: prerro gativa ou privilégio?

21/12/2017 - 17:50

Foro especial: prerro gativa ou privilégio?

Função da jurisdição penal é essencialmente contramajoritária


RODRIGO CYRINEU*
 
Tema dominante nas pautas do Supremo Tribunal Federal e do Congresso Nacional, o foro por prerrogativa de função, erroneamente denominado de foro privilegiado, vem sendo considerado por parcela dos juristas e pela maioria esmagadora dos veículos de comunicação como o grande vilão do combate à corrupção.

Injustiça sem tamanho com o STF, instituição que deu mostras de sua isenção e eficiência quando do julgamento da Ação Penal 470, o Mensalão, ao condenar figurões da política antes tidos por intocáveis. Isso sem contar tantos outros casos penais, como os de Natan Donadon (AP 396) e Paulo Maluf (AP 863).

Aliás, as discussões a propósito do tema não são novidadeiras. Já no regime constitucional anterior o STF decidiu (Reclamação 473, voto do ministro Victor Nunes Leal): “a jurisdição especial, como prerrogativa de certas funções públicas, é, realmente, instituída não no interesse pessoal do ocupante do cargo, mas no interesse público do seu bom exercício, isto é, do seu exercício com o alto grau de independência que resulta da certeza de que seus atos venham a ser julgados com plenas garantias e completa imparcialidade. Presume o legislador que os tribunais de maior categoria tenham mais isenção para julgar os ocupantes de determinadas funções públicas, por sua capacidade de resistir, seja a eventual influência do próprio acusado, seja às influências que atuarem contra ele. A presumida independência do tribunal de superior hierarquia é, pois, uma garantia bilateral, garantia contra e a favor do acusado”.

Da mesma forma, sob a égide da CF/88, decidiu o STF, pela pena de Nelson Jobim (Reclamação 2138-6), que o foro especial impede: “que se banalizem procedimentos de caráter penal ou de responsabilidade com nítido objeto de causar constrangimento político aos atingidos, afetando a própria atuação do governo e, por que não dizer, do próprio Estado”.

Ademais, para quem ainda pensa ser um privilégio do acusado detentor de foro especial, a nova conformação das inelegibilidades introduzida com a Lei da Ficha Limpa impõe obstáculo à candidatura já a partir da primeira decisão de um tribunal, enquanto que outro cidadão não detentor de foro já condenado por um magistrado de primeiro grau estaria apto a concorrer a um cargo eletivo. Isto sem contar a oportunidade reduzida de buscar a absolvição, a qual é bem mais ampla quando o processo se inicia no juízo de piso, com mais instâncias recursais.

Para arrematar, basta pensar na situação do Judiciário. Haveria lógica em um desembargador ser julgado por um juiz que lhe é hierarquicamente subordinado? Basta lembrar o que dito pelo ministro Cezar Peluso na Petição 3211: “seria absurdo ou o máximo do contrassenso conceber que ordem jurídica permita que ministro possa ser julgado por outro órgão em ação diversa, mas entre cujas sanções está também a perda do cargo. Isto seria a desestruturação de todo o sistema que fundamenta a distribuição de competência”.

A comunidade jurídica precisa resistir a esses arroubos retóricos populistas. A função da jurisdição penal é essencialmente contramajoritária e assim deve ser para que o Estado de Direito sobreviva, mesmo na UTI.
 
*Advogado, especialista em Direito Eleitoral, Constitucional e Administrativo pela Fundação Escola Superior do Ministério Público de Mato Grosso. Mestrando em Direito Constitucional pelo Instituto de Direito Público do Distrito Federal

Instituto arcaico no atual regime democrático e republicano


DANIEL FALCÃO*
O foro por prerrogativa de função é caracterizado como o direito atribuído pelo ordenamento jurídico pátrio (Constituição ou leis processuais) a pessoas que ocupam cargos públicos de serem submetidos a julgamento por órgãos específicos do Judiciário, diferentes daqueles que, normalmente, seriam competentes para conduzir um processo da mesma natureza. Tal modificação na competência ocorre usualmente em situações da esfera do Direito Penal.

Sua alcunha popular – foro privilegiado – demonstra como a população enxerga o instituto: espécie de proteção criada por políticos, para políticos, com o provável objetivo de dificultar eventual condenação criminal. Deve-se destacar que o foro por prerrogativa de função não é uma exclusividade constitucional brasileira. Diversos outros países preveem em seus textos constitucionais foros especiais para agentes públicos. Há países, porém, em que o agente público só terá foro especial quando praticar crimes cometidos em razão de sua função.

No Brasil, diferentemente, a ainda vigente interpretação da Constituição de 1988 pelo STF e também pelo STJ determina que as autoridades públicas sob sua competência são processadas e julgadas por infrações penais comuns, ou seja, crimes eventualmente cometidos em razão de sua função e ou não relacionados ao exercício do cargo. Dessa forma, estão incluídos, conforme atual jurisprudência do Supremo, os crimes eleitorais, as contravenções penais e até os crimes dolosos contra a vida.

A justificativa para a extensão desse benefício dada pelo próprio STF em julgamentos anteriores é de que o foro privilegiado existe para defender o interesse público no bom exercício da função pública, além da presunção de que tribunais, por serem compostos por julgadores mais experientes, teriam mais isenção e maior capacidade de resistir à pressão da influência da sociedade e do próprio acusado. Ademais, o privilégio não existiria por haver o estreitamento ou até a impossibilidade de o acusado usufruir do sistema recursal, principalmente para o revolvimento fático-probatório da questão em discussão.

Por outro lado, é necessário destacar que os TJs, os TRFs, o STJ e o STF têm grandes dificuldades na condução da fase instrutória desses processos com foro especial, valendo-se quase sempre de juízes de 1º grau para tomar interrogatórios e proceder à oitiva de testemunhas. Esses órgãos de 2º grau e de instância superior não têm estrutura física, tampouco costume para proceder como juízes de 1º grau na seara penal. Exemplo notório dessa questão é a duração do julgamento originário e dos recursos no STF envolvendo a Ação Penal 470, que tratou do escândalo do Mensalão.

Por fim, o foro privilegiado tira o tempo e a atenção do STJ e do STF de suas funções constitucionais precípuas – controle de constitucionalidade concentrado e competência recursal constitucional, no caso do Supremo, e corte recursal para uniformizar e garantir a coerência e estabilidade da jurisprudência na interpretação da lei federal, no caso do STJ.

Trata-se, portanto, de um privilégio sem sentido no atual regime democrático e republicano. Raymundo Faoro já nos ensinou que o Estado brasileiro teve como base de sua formação a existência e predominância de verdadeiros estamentos de caráter patrimonialista. O foro por prerrogativa de função é só mais um dos institutos que consagram essa história.
 
*Advogado e cientista social, professor doutor da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo e da Escola de Direito de Brasília do Instituto Brasiliense de Direito Público

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