14/10/2022 - 16:17

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Evento na OAB/São Gonçalo discutiu perigos da intolerância religiosa

Cerimônia contou com representantes religiosos e homenagens a membros da Comissão de Direitos Humanos da Seccional

Felipe Benjamin


Realizado na noite de quinta-feira, dia 13, na sede da OAB/São Gonçalo, o evento "O papel da advocacia no combate ao racismo religioso" reuniu lideranças na sede da Ordem local e discutiu os perigos dos avanços da intolerância, especialmente contra as religiões de matriz africana. Comandada pelo professor Herimar Santana, presidente da Comissão da Verdade da Escravidão Negra no Brasil (Cevenb) da subseção, a cerimônia também contou com entregas de medalhas e moções de aplausos para componentes das mesa.

"Para nós, é sempre uma honra muito importante receber a sociedade, aqui do município, mas também aliados da capital para discutirmos pautas de enorme relevância", afirmou a presidente da OAB/São Gonçalo, Andreia Pereira, em seu discurso de abertura. "Espero que possamos sair daqui com resultados bastante proveitosos".

Compuseram a mesa, ao lado da presidente, os conselheiros estaduais da OABRJ, Daniele Arruda e Eliano Enzo. Representaram a Comissão de Direitos Humanos e Assistência Judiciária (CDHAJ) da OABRJ, o presidente, Álvaro Quintão; a procuradora, Mariana Rodrigues, e a coordenadora do Grupo de Trabalho (GT) de Intolerância e Crimes de Ódio, Sônia Maria Ferreira Soares. Completou a mesa a Ialorixá Mãe Márcia de Oxum. Participaram ainda do evento o babalorixá Babá Milton e a militante candomblecista Aretuza de Oyá.

"Muitos não sabiam da existência do GT de Intolerância e Crimes de Ódio da Comissão de Direitos Humanos", afirmou Álvaro.

"Na verdade, a OABRJ conta com uma comissão de combate à intolerância religiosa, mas nós entendemos que a pauta dessa comissão não se estendia para questões mais específicas de racismo e discriminação. Por isso decidimos criar esse grupo de trabalho, até porque a Comissão de Direitos Humanos tem a possibilidade de judicializar eventuais demandas. Temos visto ao longo dos anos esse ódio e essa intolerância se ampliarem, e se quatro anos atrás recebíamos uma ou outra demanda, hoje temos casos quase diários. Venho de uma família que cresceu na tolerância, com minha mãe budista, minha irmã umbandista, meu irmão seminarista e meu pai ateu, todos reunidos em almoços agradáveis nessa diversidade. Se não nos juntarmos, muito em breve estaremos vivendo numa teocracia. E o perigo é muito maior para as religiões de matriz africana, que sofrem um preconceito acompanhado do preconceito que sofrem os negros periféricos, as vítimas da nossa sociedade". 


A importância da advocacia como veículo para levar as demandas dos povos marginalizados foi destacado pela procuradora Mariana Rodrigues, que frisou a importância da OABRJ estar atenta em ouvir as questões da sociedade.

"No combate à intolerância religiosa, a advocacia é um mero instrumento", afirmou Mariana.

"Aqui não nos compete a principal fala. Nós estamos aqui, abrindo esta casa, principalmente para ouvir e para nos colocarmos à disposição de quem está na ponta enfrentando todas as agruras. Se estamos aqui hoje, com direito à manifestação e vontade de discutir, é porque pessoas lutaram e morreram para que hoje pudéssemos estar aqui falando sobre estes temas. É óbvio que quero que o povo que está aniquilado e sem voz venha até nós. Mas sei que não é fácil. Sei que há um processo constante de revitimização na estrutura da sociedade. Temos que entender a dificuldade das populações periféricas, dos praticantes de religiões de matriz africana em procurar os instrumentos para auxiliá-los em sua luta. É preciso que haja uma união sob a bandeira da interseccionalidade, mas a resposta nunca estará em nós operadores do Direito. Somos levados a acreditar que, como advogados, somos a solução para tudo, mas a verdadeira solução e a transformação partirão sempre dos movimentos sociais".

Promessa de combate ao avanço do ódio

Ialorixá do terreiro Egbé Ilè Iyá Omidayê Àṣe Obalayó, Mãe Márcia de Oxum falou sobre os desafios enfrentados em São Gonçalo, e apresentou uma cartilha com leis que, segundo ela, já foram criadas para garantir a proteção de diversos direitos dos praticantes de religiões de matriz africana, e que não são colocadas em prática.

"O IBGE diz que todos deveríamos nos autodeclarar, mas o questionário completo quase nunca é apresentado e é só na versão integral do questionário que é possível se declarar como candomblecista", afirmou Mãe Márcia.

"Muitos de nós não preenchemos o questionário completo, então não constamos e ficamos invisibilizados. Por isso criamos o aplicativo Igbá, que mapeia os terreiros e que nos permitirá mostrar que estamos aqui e que temos direitos. Vejo os jovens desanimados, achando que tudo está perdido e penso 'O que estamos fazendo com as próximas gerações?' Não podemos deixar nunca a esperança se desesperançar. Isso só fortalece o racismo e a intolerância".

A conselheira Daniele Arruda exortou os advogados a se envolverem na defesa dos direitos dos povos de matriz africana.

"É uma honra estar aqui, mas é lamentável estar aqui discutindo um tema que nunca deveria ser discutido", afirmou Arruda. "O preconceito enfrentado pelos praticantes de religiões de matriz africana não está restrito às manifestações de ódio e intolerância de que eles são vítimas. Ainda há o desafio de passar por cima do preconceito presente na administração quando se buscam os direitos. Precisamos de mais advogados envolvidos nessa causa. A lei deve ser cumprida e acabou. Eu vi na internet o caso do "Uber Macumba", um motorista que atende exclusivamente a praticantes de religiões de matriz africana. à primeira vista parecia algo bacana, mas aos poucos começamos a ver que não é algo positivo. É algo que só acontece porque muitos serviços abertamente rejeitam essas pessoas."

O presidente da CDHAJ e secretário-geral da Seccional afirmou que irá levar as demandas coletadas no evento e a cartilha entregue por Mãe Márcia às discussões da comissão, e destacou a importância de evitar que manifestações de intolerância por parte de líderes religiosos sejam confundidas com a verdadeira essência das religiões.

"Muitas vezes temos o hábito de condenar uma religião pelos comportamentos de seus líderes, mas as religiões são maiores do que isso", afirmou Álvaro. "Eu me afastei da Igreja Católica quando percebi traços de intolerância no discurso do meu padre, mas o catolicismo não é o padre. Assim como a religião evangélica não é o comportamento dos falsos profetas, muito mais preocupados com seus dízimos. Temos que saber separar o joio do trigo. Esse é o nosso desafio. E portanto, a Ordem dos Advogados não pode fechar as portas para essa pauta. Ela tem que estar aqui ouvindo demandas, promovendo debates, e não permitindo nunca que o ódio vença. Nosso país é plural e é muito melhor que isso".


Ao fim do evento, Álvaro e Mariana receberam homenagens oferecidas pela OAB/São Gonçalo, juntamente com o Centro de Estudos Brasil-África (Ceba) e o Coletivo Dandara para Sempre. Mariana recebeu a moção de aplausos Pérola Negra, enquanto Álvaro recebeu a honraria Ouro Preto. Por seus esforços na luta contra o racismo e a discriminação a dupla recebeu ainda uma medalha, entregue à Mariana, e a placa Luiz Gama, entregue a Álvaro.

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